Foi institucionalizado a partir de 1992, com a criação da Convenção-Quadro das Nações Unidas para as Mudanças do Clima (UNFCCC, do inglês), um conjunto de mecanismos globais com o propósito de que os países interessados pudessem conjuntamente encontrar soluções para mitigar e se adaptar aos efeitos adversos da instabilidade climática. Exemplo disso são as ferramentas construídas no contexto do Protocolo de Kyoto e, mais recentemente, sob a égide do Acordo de Paris, como o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), por exemplo. 

Enquanto parte da organização regional,os países da União Europeia (UE) atuam em bloco no contexto da governança global do clima e, desde o princípio das negociações, recebe destaque pelo seu papel de liderança, ao passo em que pressiona a comunidade internacional para que sejam negociadas metas de redução de emissões de gases de efeito estufa (GEEs) mais ambiciosas. Nas negociações do Protocolo de Kyoto, em 1997, a UE agiu como força motriz ao longo das negociações e o mesmo pode ser dito sobre seu papel nas discussões do Acordo de Paris em 2015 (OBERTHÜR; KELLY, 2008).

Nesse sentido, observar o engajamento da organização com a agenda climática, especialmente com os mecanismos de mercado em prol da redução de emissões, pode oferecer insumos sobre seu possível comportamento durante a 26.ª edição da Convenção do Clima, tendo como foco as discussões sobre o artigo 6 do Acordo de Paris. A expectativa era de que esta edição da Conferência das Partes (COP) ocorresse em Glasgow entre os dias 9 e 29 de novembro de 2020. Entretanto, com a crise de saúde global em decorrência da pandemia de Coronavírus (COVID-19), o comitê administrativo das COPs decidiu adiar para as semanas entre os dias 1 e 12 de novembro de 2021 (IISD, 2021).

Antes de nos aprofundarmos nesta discussão, vale ressaltar que, embora a UE seja reconhecida como um ator de pleno direito dentro do Regime Internacional de Mudanças do Clima (RIMC), as mudanças climáticas são uma área de competência compartilhada entre os membros do bloco e a UE. Logo, o envolvimento da organização regional no RIMC não substitui os compromissos assumidos individualmente pelos seus Estados-membros, mas complementa sua participação (VAN SCHAIK, 2010).

Mais recentemente, com a assinatura e ratificação do Acordo de Paris por vários países da comunidade internacional, as discussões no âmbito das COPs giram ao redor de como operacionalizar esse mecanismo. Em outras palavras, passam pela tentativa de  criar um manual de regras sobre como agir em prol da manutenção da temperatura global abaixo de 2º Celsius, tendo 2020 enquanto marco temporal, pois foi o ano em que o documento assinado em Paris entrou em vigor. O problema é que desde sua concepção existem impasses sobre um dos artigos presentes neste manual de regras. 

Conforme Marcu e Duggal (2019), o artigo 6 do Acordo de Paris trata da transição do MDL para mecanismos de mercado e não-mercado, que potencialmente auxiliam a promoção de medidas e iniciativas de mitigação da emissão de GEEs na atmosfera a um baixo custo. No entanto, há um dissenso sobre as diretrizes que guiam esse processo de transição, sobretudo no que diz respeito aos princípios que fundamentam o mecanismo no contexto do Acordo de Paris. Há a compreensão de que a transição como tem ocorrido atualmente minaria a ideia de “responsabilidades comuns, porém diferenciadas”, conceito-chave bastante articulado durante o mandato do Protocolo de Kyoto.

Dessa forma, a tendência demonstrada durante as quatro últimas edições das COPs parece ser de estagnação. A realização da COP 22 em 2016 e sediada em Marrakesh foi bastante simbólica, na medida em que representou o início do ciclo preparatório para uma nova era das negociações do clima. Exemplo disso é que foi reforçado, por meio do seu texto final, a importância de que os países-parte da UNFCCC gradativamente intensifiquem seus compromissos com a redução de emissões e esforços de adaptação (ARAÚJO; NETO; SÉGUIN, 2019).

Apesar disso, nas três edições seguintes (COPs 23, 24 e 25) a discussão técnica em torno do artigo 6 ainda foi um problema. Isto porque os países em desenvolvimento envolvidos na tomada de decisão se mantiveram bastante resistentes em aceitar a forma como essa tratativa regulariza o processo de “transferência” dos créditos de carbono por meio dos mecanismos de mercado. Adicionalmente, não há um acordo comum entre esses mesmos atores sobre as metodologias de contabilização desses créditos para os compromissos de redução de emissões assumidos por meio das contribuições nacionalmente determinadas (NDCs, do inglês), anteriormente submetidas ao Acordo de Paris (IISD, 2017; 2018).

Diante desse impasse, qual seria o posicionamento da UE sobre o artigo 6, tendo em vista as competências que lhe foram delegadas enquanto representante de seus países-membros e sua figuração de liderança na Convenção do Clima? De acordo com documento publicado pela Comissão Europeia (2019), o histórico da organização com mecanismos de mercado para a comercialização de emissões não é tão recente.

Uma das razões que explicam a familiaridade da UE com estes mecanismos é que foi concebido a partir da diretiva 2003/87 da Comissão Europeia, normativa responsável por instituir o Esquema Europeu de Comércio de Emissões de Carbono (EU ETS, do inglês). Este mecanismo compõe desde 2005, quando entrou em vigor, a estratégia da organização para reduzir a emissão de GEEs na atmosfera, tendo como fundamento a promulgação de um conjunto de regras que dotam a UE com capacidade de implementar “a contabilização de emissões e a obrigação de sua redução ou compensação” (GONÇALVES, 2013, p. 85). Para além disso, a expectativa com a criação desse mecanismo foi de amenizar os custos econômicos gerados pelos compromissos assumidos de combate ao aquecimento global.

O EU ETS têm se provado enquanto uma ferramenta bastante efetiva na redução de emissões a um baixo custo. Esse é o caso das instalações industriais emissoras de GEEs certificadas pelo ETS, que reduziram suas emissões em 9% – o que equivale a 152 milhões de toneladas de CO2 – entre 2018 e 2019 (COMISSÃO EUROPEIA, 2020, s/p, tradução nossa).

Nesse sentido, o EU ETS cria a oportunidade para que os países da região que não conseguiram atingir suas metas, conforme estabelecido no Protocolo de Kyoto enquanto esteve em vigor e agora de acordo com suas NDCs no mandato do Acordo de Paris, possam comercializar com outros países parte da integração europeia que possuam certificados comprovando redução excedente de emissões. Ou seja, permite que os países que não atingiram suas metas comprem esses certificados e, por conseguinte, poluam mais.

Dito isso, a atuação da UE durante a COP 25 reflete muito do seu sucesso com este mecanismo. Para além de levar uma forte mensagem política sobre a urgência da implementação de medidas para combater as mudanças do clima, a organização teve como objetivo assegurar um avanço significativo na negociação do artigo 6 do Acordo de Paris. A representação da UE na conferência se mostrou disposta em articular todas as Partes da Convenção do Clima em direção a um conjunto de decisões que salvaguarde a integridade de mecanismos de mercado como o EU ETS (COMISSÃO EUROPEIA, 2019).

Todavia, os resultados da 25.ª edição das COPs não saíram como o esperado e a discussão sobre o artigo 6, mais uma vez, foi adiada. A grande dificuldade esteve retida no fato de que o modelo de regulamentação defendido nas negociações, segundo Biderman (2019, s/p), “colocava em risco a capacidade do instrumento de reduzir emissões de maneira ambiciosa”, situação oposta ao que se espera do mecanismo defendido pela UE. Dessa forma, a expectativa durante a COP 26 é a defesa contínua pela integridade ambiental dos mercados de carbono, sobretudo em resposta às críticas e pressões recebidas da comunidade internacional pela implementação urgente de medidas para tratar das mudanças do clima.

Sendo assim, é possível destacar o papel de liderança da UE no contexto da governança climática. Enquanto organização regional, composta por  seus 27 membros, o bloco garante a capacidade de gerar pressão sobre o processo de negociação. Não só isso, conta com a capacidade de determinar o rumo e ritmo da tomada de decisão, como também angaria credenciais positivas na Convenção do Clima por iniciativas desenvolvidas intrarregionalmente. O caso da EU ETS habilita a demonstração de que projetos com escopo regional podem ser utilizados como exemplo e, possivelmente, incentivar a adoção de mecanismos de mercado enquanto indutores da redução de emissões de GEE na atmosfera.

 

 

REFERÊNCIAS

 

ARAÚJO, L. M.; NETO, M. R. C.; SÉGUIN, E. A efetividade do Acordo de Paris por meio da educação ambiental. Direito, Estado e Sociedade, n. 54, p. 279-309, 2019. 

 

BIDERMAN, Rachel. Na COP 25, o mundo adia a oportunidade de aumentar a ambição climática. 20 dez. 2019. WRI Brasil. Disponível em: https://wribrasil.org.br/pt/blog/2019/12/na-cop-25-o-mundo-adia-oportunidade-de-aumentar-ambicao-climatica. Acesso em: 27 jun. 2021.

 

BITTENCOURT, Sonia; BUSCH, Susanna; CRUZ, M. O Mecanismo de Desenvolvimento Limpo no Brasil. In: O Legado do MDL: impactos e lições aprendidas a partir da implementação do mecanismo de desenvolvimento limpo no Brasil. Brasília: IPEA, 2018.

 

COMISSÃO EUROPEIA. Carbon Market Reports: emissions from EU ETS stationary installations fall by over 9%. 18 nov. 2020. Disponível em: https://ec.europa.eu/clima/news/carbon-market-report-emissions-eu-ets-stationary-installations-fall-over-9_en. Acesso em: 26 jun. 2021.

 

COMISSÃO EUROPEIA. COP 25 climate change conference – Q&As. 02 dez. 2019. Disponível em: https://ec.europa.eu/clima/sites/clima/files/news/20191202_qa_en.pdf. Acesso em: 26 jun. 2021.

 

IISD. Summary of the Fiji/Bonn Climate Change Conference: 6-17 November 2017. Earth Negotiations Bulletin, Bonn, v. 12, n. 714, 2017.

 

IISD. Summary of the Katowice Climate Change Conference: 2-15 December 2018. Earth Negotiations Bulletin, Katowice, v. 12, n. 747, 2018.

 

IISD. Summary of the Chile/Madrid Climate Change Conference: 2-15 December 2019. Earth Negotiations Bulletin, Madrid, v. 12, n. 775, 2019.

 

IISD. UN Climate Change Conference (UNFCCC COP 26). 28 maio. 2020. Disponível em: https://sdg.iisd.org/events/2020-un-climate-change-conference-unfccc-cop-26/. Acesso em: 24 jun. 2021.

 

OBERTHÜR, Sebastian; KELLY, Claire Roche. EU Leadership in International Climate Policy: Achievements and Challenges. The International Spectator, v. 43, n. 3, p. 35-50, 2008.

 

VAN SCHAIK, Louise. The Sustainability of the EU’s Model of Climate Diplomacy. In: OBERTHÜR, Sebastian; PALLEMAERTS, Marc. The New Climate Policies of the European Union: Internal Legislation and Climate Diplomacy. Brussels: Brussels University Press, p. 251-280, 2010.

Escrito por

Raí Honorato

Mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, campus Poços de Caldas. Pesquisador associado ao Grupo de Estudos em Política e Direito Ambiental Internacional (GEPDAI), vinculado ao CNPq; membro do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI) e integrante do Observatório de Regionalismo (ODR), vinculado à Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (REPRI). Participa também das Práticas Simuladas, projeto encabeçado pelo San Tiago Dantas em parceria com o Escritório de Representação em São Paulo do Ministério de Relações Exteriores (ERESP). Agendas de interesse: (1) mudanças climáticas e redução de emissões, (2) comunidades e representações indígenas, (3) integração regional, com foco na América Latina e Ásia, (4) política externa brasileira e (5) hidropolítica. Também foi aluno extensionista e atuou como Secretário-Geral do projeto de simulação e modelagem "MINIONU".