Na noite de segunda-feira, dia 23 de setembro deste ano, os ministros das Relações Exteriores dos Estados-membros do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR ou Tratado do Rio) aprovaram uma resolução que ativa de facto o TIAR e reconhece a crise humanitária na Venezuela como uma “ameaça à manutenção da paz e da segurança no continente” (OEA, 23 set. 2019). A convocação do órgão de consulta do TIAR havia sido aprovada no dia 11 do mesmo mês, durante a sessão ordinária do Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos (OEA), por 12 dos 19 países signatários do tratado[1].

O objetivo deste breve artigo é levantar questionamentos a respeito do gerenciamento da crise na Venezuela pelos países do continente e pelas instituições americanas, nomeadamente a OEA e o Grupo de Lima, além de tensionar o que significa a ativação de um mecanismo como o TIAR para a crise no país.

A convocação do TIAR foi realizada pelas missões permanentes do Brasil, Colômbia, Estados Unidos e Venezuela – representada pelo auto-proclamado presidente Juan Guiadó[2]. Criado em 1947, o TIAR tem como objetivo fundamental “garantir a paz por todos os meios possíveis, prever a assistência recíproca eficaz para lidar com ataques armados contra qualquer Estado americano, e conjurar ameaças de agressão a qualquer um deles” (TIAR, 1947, tradução livre). O TIAR foi criado ao final da Segunda Guerra Mundial, no contexto do início da Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética. Seu intuito era, portanto, assegurar que uma agressão promovida pela União Soviética ao continente americano seria considerada como uma agressão contra todos os Estados americanos, consolidando, assim, as Américas como zona de influência estadunidense.

Assim, o Tratado estabelece que “um ataque armado, por parte de qualquer Estado, contra um Estado americano, será considerado como um ataque contra todos os Estados americanos” (TIAR, 1947, tradução livre). Assim, o TIAR configura-se como um pacto de segurança e defesa coletiva e estabelece um acordo de assistência mútua contra ameaças externas. Apesar de ter sido invocado 19 vezes desde a sua criação, o Tratado não é ativado desde o fim da Guerra Fria. Ademais, a guerra das Malvinas/Falklands de 1982 entre Argentina e Reino Unido marcou a falência do TIAR como mecanismo de solidariedade americana e segurança coletiva. Nessa ocasião, os Estados Unidos se alinharam à Inglaterra e não puderam cumprir com a cláusula do TIAR, que previa a ajuda recíproca à Argentina no caso de agressão promovida por um país extra-hemisférico.

A ativação do TIAR no caso da crise na Venezuela têm como objetivo, de acordo com o texto da resolução aprovada, investigar e julgar pessoas e entidades associadas ao regime de Nicolás Maduro envolvidas em atividades ilícitas como lavagem de ativos, tráfico de drogas, e terrorismo e seu financiamento. Destarte, a ativação do Tratado é considerada, pelos países favoráveis, em conformidade com o artigo 6° do TIAR, e o texto da resolução alega que “a crise na Venezuela tem um impacto desestabilizador, representando uma clara ameaça à paz e à segurança no hemisfério” (OEA, 11 set. 2019). O artigo 6° do tratado afirma:

Se a inviolabilidade ou a integridade do território ou a soberania ou a independência política de qualquer Estado americano foram afetadas por uma agressão que não seja um ataque armado, ou por um conflito extra-continental ou intracontinental, ou por qualquer outro fato ou situação que possa colocar em perigo a paz da América, o Órgão de Consulta se reunirá imediatamente, a fim de acordar as medidas que em caso de agressão devem ser tomadas em auxílio ao país agredido ou, em todo caso, as medidas que convenham ser tomadas para a defesa comum e para a manutenção da paz e da segurança do continente (tradução livre e grifo nosso).

No entanto, países como o Uruguai, Costa Rica e Peru criticaram a invocação do Tratado. Durante a sessão ordinária do Conselho Permanente, a Costa Rica propôs uma emenda que deveria excluir quaisquer medidas que implicassem o emprego da força armada, e afirmou que o TIAR deveria contribuir para a restauração pacífica da democracia na Venezuela. Na ocasião, o Brasil foi um dos países contrários à emenda proposta pela Costa Rica, que não foi aprovada pelo Conselho. Apesar disso, o Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, relativizou os termos do TIAR e disse que o governo brasileiro vislumbra apenas ações diplomáticas contra o regime de Nicolás Maduro.

O Uruguai é o país que se opõe mais fortemente à utilização do Tratado na crise da Venezuela. Segundo o chanceler uruguaio, Rodolfo Nin Novoa, a ativação do TIAR trata-se de uma tentativa de manejar politicamente instrumentos jurídicos internacionais para legitimar o uso da força na tentativa de derrubar o governo de Maduro. Ademais, o Uruguai ressalta que “a invocação do artigo 6° do TIAR abre claramente o caminho para uma intervenção armada em um país da região por parte de outro ou outros países da região, o que contradiz claramente o espírito e a letra do texto, concebido para defender a América de agressões externas e não para permitir agressões internas” (OEA, 23 set. 2019).

Os Estados Unidos afirmam que a invocação do TIAR é uma resposta à movimentos belicosos da Venezuela. A decisão foi tomada após Nicolás Maduro afirmar que enviaria 150.000 soldados para a fronteira com a Colômbia. Mike Pompeo afirmou que:

Recentes ações belicosas dos militares venezuelanos para implantar tropas ao longo da fronteira com a Colômbia, bem como a presença de grupos armados ilegais e terroristas no território venezuelano, demonstram que Nicolás Maduro não apenas representa uma ameaça ao povo venezuelano; suas ações ameaçam a paz e a segurança dos vizinhos da Venezuela (tradução livre).

Nessa lógica, a possibilidade de um conflito armado entre Venezuela e Colômbia é eminente, e a invocação do TIAR é capaz de legitimar a intervenção armada dos Estados Unidos caso o conflito se concretize. Contrariamente, o próprio Pompeo afirma também que os países-membros do TIAR irão se reunir para considerar opções econômicas e políticas multilaterais para por fim ao regime de Maduro.

A ativação do TIAR traz uma série de questionamentos que não pretendemos responder (e nem poderíamos) nesse breve artigo, mas que mesmo assim merecem ser apresentados. O TIAR poderia ter sido invocado na ocasião de não haver uma agressão armada extra-continental, mesmo sob a justificativa do artigo 6°? Se sim, ele poderia ser invocado pela Venezuela de Juan Guaidó, uma vez que países signatários do tratado não o reconhecem como presidente (o Uruguai, por exemplo)? E mais uma vez, se sim, o que a ativação do tratado significa em termos práticos para a crise venezuelana? Deve-se esperar uma intervenção armada no país? Ademais, a crise na Venezuela é demasiado complexa e multidimensional para considerar que a opção do TIAR é suficiente para a sua resolução. Ao final e ao cabo, trata-se de uma crise humanitária que demanda ações cujo objetivo primário seja melhorar a vida da população venezuelana e restaurar a democracia no país por meios pacíficos.

Para além destes questionamentos, a invocação do TIAR denota a inabilidade dos mecanismos regionais de gerirem a crise venezuelana, a ponto de um tratado que data do período da Guerra Fria ser ativado para cumprir tal tarefa. A impossibilidade de estabelecer um diálogo entre o regime de Maduro e a oposição de Guaidó na estrutura da OEA, a crise e o esvaziamento do Conselho de Defesa Sul-Americano da UNASUL, e a falta de operacionalidade do Grupo de Lima são exemplos significativos da crise de legitimidade pela qual passam as instituições regionais. Além disso, a tentativa de mediação pela Noruega entre as partes de Maduro e Guaidó foi abandonada em agosto desse ano. Nesse sentido, a reflexão acerca da ativação do TIAR remete à crise do regionalismo sul-americano e ao arrefecimento do modelo de segurança cooperativa no continente americano.

NOTAS

[1] A resolução foi aprovada por Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Guatemala, Haiti, Honduras, El Salvador, Estados Unidos, Paraguai, República Dominicana e Venezuela. Se abstiveram da votação Costa Rica, Trinidad e Tobago, Panamá, Perú e Uruguai. As Bahamas não participaram da votação. O caso de Cuba é sui generis: o país é signatário do TIAR mas, desde junho de 2009, Cuba não é um Estado ativo na OEA.
[2] Em abril de 2017, Nicolás Maduro solicitou o desligamento ‘imediato’ da Venezuela da OEA, que deveria se concluir em abril de 2019. No entanto, em janeiro deste ano, o Conselho Permamente da OEA cancelou a saída da Venezuela e reconheceu Juan Guaidó como presidente interino do país. Ademais, a Venezuela deixou o acordo do TIAR em 2012, mas Guaidó recolocou o país no bloco em agosto deste ano.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Escrito por

Vitória Totti Salgado

Research Fellow e Assistente de Projetos na Escola de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV RI). Doutoranda e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP) na área de concentração Instituições, Processos e Atores, com projeto de pesquisa de mestrado parcialmente financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Bacharela em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Câmpus Franca. Realizou intercâmbio acadêmico na Bishops University, Québec, em 2017, financiada pelo programa Emerging Leaders in the Americas Program que está sob a administração do Canadian Bureau for International Education. Pesquisadora vinculada ao Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES), ao Observatório de Regionalismo (ODR), à Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (REPRI) e à Rede de Pesquisa Internacional DIPP - Development, Internacional Policy and Peace. Desenvolve pesquisa sobre o regionalismo europeu e sul-americano, especificamente sobre a cooperação e integração regional no âmbito da defesa e segurança, gestão fronteiriça e políticas migratórias. Outros interesses de pesquisa são: regime internacional de meio ambiente e mudanças climáticas, psicologia política, e política nuclear.