Jacqueline Gobbis Arantes
Heloisa Cristina Malta

Introdução

 

Um dos grandes debates de inserção internacional, e que adentra a temática do regionalismo, são os compromissos e princípios para uma agenda global digital. Essa agenda visa acelerar o alcance de alguns dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)  para estabelecer princípios, objetivos e ações para o avanço de um ambiente digital aberto, seguro e centrado no ser humano com base em direitos fundamentais, através de uma governança multissetorial. Com a aproximação da devolutiva dos países dos acordos que compõem a Agenda 2030, uma das iniciativas da “Our Common Agenda”, elaborada pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, é o Pacto Global Digital, que foi aberto para consulta pública no início de 2023, com a expectativa de que o resultado seja acordado a nível internacional junto à Assembleia Geral da ONU de 2024, no evento internacional “Summit of the Future”.

Como não poderia deixar de ser, dentro dos processos tradicionais da governança da Internet, as discussões e proposições têm sido feitas em caráter multissetorial – ou seja, ouvindo os diferentes setores da sociedade, representantes governamentais, setor privado, acadêmicos e sociedade civil. Para contribuir ainda mais com as  políticas domésticas dos países, os governos estão conscientes que esses objetivos somente serão atingidos com a cooperação internacional, o que reforça o papel das organizações internacionais para impulsionar as ações em prol da execução dos ODS. Dentre estas, destacamos neste artigo o papel que os blocos regionais podem ter como instrumentos de facilitação para o desenvolvimento de iniciativas e de políticas conjuntas.

Muito presente na governança global da Internet desde a década de 2000, a ONU aumentou nos últimos cinco anos seu papel dinamizador de políticas digitais, com uma agenda ampla e voltada para uma conciliação com os ODS. Em 2018, o Secretário-Geral criou o Painel de Alto Nível sobre Cooperação Digital, de caráter multissetorial, abrindo chamada pública de contribuições; em 2019, foi lançado o relatório “A Era da Interdependência Digital”, que já apresenta algumas diretrizes e os principais problemas em comum nessa governança; em 2020, algumas áreas de foco apareceram no “Roteiro para Cooperação Digital”, cuja implementação é liderada pelo Enviado de Tecnologia da ONU, Amandeep Singh Gill.

O Pacto Global Digital surge como uma súmula de todos esses processos, além de permitir uma reavaliação das prioridades da agenda digital global. Antes de chegarmos ao prazo da Agenda 2030, em 2025 haverá a revisão do processo da Cúpula Mundial para a Sociedade da Informação (WSIS) no qual será discutido a continuidade do Fórum de Governança da Internet (IGF), que buscam manter os espaços de discussão e a coerência das agendas desse tema tão complexo e fragmentado por diferentes atores, posições e usos da Internet que afetam a vida em sociedade.

Dentre os 17 ODS, alguns  se destacam pela centralidade que as ferramentas da Internet podem cumprir em sua realização, tanto quanto de agendas regulatórias e estratégias nacionais que os Estados já estão enfrentando e devem enfrentar nos próximos anos. No quesito das movimentações das organizações internacionais mais representativas, podemos destacar que a União Europeia (UE) ressalta como um de seus princípios o esforço para incorporar a Agenda 2030, no sentido de assegurar um mundo melhor para todos, adotando o desenvolvimento sustentável como princípio central na formulação de políticas internas e externas do bloco.

Nesse sentido, com o intuito de acompanhar regularmente as ações dos ODS na UE, foi criada a iniciativa da Comissão Europeia que, sob a liderança da Presidenta Ursula Von Der Leyen (2019 – em curso), apresentou um ambicioso programa político para a promoção dos 17 ODS e da sustentabilidade na UE, os quais estão divididos em 6 prioridades que orientam as suas ações: “Pacto Ecológico Europeu”; “Uma economia ao serviço das pessoas”; “Uma Europa preparada para a Era Digital”; “Promover o modo de vida europeu”; “Uma Europa mais forte no mundo”; e “Um novo impulso para a democracia europeia”.

Por isso, a União Europeia consiste em um ator de suma importância para elaboração da Agenda 2030, como por exemplo, busca moldar os parâmetros dos debate, fortalecendo o discurso favorável ao desenvolvimento sustentável global (incorporado também nas suas negociações comerciais e parcerias internacionais), demonstrando o interesse da UE em sua busca para desempenhar um papel de liderança mundial na execução dessa agenda.

Outra organização importante é a Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN). Os governos asiáticos realizaram contribuições para a Agenda 2030 na medida em que compreenderam a relevância desta para o continente, levando em consideração que os países da região vivenciaram, nas últimas décadas, um crescimento econômico extensivo, que embora tenha promovido em muitos desses países um importante desenvolvimento, não foi acompanhado de políticas públicas adequadas para lidar com vários problemas ligados à falta de políticas sociais e ambientais. Esse desafio se revela em problemas como o do aumento da desigualdade social, fato demonstrado pelos dados recentes, de que a região está composta por dois terços das pessoas que vivem em situação de pobreza no mundo (Servaes, 2017).

Como desafio adicional, os países da região se deparam com dificuldades culturais para incorporar a Agenda 2030. Diferentemente dos demais continentes, um aspecto que merece destaque é o compromisso internacional em matéria de direitos humanos, expresso por meio da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948; os asiáticos têm buscado enquadrar suas tradicionalidades nos direitos tidos como universais, ou seja,  incorporar a preocupação com as liberdades individuais em suas culturas coletivistas milenares.

Este fundamento que podemos denominar como “valores asiáticos” demonstra a importância da Comunicação para o Desenvolvimento e Mudança Social, que está dentro da discussão do ODS nº 16, como uma questão técnica a ser analisada. Em outras palavras, para que de fato os ODS venham a ser concretizados e estejam no pilar da criação de políticas públicas estatais, eles devem ser incorporados na cultura e no senso comum das populações mundiais. Sem esse processo de adesão social, torna-se muito difícil inclusive estabelecer avaliações de funcionamento do bem simbólico do desenvolvimento sustentável proposto pela Agenda 2030. A Internet como instrumento facilitador e presente em todas as regiões do globo se mostra, assim, um caso de estudo interessante para tratar de governança global, inclusive dentro da Agenda 2030.

 

O papel da Internet no cumprimento dos ODS

 

Com a centralidade da Internet na vida cotidiana, é possível percebê-la como um catalisador dos ODS, ajudando a conectar pessoas, promovendo a inovação, aumentando o acesso à informação e serviços, e apoiando a realização de mudanças necessárias para um futuro mais sustentável. Isso fica claro quando olhamos, por exemplo, para o ODS 3.7, sobre o acesso universal a serviços de saúde, informação e educação reprodutiva; e para o ODS 3.8, sobre a cobertura universal de saúde e acesso a serviços essenciais de qualidade. O papel da telemedicina, nesse sentido, vem se expandindo e a “plataformização” dos governos permite um acesso facilitado através de aplicativos como, no Brasil, o ConectSUS. Para tanto, é primordial que governos e múltiplos atores avaliem o funcionamento dessas plataformas e que seus usos estejam de fato disponíveis a todos os cidadãos – ou seja, o acesso à Internet é um direito básico (ODS 9c).

Além da saúde, a Internet é vital para uma gama de serviços e acesso à informação, especialmente em se tratando de educação e emprego (ODS 4.3). Naturalmente, cumprir com esses ODS pressupõe atingir maiores níveis de produtividade e aumento na inovação tecnológica (ODS 8.2). Ao mesmo tempo, é vital expandir o acesso a serviços bancários e a informações sobre educação financeira para toda a população (ODS 8.10).

Comunicação e engajamento, nesse sentido, podem levar ao cumprimento dos ODS 10.6 e 16.6, sobre maior representatividade dos países em desenvolvimento em instituições econômicas internacionais, e uma maior representação e participação ativa do Sul Global em instituições internacionais como um todo. Fica claro, portanto, o efeito catalisador e, ao mesmo tempo, impulsionador que a Internet propicia, podendo ajudar a reduzir a desigualdade de acesso a serviços e a melhorar a qualidade de vida das pessoas, contribuindo para o alcance das metas de vários ODS.

 

Agenda regulatória

 

Os pontos mais específicos da agenda regulatória para a Internet global, o ODS 10.3 visa “garantir a igualdade de oportunidades e reduzir as desigualdades de resultados por meio da eliminação de leis, políticas e práticas discriminatórias,   promoção de legislação, políticas e ações adequadas a este respeito” propõe alcançar seus objetivos. Desta maneira, a efetivação de medidas não-discriminatórias em leis de proteção de dados e de inteligência artificial (esta última, que vem sendo discutida no legislativo brasileiro em 2023) são basilares para o cumprimento deste objetivo, especialmente sobre o tratamento automatizado de processos que influem nas esferas da saúde, educação, emprego e vida digna.

O ODS 16.3, sobre promoção do Estado de Direito, dialoga também com outra pauta em discussão pelo governo brasileiro – e vários governos mundo afora em 2023 – que é a regulação de plataformas de mídias sociais. Após os muitos ataques à democracia dos últimos anos, a disseminação de desinformação e discurso de ódio, as questões de regulamentação do  que é permitido ser postado e disseminado por essas plataformas, a responsabilidade atribuída a elas (ou a falta de), e a demanda por um órgão regulador são questões delicadas que passam pela promoção da liberdade de expressão e da garantia de outros direitos fundamentais.

Ainda sobre as plataformas, e retomando a questão de “plataformização” de serviços públicos, a regulamentação sobre identidade digital é outra pendência que se encontra em debate global. Ela se relaciona com o ODS 16.9: “até 2030, fornecer identidade legal para todos, incluindo o registro de nascimento”. Embora já existam muitas iniciativas a esse respeito, ainda há uma série de dificuldades que perpassam desde o acesso à Internet, até a qualidade e segurança dos dados pessoais ali inseridos, podendo haver também tratamento discriminatório e redução do acesso à serviços.

Por fim, um ponto importante está no ODS 16.10, que aborda o  acesso público à informação e proteção de liberdades fundamentais. É cada vez mais demandado pelas sociedades a efetivação, na prática, de leis de acesso à informação – pautando um funcionamento mais transparente dos governos com cidadãos, adaptado às tecnologias de informação e comunicação através da Internet.

 

Estratégias nacionais para políticas digitais

Os pontos citados anteriormente denotam a necessidade de se ter uma estratégia nacional para políticas digitais. Dentro da governança global da Internet, um termo que está em alta é o da “soberania digital”, que embora possa ter diferentes interpretações, estabelece, de modo geral, como um país se organiza estrategicamente nessa governança, tanto em termos regulatórios, quanto em termos de infraestrutura.

O ODS 4b foca na educação para os países em desenvolvimento, incluindo formação profissional em tecnologias da informação e comunicação. Isso tem sido um desafio especialmente para os países do Sul Global, que aumentaram sua dependência de empresas do Norte em serviços educacionais online, especialmente no contexto da pandemia de COVID-19. Muitas universidades públicas fizeram acordos com o setor privado estadunidense para fornecimento de serviços em nuvem, armazenamento de dados, e-mails e outras facilidades – mas que criaram uma dependência bastante delicada. Uma boa estratégia de soberania digital poderia ser investir em infraestrutura pública nacional, incentivando as pesquisas acadêmicas e fomentando o nascimento de profissionais da área – muitos dos quais já realizam esse tipo de trabalho, com baixo ou nenhum financiamento público.

Para além da educação, o ODS 9.1 visa o desenvolvimento de infraestrutura de qualidade em nível regional, o que pode priorizar a conexão com a Internet. Muitas comunidades ainda não possuem acesso significativo e, com isso, perdem oportunidades de desenvolvimento humano, econômico e social. Já existem inúmeros projetos envolvendo uma gama de atores que trabalham com redes comunitárias, e se os governos se somarem a essas iniciativas, os ganhos podem ser muito benéficos. Nesse sentido, manter o caráter multissetorial da governança da Internet se mostra essencial para atingir vários ODS, com decisões inclusivas e representativas – o que, em si mesmo, já efetiva o ODS 16.7.

No caso do continente americano, dada a diversidade do contexto político e das assimetrias entre os países, encontramos uma menor convergência regional em torno da sustentabilidade; a forma como os Estados e blocos estão incorporando os ODS mostra-se ainda com pouca sinergia. Diferentemente da UE, que demonstrou uma preocupação ativa com o desenvolvimento sustentável, o tema foi sempre controverso nos EUA, que assumiu uma postura defensiva frente às propostas, especialmente por ser considerado o principal poluidor ambiental, e por preocupações com os impactos negativos que essas políticas poderiam representar em sua economia.

Durante o governo de Donald Trump (2017-2020), essa postura foi levada ao extremo, com o governo assumindo uma postura “anti-ambiental”, marcada por uma desregulamentação de normas de proteção ao meio ambiente sem precedentes no país, exemplificada pela saída do Acordo de Paris sobre o Clima, assinado em 2015 pelo seu predecessor no cargo, Barack Obama (2009-2016). Com as eleições de 2020 e a vitória de Joe Biden, iniciou-se uma revisão dessa postura a partir do projeto “Building a Better America”, o qual usa os 17 ODS para medir e compreender a posição dos EUA na dimensão econômica, social e ambiental, e quais são as medidas necessárias para alcançar esses objetivos. Essa guinada recente na política externa estadunidense, promovida pela administração de Biden, busca reforçar sua presença nos debates e restabelecer a liderança global dos Estados Unidos nesta agenda.

No caso da América do Sul, a Agenda 2030 acabou coincidindo com a crescente polarização política e a ascensão de governos cuja principal bandeira é a revisão dos sistemas políticos e do papel do Estado. Diante de tais desafios, há questionamentos sobre a capacidade e legitimidade do Estado em garantir a permanência de políticas públicas inclusivas, incentivadas e implementadas nas últimas décadas pelos debates sobre os direitos humanos e a sustentabilidade.

O questionamento dessa agenda de direitos, por parte de grupos políticos mais à direita (e inclusive com posturas antidemocráticas) na região, colocou as lutas promovidas pelos movimentos sociais numa posição defensiva e segmentada nas últimas décadas, excluindo de suas agendas os ODS. Ao mesmo tempo, impactou negativamente os processos de regionalismo sul-americanos que buscaram, de alguma forma, incorporar essa agenda de direitos durante a primeira década do século 21, mas que foram sendo desmontados nos últimos anos, como por exemplo as iniciativas do Mercosul e da Unasul.

As narrativas de descontentamento social são aproveitadas por atores anti-establishment, que questionam os valores da democracia e da globalização; este é um discurso que não se limita à América Latina, sendo um fenômeno global. Apesar destes movimentos se apresentarem como nacionalistas, fazem parte de uma rede reacionária internacional que, em comum, questiona os direitos humanos e  defende o “povo autêntico”, contra as elites e burocracias não-eleitas.

 

Considerações finais

 

Sendo a consolidação dos ODS e sua efetiva implementação em todos os países uma das principais questões na agenda da governança global, no caso dos países emergentes, as dificuldades do processo são tanto políticas, quanto econômicas e culturais, e o custo acaba sendo maior do que para os países mais ricos: o investimento na infraestrutura necessária para o pleno acesso dos cidadãos à Internet é muito elevado, enquanto que nos países ricos essa estrutura já se encontra em um processo avançado. A meta dos ODS é promover  o acesso ao desenvolvimento de maneira igualitária, e que ocorra uma conectividade significativa. Ter acesso não é o bastante, mas é preciso também pensar em políticas públicas de educação digital.

No plano internacional, existem duas aberturas para cooperação Sul-Sul nos próximos anos que podem endereçar os ODS: o G20, que conta com uma Troika do Sul Global e a presidência brasileira em 2024; e a “Summit of the Future”, pela ONU. Nessa segunda instância, a agenda dos ODS está inteiramente relacionada e diferentes processos de consulta têm ocorrido ao longo de 2023, como o Pacto Global Digital. Além disso, muito se fala em um “multilateralismo efetivo” e como a governança global pode ser melhorada, trazendo então uma oportunidade para o Sul Global ter uma voz mais ativa na formulação da agenda dessa governança.