Ainda no início de 2016, por ocasião da realização da XXV Reunião Especializada sobre Agricultura Familiar do Mercosul, publicamos um pequeno texto comentando a importância da participação dos atores sociais e das agendas não-comercias do Mercosul para a dinamização do processo de integração regional. Hoje, em uma conjuntura bastante distinta daquela, nos parece urgente refletir sobre os resultados alcançados e a capacidade de resiliência dessas dinâmicas regionais. Inspirados no velho ditado, resta saber se, diante do latido dos cães, a caravana seguirá o seu caminho.
É notório, mesmo ao observador mais desavisado, que a atual conjuntura na América do Sul difere completamente daquela do início do século XXI, momento em que o Mercosul passou por um processo de alargamento institucional que inseriu agendas e atores antes excluídos do bloco. Afinal, os governos eleitos nos últimos anos na região emergiram com um discurso que, quando muito, encaram que o bloco deva se limitar à promoção do livre comércio na região. A eleição de Jair Bolsonaro no Brasil e a política externa tocada por Ernesto Araújo e Filipe Martins são, certamente, o corolário desse processo, ao enxergar “bolivarianismo” em quaisquer movimentos e projetos que fujam à sua agenda conservadora e reacionária. Nesse sentido, a lógica da desconstrução que, como demonstrado por Lucas Eduardo neste observatório, guia a “política externa da ruptura”, parece, ao menos no âmbito do discurso, ameaçar a sobrevivência das agendas não-comerciais do Mercosul.
As agendas não-comerciais do Mercosul tem como marco o “Programa de Trabalho do Mercosul 2004-2006”, que deu origem a diversas inciativas ligadas aos eixos de trabalho estabelecidos no documento, dentre eles, o Mercosul Social. Desde então, o bloco assistiu o desenvolvimento de institucionalidades e experiências de políticas públicas em setores específicos, tais como agricultura familiar, saúde, educação, ciência e tecnologia, assuntos trabalhistas, meios ambiente, dentre outras.
Em termos de resultados, essas institucionalidades do Mercosul estabeleceram diretrizes para políticas públicas nacionais e produziram desenhos de políticas públicas e projetos pilotos que apontam para a possibilidade de uma integração regional que não se limita às tecnicidades da agenda comercial, tais como o Programa Interministerial de Intercâmbio de Experiências sobre Modelos de Gestão de Políticas de Compras Públicas da Agricultura Familiar, as edições do Curso Regional de Formação da Juventude Rural, o Programa Regional de Fortalecimento Institucional de Políticas de Igualdade de Gênero, o Programa de Mobilidade Acadêmica Regional para Cursos Credenciados (MARCA) e a criação da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).
Ocorre, contudo, que essas iniciativas estiveram vinculadas às vontades dos “governos de plantão”. Afinal,prevaleceu o entendimento de que a implementação das diretrizes e políticas públicas desenhadas em nível regional deveriam estar a cargo dos governos nacionais. Assim, a insuficiência em termos de autonomia das instituições regionais, especialmente no que diz respeito à ausência de poder de decisão e a indisponibilidade de recursos próprios, ameaça a continuidade dessas iniciativas no contexto das mudanças governamentais que ocorreram nos últimos anos na região.
O quadro, por hora, aponta para algum nível de continuidade nos trabalhos. Em larga medida, as atividades no âmbito das reuniões especializadas, subgrupos de trabalhos e demais instituições criadas, como o Instituto Social do Mercosul, continuam ocorrendo. Resta saber até quando e em que condições, que nunca foram ideais, os atores terão capacidade de resiliência no sentido de continuar trabalhando na construção de um processo de integração regional que aponta para a promoção do desenvolvimento regional. Afinal, mais do que nunca, é urgente e necessário que o Mercosul cumpra o estabelecido no preâmbulo do Tratado de Assunção: a integração regional como condição fundamental para acelerar os processos de desenvolvimento econômico com justiça social dos Estados-membros do bloco.
 

Escrito por

Guilherme Ferreira

Professor Adjunto da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (EPPEN) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Campus de Osasco. Doutor e Mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/ UNICAMP/ PUC-SP). Bacharel em Relações Internacionais pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais - UNESP, campus de Franca, tendo realizado intercâmbio acadêmico de graduação no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa. É pesquisador do Observatório de Regionalismo (ODR).