Entre as diversas dúvidas despertadas pela recente vitória de Jair Bolsonaro (Partido Social Liberal – PSL) nas eleições presidenciais de 2018, o futuro da participação do Brasil no Mercosul parece ser uma das maiores incógnitas. Logo após a confirmação da vitória do pesselista, o economista Paulo Guedes, indicado para o Ministério da Fazenda, fez afirmações contundentes sobre o bloco, afirmando que não será prioridade nas relações externas do novo governo[1]. Além disso, Guedes disse que o Mercosul está eivado por questões ideológicas e que possui “inclinações bolivarianas”. Tais declarações causaram espanto entre os demais membros, que veem com preocupação um possível distanciamento do Brasil em relação ao bloco.
Outros sinais foram dados pelo indicado para o cargo de ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que divulgou a informação de que as primeiras visitas presidenciais serão feitas para o Chile, Israel e Estados Unidos[2], apontando a reorientação das relações exteriores brasileiras, visto que não inclui a Argentina, um tradicional destino de visitas presidenciais.
A recente indicação do embaixador Ernesto Fraga Araújo para o cargo de Ministro das Relações Exteriores tampouco oferece indícios a respeito da postura do Itamaraty frente à participação brasileira no Mercosul. Textos publicados pelo embaixador apenas apontam para uma possível aproximação com os Estados Unidos[3], mas nenhuma declaração foi dada a respeito das relações com a América do Sul.
De qualquer forma, é importante notar que, independentemente de qual seja o viés político, as escolhas em temas de política externa sempre possuem componentes ideológicos. Dada a pluralidade de pensamentos e comportamentos, podem haver diversas ideologias, de direita ou esquerda, autoritárias ou libertárias, conservadoras ou liberais, entre uma miríade de outras opções. Indubitavelmente, conforme afirma Borba (2018), a escolha por países de perfil conservador é também uma opção ideológica que indica sua aproximação a determinadas práticas econômicas, políticas e sociais. Desse modo, apesar de propagandear seu futuro governo como não-ideológico, suas medidas são tão ideológicas quanto as de outros presidentes, visto que a política é essencialmente ideológica, assim como a ideologia é política.
É diante desse quadro que fazemos uma reflexão sobre ideologias e regionalismo. Nota-se como uma tendência crescente de questionamento aos projetos na Europa e na América Latina. Guardadas as diferenças entre União Europeia e Mercosul, é possível identificar a utilização do argumento de “ideologização” por parte dos opositores dos dois projetos que, em verdade, se dirigem aos governos estabelecidos. No caso da União Europeia, tal disputa permeia o debate doméstico entre a esquerda e a direita dos países membros desde a década de 1980 (PROSSER, 2016). O novo elemento adicionado a esse cenário é o crescimento da extrema direita em diversos países europeus e, com isso, o endurecimento das críticas à União Europeia, visto que a oposição ao processo de integração é bandeira de vários partidos da orientação política citada.
É relevante, portanto, observarmos as críticas em relação a Mercosul, principalmente quanto envolvem a acusação de que  ideologias estariam distorcendo os objetivos do bloco – o que indicaria uma suposta origem desideologizada e apolítica do regionalismo. Para tanto, retomaremos as origens do Mercosul e discutiremos as diversas correntes ideológicas que marcaram sua formação e trajetória.
Devido ao papel central desempenhado pelos presidentes como impulsionadores do processo de integração, optamos por analisar os impactos dos ciclos presidenciais dos países membros na orientação do Mercosul em cada período . A década de 1980 deve ser o ponto de partida da análise, visto que a aproximação entre a Argentina e o Brasil que daria origem ao Mercosul é esboçada nesse momento. Cabe lembrar que a reaproximação foi necessária devido a deterioração das relações entre os dois países ocorrida nas décadas anteriores e que ganhou impulso com a perspectiva de redemocratização de ambos, processo que seria concretizado na Argentina com a eleição do presidente Raúl Alfonsín (1983-1989) e posteriormente no Brasil, após a vitória de Tancredo Neves nas eleições indiretas de 1985.
O compromisso com a redemocratização e a recuperação das economias, somados a conjuntura internacional do fim da Guerra Fria e de impulso à globalização econômica pressionavam os presidentes para mudanças nas respectivas políticas externas. Portanto, era visto como urgente um novo desenho de inserção internacional dos países e o marco dessa nova perspectiva foi a assinatura da Declaração de Iguaçu, em 1985, que visava o estreitamento das relações comerciais e seria o embrião do projeto de integração.
No contexto da década de 1990, um ciclo de presidentes alinhados aos preceitos neoliberais promoveu as assinaturas da Declaração de Buenos Aires, em 1990, e do Tratado de Assunção, em 1991, onde o nome “Mercado Comum do Sul” foi oficializado, incluindo Paraguai e Uruguai como Estados-partes do bloco. O Mercosul foi entendido como uma importante ferramenta de inserção dos países do Cone Sul no cenário pós Guerra Fria, marcado pela globalização. Portanto, a estrutura fundacional do Mercosul é voltada para questões comerciais, valorizando um projeto de livre-comércio e de globalização, no período da aparente unipolaridade de Washington. Em outros palavras, é uma instituição desenhada seguindo os preceitos ideológicos da época. Conforme apontado abaixo, apesar das mudanças ocorridas nos anos seguintes, o eixo central do Mercosul não foi alterado, indicando a permanência dessa mesma ideologia no bloco comercial através de distintos governo em cada um dos países membro.
No período seguinte, em meados da década de 1990, a estabilidade macroeconômica empreendida pelos países do Cone Sul favoreceu o comércio intrabloco e consolidou o Mercosul como importante espaço político para a região (ALBUQUERQUE, 2003). A desvalorização do real, em 1999, e a sequência de crises financeiras que atingiriam o Brasil diminuíram ao ritmo do aprofundamento da integração, mas o comércio mercosulino continuou importante para as economias da região. Na Argentina, o final da década de 1990 testemunhou uma profunda recessão e o final do governo Menem, cuja política externa, à exemplo do Brasil, também enfatizou o Mercosul, porém teve como prioridade absoluta o relacionamento com os Estados Unidos. O agravamento da crise econômica levou a renúncia do sucessor Fernando De la Rúa (1999-2001), causando instabilidade política.
No início dos anos 2000, as crises econômicas e políticas que afetaram os países da região e os acontecimentos internacionais que redirecionaram as prioridades do sistema internacional foram fatores que influenciaram a emergência de um novo ciclo, a chamada “Onda Rosa”. Na Argentina, houve os mandatos de Néstor e Cristina Kirchner (2003-2015). No Brasil, os governos de Lula e Dilma (2003-2016). No Paraguai, a presidência de Fernando Lugo (2008-2012). No Uruguai, Tabaré Vázquez e José Mujica (2005-2020). No âmbito regional, foram implementadas reformas institucionais e ampliação do escopo temático, incluindo agendas sociais, culturais e políticas que antes não possuíam papel de destaque. Entretanto, tais mudanças foram limitadas, inclusive em relação às demandas da sociedade civil, e não lograram alterar substancialmente a estrutura do Mercosul. Assim, dentro do que são as especificidades e limitações do regionalismo sul-americano, o bloco manteve-se com foco na economia e na promoção do livre comércio, acompanhando as diretrizes que o pautaram desde a década de 1990. Em outros termos, apesar das modificações que ocorreram em diferentes níveis, não foram tão profundas a ponto de reorientar drasticamente o esquema de integração, na medida em que se manteve posicionamentos internacionais razoavelmente semelhantes ao longo de distintos governos.
Foi nesse contexto em que o Mercosul também vivenciou um processo de alargamento de seus membros, com a inclusão tanto de Estados-associados (Colômbia, Equador e Peru) quanto de Estados-parte (Bolívia e Venezuela). A participação de Caracas no bloco é significativa para reiterar o argumento deste artigo, porque, apesar de possuir um governo mais alinhado à esquerda, não modificou profundamente a estrutura do Mercosul, que manteve seu propósito comercialista. Ainda que houvesse intenção, por parte do governo venezuelano, de readequar os objetivos do bloco, isso não foi alcançado (RUIZ, 2010). Inclusive, na época, o ingresso da Venezuela era visto favoravelmente pelas elites políticas e econômicas, porque era um mercado em crescimento que traria ganhos ao Brasil. Portanto, não se tratou de um alinhamento ideológico bolivariano entres os presidentes, mas sim de uma medida com traços liberais que ia de encontro aos anseios de projeção do empresariado, inclusive o capital brasileiro, na arena internacional.
Conforme foi apresentado, a História do Mercosul e suas dinâmicas e resultados ao longo de quase três décadas de existência não indicam que seja um bloco “bolivariano”. Sua formulação inicial e os traços que permanecem ao longo do tempo apontam para a permanência de um viés ideológico liberal, sendo acomodado por diferentes governos e atendendo prioridades econômicas nacionais e internacionais. No entanto, na crítica político-partidário direcionada à condução da política externa por determinados governos, classificar como “ideológico” indica uma distorção do entendimento dos processos regionais.
Retomando a pergunta inicial do título, podemos dizer que o Mercosul é um bloco comercial e uma aliança ideológica, na medida em que possui um propósito específico, resultado da parcialidade de opções políticas e que se prolonga ao longo do tempo. Entretanto, não encontra eco nos fatos o argumento de que o Mercosul foi ideologizado somente na primeira década dos anos 2000 nem que alterou seu conteúdo para avançar no programa do bolivarianismo.
 
 
Bibliografia
ALBURQUERQUE, José Augusto Guilhon. A política externa de Fernando Henrique. In: Sessenta Anos de Política Externa Brasileira, vol. I, Rio de janeiro: Lúmen Juris, 2003.
ARMENDARIZ, Alberto. El Mercosur no es prioridad para Brasil, dijo ministro de Economía de Bolsonaro. El País, Montevidéu, 29 out 2018. Disponível em: https://www.elpais.com.uy/mundo/mercosur-prioridad-brasil-dijo-ministro-economia-bolsonaro.html. Acesso em: 29 out 2018.
BORBA, Julia. In: SUDRÉ, Lu. Negligenciar o Mercosul ameaça a economia brasileira. Brasil de Fato, São Paulo, 2 nov. 2018.
CERVO, A. & BUENO, C. História da Política Exterior do Brasil. Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais/Editora da Universidade de Brasília, 2002.
CERVO, A. Relações Internacionais da América Latina: Velhos e Novos Paradigmas. Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais/Editora da Universidade de Brasília, 2007.
PROSSER, Christopher. Dimensionality, ideology and party positions towards European integration. In: West European Politics, v. 39, n. 4, 2016.
RUIZ, J. O Mercosul na política de integração de Venezuela. In: Civitas, Porto Alegre, v. 10, n. 1, jan./abr. 2010.
SPEKTOR, M. O Brasil e a Argentina entre a cordialidade oficial e o projeto de integração: a política externa do governo de Ernesto Geisel (1974-1979). In: Revista brasileira de política internacional, vol.45, no.1, jan/jun. 2002.
 
[1] CARMO, Maria. Declarações de Paulo Guedes sobre Mercosul surpreendem membros do bloco. Folha de São Paulo, São Paulo, 30 out 2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/10/declaracoes-de-paulo-guedes-sobre-mercosul-surpreendem-membros-do-bloco.shtml. Acesso em 18 nov 2018.
[2] REZENDE, Constança. Bolsonaro fará viagens ao Chile, EUA e Israel, diz Lorenzoni. Portal Terra, São Paulo, 29 out 2018. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/bolsonaro-fara-viagens-ao-chile-eua-e-israel-diz-lorenzoni,cab3fcdceb23903da363c1218289f107rtf0fzv9.html. Acesso em 29 nov 2018.
[3] ARAÚJO, Ernesto Fraga. Trump e o Ocidente. In: Cadernos de Política Exterior, ano III, n. 6, 2017. p. 323. Disponível em: http://funag.gov.br/loja/download/CADERNOS-DO-IPRI-N-6.pdf. Acesso em 18 nov 2018.

Escrito por

André Leite Araujo

Pós-Doutorando na UNESP, doutor em Ciências Políticas e Sociais pela Universidade de Bolonha, mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e bacharel em Relações Internacionais pela PUC-SP. É pesquisador do Observatório de Regionalismo, da Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo e do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais. Seus estudos enfatizam a Política Externa Brasileira e o regionalismo da América Latina nos séculos XX e XXI, com ênfase nas pesquisas sobre Legislativos nacionais e Mercosul.