Foto: Governo do México

Uma das maiores e mais relevantes iniciativas de cooperação regional na América Latina é a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). Trata-se de um fórum internacional do qual participam quase todos os países latino-americanos e caribenhos, englobando 33 nações com o objetivo de estabelecer um espaço de diálogo e debate para se alcançar entendimentos em temas caros à região.

A história da CELAC pode ser traçada até a criação do Grupo de Contadora, em 1983, quando México, Panamá, Colômbia e Venezuela se uniram para discutir medidas conjuntas de lidar com a situação democrática na América Central e no Caribe, como forma de tentar encontrar uma solução pacífica em decorrência da instabilidade política em países como Nicarágua, El Salvador e Granada, principalmente diante da retomada da política intervencionista dos Estados Unidos na região. A este bloco se somaram Brasil, Argentina, Peru e Uruguai, formando o Grupo de Apoio a Contadora e, posteriormente, os países-membros deste concerto optaram por uma formalização não-institucional, dando origem ao Grupo do Rio em 1986, do qual aderiram a maioria dos Estados latino-americanos e que tinha como objetivo ser um fórum de consulta para lidar com questões de autonomia e cooperação regional (Covarrubias, 2016; Ives, 2017).

No final da década de 1990 e início da década de 2000, principalmente após a ascensão de Lula à presidência do Brasil em 2002, o país passou a buscar maior diversificação de suas estratégias de política externa, adotando uma narrativa voltada à autonomia da América Latina e lançando-se abertamente como um líder regional. O cenário governamental e ideológico na região era propício, encaixando-se dentro do fenômeno conhecido como Onda Rosa, pelo qual a maioria dos países latino-americanos se viu diante de governos de esquerda e com maiores preocupações sobre como inserir os países emergentes de forma mais autônoma em um mundo que rapidamente se globalizava. O vácuo de iniciativas de cooperação mais ambiciosas para a América Latina deu à política externa brasileira a chance de projetar o país como um líder regional (Covarrubias, 2016; Delgado, Valera, 2022). Foi a partir disso que o Brasil lançou iniciativas como a União das Nações Sul-Americanas (Unasul), em 2008, que tinha um escopo de ação mais amplo com relação à cooperação em diversas temáticas e um mecanismo de consenso com um arcabouço institucional relativamente sólido que a conferia legitimidade.

O Brasil escolheu a América do Sul como seu território de ação imediata no século XXI devido à maior coesão política, proximidade geográfica e maior facilidade de acordos. A exclusão da América Central e do México deste projeto foi deliberada, visto que a região centro-americana era historicamente mais cara à política externa mexicana e que havia dificuldade de concertação entre as ambições dos dois países. O Brasil havia adotado um modelo de cooperação horizontal, voltado à troca de tecnologias e vantagens econômicas, financeiras e comerciais entre os países emergentes do Sul Global, afastando-se e rejeitando os modelos verticais promovidos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e pela União Europeia (UE) (Vigevani, Cepaluni, 2007; Delgado, Valera, 2022).

O México, por sua vez, havia redesenhado sua política externa e suas perspectivas com relação ao regionalismo latino-americano na década de 1990, quando o país passou por um processo de liberalização comercial e reformas democráticas que o aproximou cada vez mais política e economicamente dos Estados Unidos, principalmente após a criação do Acordo de Livre-Comércio da América do Norte (NAFTA) em 1994. Com isso, o país alinhou seus objetivos de política externa com a agenda norte-americana e promoveu iniciativas de cooperação para a América Latina baseadas no sistema de governança estadunidense, como o Auxílio Oficial da OCDE e a criação da Área de Livre-Comércio das Américas (ALCA), que sofreu oposição por parte do Brasil e de outros países sul-americanos (Covarrubias, 2016).

Foi nesse contexto que, segundo Covarrubias (2016), o México percebeu que havia perdido espaço na América Latina – principalmente na América do Sul -, e se viu excluído das iniciativas promovidas pelo Brasil na região, dada a dificuldade de acordos entre os modelos econômicos e os objetivos de cooperação dos dois países. Com essa percepção, os mexicanos retomaram uma agenda regionalista mais preocupada em restabelecer o país como uma liderança regional, levando em consideração a relevância do México enquanto uma potência emergente.

Ao final da década de 2000 e início da década de 2010, o México assumiu a presidência pro tempore do Grupo do Rio. Nesse mesmo período, o Brasil procurou criar uma iniciativa local de cooperação econômica e desenvolvimento – a Cúpula da América Latina e do Caribe (CALC). O México viu a oportunidade de reinserir-se no regionalismo latino-americano ao propor a união deste grupo com o já existente Grupo do Rio, ampliando o escopo de seus objetivos e englobando grupos temáticos para discutir as possibilidades de concertação na América Latina. A CELAC surgiu então, em 2011, a partir da união entre estes dois blocos e passou a ter uma esfera de atuação mais ampla que o Grupo do Rio e a CALC, sendo não só um fórum de autonomia e debate, mas também possuindo grupos de trabalho temáticos para buscar caminhos de cooperação e integração. O Brasil se opôs inicialmente à criação da CELAC, devido às divergências com o México e elencando as dificuldades de se trabalhar em um grupo de temáticas mais amplas com a presença de mais países, mas cedeu e decidiu incorporar o bloco enquanto um membro-fundador, visto ser mais vantajoso acompanhar e participar dos trabalhos do bloco a partir de dentro (Covarrubias, 2016; Ives, 2017).

Desde sua fundação, a CELAC possui uma importância singular, pois consolidou-se como o maior bloco genuinamente latino-americano, tendo o objetivo de integrar toda a região e criar terrenos para a cooperação. Além disso, o bloco herdou a missão de tentar ser um centro de concertação tanto para reforçar a autonomia latino-americana como para tentar reforçar a agência local enquanto um ator internacional de interesses semelhantes. Atualmente, o grupo tenta se projetar como uma voz representante da América Latina no diálogo e na promoção de iniciativas de cooperação com atores extrarregionais, além de expedir declarações conjuntas sobre situações que afetam os direitos humanos, a democracia na América Latina e no mundo e os problemas coletivos globais.

No entanto, assim como outras tentativas de regionalização latino-americanas enfrentaram dificuldades e frustrações, o bloco não saiu incólume. A CELAC não conseguiu encontrar consenso sobre temas fundamentais, como no caso da crise democrática na Venezuela; além disso, não avançou nas temáticas de integração e de representação conjunta. Com a crise do regionalismo aos finais da década de 2010, caracterizada pela ascensão de líderes populistas e de extrema-direita no continente, a agenda regional latino-americana foi rechaçada e abandonada, o que afetou também a CELAC, quando a administração Bolsonaro decidiu deixar bloco em 2020, alegando divergências com relação à participação de países não-democráticos, citando Venezuela e Cuba; o país abandonou o grupo durante a presidência pro tempore do México, o que impactou na relação bilateral entre os dois (Mariano, Luciano, Bressan, 2021; Delgado, Valera, 2022).

O México, diferentemente do Brasil, não abandonou as iniciativas de integração e não passou pela experiência recente de uma liderança de extrema-direita. Desde 2018 está sob a presidência de um líder mais voltado à esquerda, López Obrador, que já demonstrou ser afeito à integração latino-americana e à projeção do México como um líder local. Durante a presidência pro tempore do país na CELAC, Obrador retomou em 2021 as cúpulas multilaterais que estavam paralisadas desde 2017, ampliou o número de grupos temáticos e aprofundou as relações do bloco com outros atores, destacando-se a China. No entanto, conforme destaca Covarrubias (2016), a busca do país por modelos de integração mais voltados ao comércio internacional e limitados à cooperação econômica permanece uma constante na política externa mexicana e dificulta a concertação de outros objetivos com países latino-americanos, bem como instiga algumas discordâncias com as metas brasileiras para a região.

Pode-se dizer que as políticas externas do México e do Brasil circulam sob uma lógica de dependência de trajetória (Collier, Munck, 2022), pelo qual o México ainda busca por meios de sua política externa e de iniciativas regionais maior diversificação econômica e abertura de mercados, como parte de uma estratégia de diminuir sua dependência com relação aos Estados Unidos sem abandonar os valores políticos, econômicos e institucionais que a reforma dos anos 1990 atrelaram ao país. No caso do Brasil, a projeção do país enquanto uma potência emergente e regional permeou a narrativa política das primeiras administrações de Lula (Vigevani, Cepaluni, 2007) e outras anteriores à administração Bolsonaro, e voltou a ser uma pauta de relevância para o país, como pode ser visto a partir de uma série de viagens internacionais, avaliações de reabertura de embaixadas, retomada de relações bilaterais e iniciativas regionais e multilaterais que a terceira administração de Lula assumiu desde que tomou posse.

Nesse contexto, o Brasil retornou à CELAC em janeiro de 2023 como parte da estratégia de reinserção internacional do país através de representação na América Latina; porém, levando em consideração tanto o contexto da recente crise do regionalismo, ainda em andamento, e da continuidade das discrepâncias entre Brasil e México ao longo dos anos, o que se segue do futuro do bloco é incerto. O presidente mexicano López Obrador já declarou concordância com Lula e demonstrou grande sinergia política e abertura para cooperação, além de uma preocupação conjunta e perspectivas semelhantes com relação aos recentes problemas globais (Pereira, 2022). Por outro lado, Obrador deu declarações de que gostaria de transformar a CELAC em um bloco econômico aos moldes da Comunidade Econômica Europeia, que deu origem à UE, e que gostaria até mesmo de incluir os Estados Unidos e o Canadá neste bloco, como uma espécie de segunda tentativa de ALCA (Frenkel, 2023a; Schmidt, 2021); esse exemplo reforça o interesse mexicano por uma liberalização de mercados no continente.

Em 2030, os países-membros da CELAC participaram de duas grandes cúpulas onde foram discutidas a atual inserção do bloco no contexto global. O primeiro encontro, em janeiro, reuniu os representantes em Buenos Aires para discutir a conjuntura internacional, estratégias coletivas de recuperação econômica após a crise provocada pela pandemia de COVID-19, bem como estratégias regionais para prevenção de pandemias e de segurança alimentar, de saúde e intercâmbio de vacinas e materiais médicos e destacando-se sobretudo a agenda ambiental. Nesta ocasião também foram agendadas a cúpula conjunta CELAC-UE, uma cúpula conjunta CELAC-China para 2024 e uma cúpula de ministros econômicos dos países-membros para discutir a recuperação pós-pandêmica (Brasil, 2023).

Esse incremento de atividades pode ser interpretado como uma tentativa de reinserção da região no cenário internacional e de lidar conjuntamente com os resultados desastrosos que a pandemia de COVID-19 provocou no continente. Na ocasião da cúpula de Buenos Aires, o Brasil declarou interesse em voltar a fazer negócios com países sul-americanos e a financiar obras de infraestrutura em países vizinhos, bem como ampliar e reestabelecer diálogos, seguindo o paradigma de cooperação que estabeleceu em momentos anteriores de sua política regional e repetindo um interesse focal na América do Sul (Frenkel, 2023a).

No caso da mais recente cúpula CELAC-UE, realizada em julho, a diplomacia brasileira tentou emplacar o protagonismo do país nas questões ambientais e recusou os paradigmas de desenvolvimento coordenados pela UE. Conforme Frenkel (2023b), a perda de protagonismo internacional da Europa faz com que o bloco veja a América Latina como uma potencial grande parceira para a transição energética e para o fornecimento de recursos verdes. Lula, no entanto, resfriou o debate ao não suscitar nenhum acordo formal nessa área, pretendendo relegar aos latino-americanos este protagonismo, mesmo que discordando de outros parceiros regionais, como o Chile, que defendem uma cooperação ampliada e até mesmo uma liderança da UE na questão ambiental.

Tendo isso em vista, nota-se que a CELAC se estabilizou como um importante fórum regional que resistiu parcialmente à recente crise do regionalismo latino-americano. Desde que surgiu, ampliou seu escopo de atuação para além de um local de debates, incorporando cada vez mais grupos temáticos, estabelecendo cúpulas com atores extrarregionais e estabelecendo planos de ação conjunta para problemas globais, destacando-se as crises ambientais e climáticas. No entanto, vale destacar também que o bloco não possui altos níveis de institucionalização e ainda atua como um fórum informal, dando ao país que ocupa a presidência pro tempore uma maior disponibilidade burocrática para pautar as discussões, o que pode resultar em uma grande variação de objetivos conforme mudam os países que a presidem e seus presidentes. 

Conforme Frenkel (2023a, 2023b), a CELAC pode servir para alavancar a agência latino-americana na questão ambiental como uma demandante por financiamento dos países desenvolvidos para a preservação no continente e para a transição energética. No entanto, o futuro do bloco guarda incertezas: primeiro, pois a crise do regionalismo, agravada pelas emergências de extrema-direita, ainda não acabou e pode ceder espaço a dinâmicas de desconcerto regional – caso líderes abandonem os já frágeis e não-institucionalizados processos de integração; segundo, pois as discrepâncias do regionalismo latino-americano e seus principais líderes – Brasil e México, juntamente com suas zonas de influência imediata -, são acentuadas e há dificuldades em se encontrar um ponto de equilíbrio nas pautas.

O México tornou-se um líder regional para seus parceiros mais próximos, como Colômbia, Peru e Chile, cuja pauta principal está focada na liberalização comercial e no estabelecimento de parcerias econômicas; estes países são mais afeitos a modelos de Cooperação Vertical e aos ditos ‘valores ocidentais’, mais preocupados com a questão da invasão russa à Ucrânia e aos problemas democráticos em países latino-americanos. De outro lado, o Brasil de Lula restabeleceu uma política externa voltada à autonomia e liderança por meio de sua inserção internacional e do pragmatismo, predileção por modelos de Cooperação Sul-Sul e busca de protagonismo para si e para a América Latina como sua principal região de influência e que busca representar. O que se vê é uma região que caminha a passos lentos e ainda com baixa capacidade de agência internacional coletiva, em um cenário internacional permeado por dificuldades e em ampla mudança, e que demanda ação coordenada dos países latino-americanos para que a atuação global da região seja reconhecida e efetiva. A CELAC é um caminho estabelecido, mas não consolidado, e pode ser um grande motor de integração e de representação para a América Latina no mundo atual caso suas diferenças e desafios sejam superados e que arcabouços institucionais com metas bem estabelecidas sejam criados.

 

Referências Bibliográficas

 

Collier, D.; Munck, G. L. (2022) “Critical Junctures and Historical Legacies: Insights and Methods for Comparative Social Science”. Lanham : Rowman & Littlefield.

Covarrubias, A. (2016) “El reacomodo de México en una América Latina cambiante: de la euforia democrática a la introversión”. Pensamiento propio, 44.

Delgado, R. G. M.; Valera, A. H. (2022) “Latin America looking for its autonomy: the (im)possibility of concerting between the foreign policies of Brazil and Mexico”. Mural Internacional (13), e70619. DOI:10.12957/rmi.2022.70619.

Frenkel, A. (2023a) “¿Qué pasó en la cumbre de la Celac?: Entre el regreso de Brasil, las crisis y los desafíos geopolíticos”. Revista Nueva Sociedad [on-line], jan. Disponível em: https://nuso.org/articulo/Celac-cumbre/.

Frenkel, A. (2023b) “La cumbre UE-Celac: ¿un acercamiento sin acuerdos?”. Revista Nueva Sociedad [on-line], jul. Disponível em: https://nuso.org/articulo/ue-celac/.

Ives, D. (2017). “A política externa do México durante o Estado neoliberal (1982-2012)”. Brazilian Journal of International Relations, V.6, Ed.1, pp. 150-167, ISSN 2237-7743.

Mariano, K. P.; Luciano, B. T.; Bressan, R. N. (2022) “Liquid Regionalism: a typology for regionalism in the Americas”. In: Revista Brasileira de Política Internacional, 64 (2). DOI:10.1590/0034-7329202100204.

Pereira, T. (2022) “Lula é muito importante ‘na América Latina e no Mundo’, diz presidente do México”. Rede Brasil Atual [on-line], notícia, 02/mar. Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/politica/presidenter-mexico-lula-muito-importante-america-latina-mundo/.

República Federativa do Brasil [Brasil]. (2023) “VII Cúpula da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) – Buenos Aires, 24 de janeiro de 2023”. Nota à imprensa nª 31/2023 [on-line]. Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/VII-Cupula-da-Comunidade-dos-Estados-Latino-Americanos-e-Caribenhos%20-CELAC.

Schmidt, T. (2021) “Em cúpula da Celac, México defende bloco ‘semelhante a União Europeia’ para América Latina” Brasil de Fato [on-line], notícia, 18/set. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/09/18/em-cupula-da-celac-mexico-defende-bloco-semelhante-uniao-europeia-para-america-latina.

Vigevani,  T;  Cepaluni,  G. (2007) “A  Política  Externa  de  Lula  da  Silva: A  Estratégia da  Autonomia  pela  Diversificação”.  Rio de Janeiro, Contexto  Internacional,  v.  29,  n.  2,  pp.  273-335, jul/dez.

Escrito por

João Roberto Fava Junior

Mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-graduação "San Tiago Dantas" (UNESP/UNICAMP/PUC-SP). Bacharel em Ciências Sociais pela Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (FCLAr), Campus da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP). Membro do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Cultura e Desenvolvimento (GEICD) e do Observatório de Regionalismo (ODR). Tem interesse de pesquisa nos temas de Integração Regional Latino-Americana, Política Regional Mexicana, Democracia, Direitos Humanos e Política Contemporânea.