Diante das transformações ocorridas nos últimos tempos na América Latina, sejam pelas mudanças de orientações nos governos, sejam pelas crises políticas e econômicas que atingiram a região, pode-se perceber também um câmbio na abordagem de alguns de seus países no que se refere ao relacionamento com os vizinhos. Se em determinado momento a atuação regional foi tratada com prioridade pelas políticas exteriores dos países, que instrumentalizavam e utilizavam dos blocos como suas plataformas, merece destaque a forma de manifestação recentemente adotada pelos Estados e os rumos do regionalismo latino-americano.

            Assim, o presente texto propõe apresentar reflexões iniciais acerca do momento vivido pela política regional, sem a ambição de propor definições para algo ainda em desenvolvimento, mas com o objetivo de pensar as escolhas e seus significados. Da mesma forma, pretende dar continuidade aos debates realizados pelo Observatório nas últimas semanas, que podem ser conferidos aqui.

            Ponto fulcral para o debate é a crise que assola a Venezuela desde a morte do presidente Hugo Chávez. Em 2013, as eleições presidenciais no país, vencidas pelo sucessor governista Nicolás Maduro com uma pequena margem de votos, foram questionadas pela oposição, e se seguiram de momentos de forte polarização, violência civil e crise econômica. Se tal descrição pouco se difere dos acontecimentos da última semana e as eleições de 2018, a forma como a região reage a esses acontecimentos serve como base para comparação.

            Após as eleições de 2013, a União de Nações Sul Americanas – UNASUL – e a Organização dos Estados Americanos – OEA-, dois mecanismos regionais com competências sobre democracia, manifestaram-se. Enquanto a mediação por parte da OEA foi rejeitada logo de início, principalmente por divergências entre a Venezuela e os Estados Unidos, o governo venezuelano aceitou apenas a participação da UNASUL no diálogo com a oposição, cuja delegação contou inclusive com a participação do ministro de Relações Exteriores brasileiro.

            No ano de 2015, com as eleições parlamentares prestes a acontecer, renovou-se a preocupação com a democracia na Venezuela, e, uma vez mais, apenas a UNASUL teve permissão para participar como observadora do processo, no qual a oposição saiu vencedora do pleito. No entanto, no decorrer dos meses seguintes, as atitudes do Executivo trataram de neutralizar o Legislativo eleito, “usando a Suprema Corte, o órgão eleitoral nacional e as forças militares em seu favor, anulando as deliberações dos parlamentares e reprimindo manifestações populares de oposição” 

            Desde então, destacou-se a participação do secretário geral da OEA, Luís Almagro, cujas tentativas de fazer cumprir a ordem democrática acirraram as tensões entre a Organização e o governo de Maduro. Conforme demonstra Weiffen (2017), no ano de 2016, após uma troca de insultos mútuos entre Maduro e Almagro através das redes sociais, o secretário geral invoca a Carta Democrática Interamericana e convoca uma reunião especial do Conselho Permanente para avaliar as sanções a serem aplicadas à Venezuela devido a suas violações à democracia e aos direitos humanos. É interessante destacar que, na ocasião, a Venezuela foi capaz de se valer das competências concorrentes dos mecanismos regionais existentes e instrumentalizar a UNASUL, através de seus aliados, para rejeitar a aplicação da cláusula, argumentando que o processo de diálogo em andamento no país não deveria ser minado pela condenação da instituição interamericana (WEIFFEN, 2017).

            O arrefecimento das tensões e a acusação de políticas “imperialistas e oligárquicas”  culmina, em 2017, com o pedido venezuelano de deixar a OEA (talvez em uma tentativa de evitar também uma suspensão do bloco), situação inédita para a Organização. Contudo, esse mesmo ano é marcado por uma crise na UNASUL, a qual, com divisões ideológicas entre seus membros, não consegue chegar a um acordo para a indicação de um novo Secretário Geral, gerando uma situação de paralisia em suas atividades.

            Com a crise escalada, a situação política venezuelana continuou a se deteriorar, e atingiu novos picos com a instauração, em maio de 2017, por parte do governo, de uma Assembleia Nacional Constituinte (ANC), que causou polêmica ao deslegitimar os candidatos opositores eleitos e pois “não haveria motivos concretos para mudar a Constituição”.  As eleições transcorreram sob fortes acusações de fraudes e manipulação de resultados, inclusive por parte da empresa responsável pela contagem dos votos.

            Diante de uma crise de legitimidade das instituições regionais e as dificuldades de se chegar a um acordo nos foros existentes em decorrência de divisões internas, os países da região recorrem a novos alinhamentos para demonstrarem rechaço à situação vivida pelo país bolivariano. É assim que, em 8 de agosto de 2017, Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Honduras, México, Panamá, Paraguai, e Peru, com posterior adesão de Guiana e Santa Lúcia, criam o Grupo de Lima (GL) através da assinatura da Declaração de Lima, com o objetivo de organizar uma saída para a crise na Venezuela. Desde então, o GL não reconheceu a ANC, e condenou enfaticamente as violações aos direitos humanos, a existência de perseguição, a repressão e os presos políticos, e a falta de eleições livres, além de ter se comprometido a acompanhar a situação venezuelana para a resolução do impasse.

   Durante a última semana, conforme texto publicado pelo ODR, após o pleito eleitoral que reelegeu a Maduro como presidente, o GL volta a se manifestar acerca da legitimidade e viabilidade democrática do país bolivariano, condenando o processo eleitoral e convocando seus embaixadores para consulta, afirmando-se como principal canal dos vizinhos para a manifestação política. Isso porque, conforme também já discutimos em nosso site, a UNASUL vive um momento de esvaziamento após a suspensão da participação de metade de seus membros – exatamente os países sul-americanos que integram o GL -, que não conseguem chegar a um acordo com os demais vizinhos.

            A OEA se manifestou sobre o assunto (com palavras enfáticas de seu secretário geral), mas, sem a participação do bloco sul-americano na mediação da crise, pode-se refletir acerca do momento vivido. Se em momentos anteriores a afirmação da UNASUL servia ao propósito de oferecer soluções regionais para problemas regionais, pode-se questionar se o que assistimos seria a proposição de um outro modelo de abordagem após as mudanças políticas e o chamado “giro a direita” na região.

            De maneira geral, conforme afirmado anteriormente, o objetivo do presente texto não era rotular novos períodos regionais ou delimitar acontecimentos ainda em desdobramento, e, sim, propor uma reflexão. Assim, destaca-se a compreensão de que o GL não significa a composição de um novo bloco regional, e não necessariamente significa um foro permanente, ou se trata de uma forma de institucionalização de posicionamentos.

          No entanto, o que se pode afirmar por ora é que significa, sim, uma escolha de como se posicionar perante a região, e que se difere de momentos anteriores. É um indício da escolha do multilateralismo com a participação de elementos externos à região e de foros não institucionalizados antes dos blocos regionais. Nesse sentido, a “América do Sul”, construção tão cuidada na política externa brasileira dos anos 2000, perde espaço para uma abordagem mais “americana” ou “continental” (contando participação do Canadá e outros países da América central), a partir do novo alinhamento ideológico dos países envolvidos.

Diante do exposto, o que nos resta afirmar é que a continuidade das escolhas políticas, dos foros regionais e do relacionamento entre vizinhos seguirá como tema de análises futuras dos pesquisadores do ODR.

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Escrito por

Clarissa Correa Neto Ribeiro

Doutora e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas - Unesp, Unicamp, PUC SP. Bolsista CAPES, foi pesquisadora visitante no German Institute of Global and Area Studies - GIGA Hamburg, pelo Programa Doutorado Sanduíche no Exterior (CAPES PDSE) e realizou pelo Programa de Escala de Pos Grado da AUGM mobilidade acadêmica de mestrado junto a Universidad de la Republica (Uruguai). Graduada em Ciências do Estado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foi bolsista de Iniciação Cientifica do CNPq. Membro da Rede de Pesquisa em Politica Externa e Regionalismo (REPRI) e do Observatório de Regionalismo (ODR). Interessada em pesquisas sobre regionalismo comparado, atualmente investiga as consequências da proliferação de instituições regionais na África e América do Sul.