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Esse artigo tem como objetivo apresentar o Acordo referente ao Aquífero Guarani no âmbito do Mercosul, uma vez que essa reserva hídrica vem ganhando destaque nos últimos tempos devido às denúncias acerca de sua privatização. Esse tema nos remete à reflexão sobre a necessidade de criação de mecanismos de gestão compartilhada para o manejo dos recursos naturais e, para tanto, é preciso, em um primeiro momento, a apresentação do tratamento dado à questão ambiental dentro do Mercosul, dado que o bloco se insere em uma região de vasta riqueza natural e transfronteiriça.

O fim da Guerra Fria possibilitou que temas mais variados, para além das questões relacionadas à segurança, fossem incorporados pela agenda internacional devido ao seu caráter transnacional. Esse foi o caso do meio ambiente que, em 1992, com a RIO-92 e a elaboração da Agenda 21 em seu âmbito, firmou de maneira definitiva, não só a importância internacional do tema, como o início de uma necessária e tardia conscientização acerca de sua proteção e da questão do desenvolvimento sustentável dada a finitude dos recursos naturais.  Houve também a percepção de que o meio ambiente não se circunscreve às fronteiras nacionais e seu manejo exige a elaboração de mecanismos compartilhados de ação.

No caso da América do Sul, a região possui considerável riqueza de recursos naturais e, no que diz respeito, especificamente, aos recursos hídricos; segundo afirma a Global Water Partnership(GWP), quase um terço dos recursos hídricos renováveis estão em território sul americano, sendo que, dos países que contam com a maior quantidade de água do planeta, três deles estão na América Latina: Brasil (primeiro), Colômbia (terceiro) e Peru (oitavo) (EL PAÍS, 2015).

Dada a riqueza natural da região, a temática ambiental é fulcro de atenção dentro de instâncias circunscritas aos blocos regionais e no caso específico do Mercosul, em  seu texto fundacional, o meio ambiente já figurava entre as suas preocupações, entretanto a questão começou a ganhar um enfoque mais específico já durante a II Reunião dos Presidentes do Mercosul, realizada em Las Lenãs (1992). Nesse encontro, foi criada a Reunião Especializada em Meio Ambiente (REMA), para assessorar os subgrupos técnicos do Mercosul de Política Agrícola, Política Industrial e Tecnológica e Política Energética, abordando aspectos vinculados ao meio ambiente, como a busca por sustentabilidade, preservação e a  análise de assimetrias entre os Estados (VILLAR, 2007).

A criação de uma instância específica para tratar da questão ambiental deu-se somente em 1995, durante a I Reunião dos Ministros de Meio Ambiente do Mercosul, em Montevidéu, quando se criou o Subgrupo de Trabalho Técnico 6 (SGT-6) em Meio Ambiente e cuja institucionalização representou a extinção da REMA. Por outro lado, com o SGT-6 e a Reunião de Ministros de Meio Ambiente (RMMA), abriu-se a possibilidade de uma aliança mais eficaz entre uma instância técnica especializada para o tema e a esfera política, já que os Ministérios de Meio Ambiente participam como coordenadores nacionais deste grupo. O SGT-6 responde ao Grupo de Mercado Comum (GMC)[1] e a Reunião de Ministros de Meio Ambiente ao Conselho de Mercado Comum (CMC)[2] e, desta forma, os tópicos pesquisados e o resultado tanto do trabalho técnico do subgrupo, que envolve instâncias especializadas dos países membros do Mercosul, em geral ligadas aos Ministérios de Meio Ambiente, quanto as instâncias políticas que lidam com o  tema ambiental, ambas têm seu trabalho discutido pelas instâncias decisórias do bloco CMC/GMC, que, se optam pela aprovação de determinado tópico, estes são traduzidos na forma de decisões, resoluções, protocolos.

Após dez anos desde o início do bloco, em 2001, é assinado o Acordo Marco Sobre Meio Ambiente do Mercosul ou Acordo de Florianópolis, que reforçou a ideia de cooperação entre os Estados parte pelo meio ambiente, visando a pesquisa, a troca de informações, a educação formal e não formal, dando especial atenção às áreas fronteiriças e enfocando os aspectos jurídico e político da situação (ACORDO MARCO SOBRE MEIO AMBIENTE DO MERCOSUL). Ainda nesse âmbito, foi firmado nessa ocasião também o Protocolo Adicional do Acordo Marco sobre Meio Ambiente, em que a cooperação e a assistência em áreas emergenciais foram pontos-chave.

Pensar em mecanismos que auxiliem a gestão e a proteção ambiental pelos países, dado o caráter transnacional do tema, é algo muito importante. O exemplo que é de interesse desse artigo é o caso do Aquífero Guarani, que tem sido destaque nos últimos meses devido às denúncias sobre o intuito dos governos brasileiro e argentino em ceder concessões ou realizar privatizações que permitam a exploração por multinacionais desse recurso hídrico, uma vez que esses governos passam por reformulações de cunho neoliberal em suas políticas econômicas.

O Aquífero é uma reserva transfronteiriça que abrange o Brasil, dotado de maior volume do recurso, a Argentina, o Paraguai e o Uruguai e, segundo o Ministério de Meio Ambiente, “possui um volume acumulado de 37.000 km3 e área estimada de 1.087.000 Km” e trata-se de uma das maiores reservas hídricas do planeta e constitui-se em um recurso de valor estratégico para a região. Em 2 de agosto de 2010 foi assinado em San Juan o Acordo do Aquífero Guarani no âmbito do Mercosul com o objetivo de auxiliar na formulação de mecanismos à sua gestão compartilhada, proteção e preservação por seus detentores.

O Acordo foi resultado de trabalhos iniciados em meados dos anos 2000, pouco depois da descoberta do Aquífero Guarani, que data de 1996 e da formulação do Projeto do Aquífero Guarani, que visava a sua proteção, pesquisa e desenvolvimento sustentável e teve a participação de agências promotoras como a FAO, a Global Environmental Facility (GEF), a OEA, entre outros organismos (VILLAR, 2016). O Aquífero ganhou interesse e destaque internacional e realização de Acordo referente a ele conquistou espaço no Mercosul. O  seu processo de formulação durou alguns anos e contou com a articulação das instâncias especializadas do bloco junto ao Parlasul, além disso, o Acordo passou por cinco propostas  dos países envolvidos e, somente em 2010, chega-se a um consenso referente ao seu texto, sendo, então, o Acordo do Aquífero Guarani assinado.

Deve-se ressaltar que, diferente de grande parte dos acordos celebrados sobre a questão hídrica, o caso do Aquífero Guarani não foi resultado de conflito entre os envolvidos, mas sim de interesse de seus Estados parte.  Entretanto, até o presente momento, o Acordo não foi ratificado nem pelo Paraguai, que negou sua ratificação em 2012 como resposta às sanções econômicas que sofreu no bloco e nem pelo Brasil, cuja Comissão Brasileira do Parlasul aceitou o texto do Acordo, mas ainda não houve sua ratificação internamente.

Um tema sensível como o do Aquífero Guarani nos remete à necessária discussão sobre como tratar das questões ambientais que não se limitam às fronteiras dos países. Uma hipótese para elucidar essa questão é que se formulem mecanismos dentro das instâncias de diálogo regional, como ocorreu no caso do Aquífero Guarani, que envolveu um esforço conjunto dos países na elaboração de bases compartilhadas de manejo. A questão hídrica é ainda mais sensível, pois são poucas as referências regulatórias internacionais sobre o tema, especialmente sobre os aquíferos, que tiveram sua primeira lei internacional no preâmbulo das Nações Unidas, criada em 2008. A América do Sul possui considerável número de aquíferos transfronteiriços e muitos deles ainda necessitam de pesquisas básicas sobre sua constituição. Refletir sobre essa questão é algo premente em um cenário de escassez hídrica e o contexto regional se apresenta como instância de articulação possível, entretanto, o caráter intergovernamental e o perfil comercial dominante tornam-se entrave para a evolução da questão.

NOTAS:

[1] GMC- É o Poder Executivo do Mercosul, zela pelo cumprimento do Tratado de Assunção, repassa as demandas dos subgrupos técnicos ao CMC, negocia por meio de suas delegações acordos com terceiros e presta contas anuais ao CMC e à Secretaria do Mercosul.

[2] CMC- órgão responsável pelas decisões e rumos políticos acerca do processo de integração do Mercosul.

PARA MAIS INFORMAÇÃO (REFERÊNCIAS)

ACORDO SOBRE O AQUÍFERO GUARANI, 2 de agosto de 2010, San Juan.

CAUSA OPERÁRIA. Macri vai privatizar água na Argentina. Disponível em: <http://causaoperaria.org.br/macri-vai-privatizar-a-agua-na-argentina/  >

EL PAÍS. Brasil, Colômbia e Peru lideram países com mais água no mundo. 

MINISTÉRIO DE MEIO AMBIENTE. Aquífero Guarani. 

ONU. ONU e o meio ambiente. 

PORTAL DO SANEAMENTO BÁSICO. Aquífero Guarani pode ser privatizado.

ONU. ONU e o meio ambiente. 

PORTAL DO SANEAMENTO BÁSICO. Aquífero Guarani pode ser privatizado. 

VILLAR, P. C. International cooperation on transboundary aquifers in South America and the Guarani Aquifer case. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília ,  v. 59, n. 1, 2016. 

VILLAR, P.C, A gestão internacional dos recursos hídricos subterrâneos transfronteiriços e o aquífero guarani. REGA – Vol. 4, no. 1, p. 63-74, jan./jun. 2007.

Escrito por

Maria Luísa Telarolli

Mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós- Graduação UNESP, Unicamp e PUC-SP "San Tiago Dantas" e doutoranda em Geografia Humana pela USP. Pesquisa recursos hídricos, governança internacional e o Aquífero Guarani, mais especificamente,o Acordo do Aquífero Guarani no MERCOSUL. Além de ser membro do Observatório de Regionalismo, também é membro do Grupo de Estudos Interdisciplinares de Cultura e Desenvolvimento (GEICD) da UNESP/ FCLar, da Waterlat - Gobacit e do Grupo de Geografia Política e Meio Ambiente do Departamento de Geografia Humana da USP.