Em vista das eminentes eleições no Brasil, do cenário de polarização política e das expectativas e incertezas geradas pelo momento, o ODR vem produzindo uma série de conteúdos relativos às propostas e debates dos candidatos à presidência. Após o lançamento do Dossiê Política Externa e Regionalismo nas Eleições 2018, Cairo Junqueira escreveu ainda sobre as ideias de Fernando Haddad e Jair Bolsonaro e as possibilidades para o plano internacional. Esses e outros conteúdos do ODR podem ser conferidos clicando aqui.
No texto de hoje, entretanto, nos afastamos um pouco da corrente eleição e buscamos refletir desde um ponto de vista teórico e histórico acerca de como as ideias importam para a conformação dos cenários regionais, e, portanto, como as mudanças nas proposições afetam o regionalismo.
 

  • Problema inicial: o que é uma região?

A literatura de regionalismo é muitas vezes confrontada com o dilema hermenêutico acerca do próprio significado de região. Conforme destacam De Lombaerde et al (2010), três seriam os momentos em que nos referiríamos ao termo: 1- em situações supranacionais, como a União Europeia; 2- referindo-se a localizações sub-nacionais, como a região sudeste do Brasil; 3- um espaço transfronteiriço, como a Amazônia. Assim, percebe-se a pluralidade de interpretações apenas no que se refere ao entendimento geográfico do termo.
No entanto, o conceito de região pode também ultrapassar a contiguidade da geografia e se relacionar à projetos ideológicos valorativos. Um exemplo seria a proposição de “Sul Global”, que congrega diversas economias emergentes sem se atrelar a ideia de fronteira, e conta com países como os membros dos BRICS, ainda que entre Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, apenas o primeiro e o último estejam de fato no hemisfério sul do globo. Tais definições levam ao estabelecimento geral de que “as regiões são socialmente construídas, e, portanto, politicamente contestáveis” (DE LOMBAERDE ET AL, 2010).
A abordagem construtivista regional permite ainda a compreensão da continuidade no desenvolvimento de processos. Assim, as regiões não são apenas construídas, mas desconstruídas através de discursos e práticas, e sua formulação ideológica pode estar atrelada ao alcance de algum objetivo.

  •  A região do Brasil

Neste texto, reflitamos sobre o exemplo da região onde o Brasil se encontra e sua evolução no discurso da política exterior. Pode-se pensar na ideia de Américas, fomentada no pós-Segunda Guerra Mundial pelo estabelecimento da Organização dos Estados Americanos (OEA); ou mais concretamente, na América Latina e suas referências coloniais à América ibérica, que ganha força também como forma de distanciamento dos Estados Unidos, enquanto não-latinos. No entanto, o primeiro conceito é amplo e, o segundo, mesmo que bem estabelecido na literatura, enfrenta confrontações, seja pela diferença do Brasil lusófono, seja pela argumentação de que a entrada do México no Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), em 1994, ajudaria a erodir o conceito, ao aliar-se ao “outro”, não-latino, os EUA (SANTOS, 2005).
Nesses termos, a América do Sul se constrói, portanto, no discurso da política exterior brasileira nos anos 2000. Seja pelo rechaço à ALCA, e, portanto, à influência dos EUA, seja pela proposta de um novo espaço regional como projeto diplomático brasileiro. A alternância entre América Latina e do Sul permite ainda a exclusão do México na competição pelo exercício de influência, e a ascensão do Brasil enquanto líder regional.
Contudo, a proposição de um novo entendimento, não exclui os demais existentes. Assim, por exemplo, mesmo após a criação da Unasul, a proposta da CELAC retoma a América Latina como região, abre espaço para o diálogo com Cuba, e é funcional ao Brasil ao permitir a legitimação de suas iniciativas através da participação em coalizões de geometria variável (LIMA, 2013).
 

  • O debate construtivista no pensamento regional

Ainda seguindo o pensamento construtivista, uma questão que pode ser levantada se refere ao papel dos agentes e da estrutura na formulação de regiões: o estabelecimento de blocos configura novas regiões ou é um resultado das mesmas? Sua resposta aponta para a convivência concomitante de ambas as respostas.
O Mercosul inaugura a ideia de cone sul, por exemplo, e a Unasul tem o importante papel de institucionalizar o conceito de América do Sul. Considerando-se outros projetos, tem-se a Aliança do Pacífico, que enxerga no oceano sua região, abrindo possibilidade para relacionamento com países que não estão no mesmo espaço contíguo; enquanto a Comunidade Andina está centrada justamente no compartilhamento entre os Estados da cordilheira.
 

  • “World of Regions” – perspectivas para o relacionamento internacional

A compreensão da pluralidade de interpretações permite, então, a final reflexão deste texto: quais são os caminhos possíveis, desde o ponto de vista teórico, para o pensamento regional diante de eleições e mudanças de governo?
De fato, não existe resposta única e imediata. Em 2005, Peter Katzenstein argumentava em seu livro “A World of Regions: Asia and Europe in the American Imperium” acerca das regiões, devido à sua crescente importância no mundo contemporâneo e globalizado, em contraposição à persistência do Estado-nação. O “mundo das regiões” é uma expressão que reafirma a necessidade do pensamento regional nas relações internacionais.
Contudo, diante de um cenário de crises políticas e econômicas, pode-se perceber a tendência de se minimizar a importância de uma região, frente a necessidades do Estado-nação, ou mesmo de realinhamento e a pretensão de ressiginificação das regiões, de modo a atingir dados objetivos. Deve-se compreender que mesmo com a possibilidade de alternância entre propostas para a compreensão de uma dada região, ainda convivem no mesmo espaço as demais interpretações existentes.
Assim, consideradas as condições apresentadas para o pensamento regional a partir da perspectiva construtivista, pode-se dizer, por fim, que os resultados esperados das mencionadas interpretações serão dependentes da ênfase direcionada pelos atores políticos neste processo. Portanto, em um cenário pós-eleições, a forma como os mencionados novos atores políticos serão capazes de perceber e interpretar a ideia de região, será determinante para quaisquer caminhos regionais: sejam eles de continuidade, ruptura ou mesmo de construção e desconstrução.
 
Referências:
LOMBAERDE, P., SÖDERBAUM, F., VAN LANGENHOVE, L., & BAERT, F. The problem of comparison in comparative regionalism. Review of International Studies, 36(3), 731-753, 2010.
KATZENSTEIN, P. “A World of Regions: Asia and Europe in the American Imperium”. Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 2005.
LIMA, Maria Regina Soares de. “RELAÇÕES INTERAMERICANAS: A NOVA AGENDA SUL-AMERICANA E O BRASIL”. Lua Nova (90): 167-203, 2013.
SANTOS, Luís Villafañe G. “A América do Sul no discurso diplomático brasileiro”. Revista Brasileira de Política Internacional 48 (2): 185-204, 2005.
 
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Escrito por

Clarissa Correa Neto Ribeiro

Doutora e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas - Unesp, Unicamp, PUC SP. Bolsista CAPES, foi pesquisadora visitante no German Institute of Global and Area Studies - GIGA Hamburg, pelo Programa Doutorado Sanduíche no Exterior (CAPES PDSE) e realizou pelo Programa de Escala de Pos Grado da AUGM mobilidade acadêmica de mestrado junto a Universidad de la Republica (Uruguai). Graduada em Ciências do Estado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foi bolsista de Iniciação Cientifica do CNPq. Membro da Rede de Pesquisa em Politica Externa e Regionalismo (REPRI) e do Observatório de Regionalismo (ODR). Interessada em pesquisas sobre regionalismo comparado, atualmente investiga as consequências da proliferação de instituições regionais na África e América do Sul.