Créditos da imagem: https://www.poder360.com.br/internacional/bolsonaro-e-fernandez-pedem-uniao-mas-expoem-divergencias-no-mercosul/

André Leite Araujo e Flavia Loss Araujo

No mesmo ano em que completa 30 anos, o Mercosul enfrenta divergências entre os seus membros e buscam-se saídas para os impasses que impedem o avanço de diversas pautas no interior do bloco. As diferenças políticas entre os governos ficaram ainda mais evidentes em duas reuniões recentes: em março, na cúpula dos chefes de Estado, e em abril, na reunião de ministros. Em ambas as ocasiões, a questão da flexibilização do Mercosul incendiou o debate e a retórica das autoridades presentes. A proposta de flexibilização tem duas vertentes: a primeira, que conta com o apoio do Brasil, do Paraguai e do Uruguai, é a redução da Tarifa Externa Comum (TEC) em duas etapas, começando com 10% imediatamente e mais 10% até o final de 2021. O segundo aspecto em discussão é a flexibilização das regras sobre os  acordos comerciais com terceiros países, que conta com a oposição da Argentina e do Paraguai. Enquanto o impasse persiste, é interessante retomarmos exemplos de outros blocos que optaram pela flexibilização e analisar as vantagens e desvantagens dessa escolha, permitindo algumas reflexões a respeito do momento que o Mercosul está enfrentando.  

A experiência da Comunidade Andina (CAN), nesse sentido, pode ajudar na tarefa, visto que possui similaridades institucionais com o bloco mercosulino. Assim, discutiremos brevemente como a CAN lidou com os antagonismos que surgiram em seu interior e evitou a ruptura completa, analisando, por fim, a atual proposta de flexibilização feita pelos membros do Mercosul.

Panorama de flexibilização da CAN 

         A Comunidade Andina representa o mais antigo e complexo projeto de integração sub-regional ainda em vigor da América Latina. Oficializada em 1969 através do Acordo de Cartagena e com o nome de Pacto Andino, teve como membros fundadores a Bolívia, a Colômbia, o Chile, o Equador e o Peru (a Venezuela entraria para o bloco posteriormente, em 1973). Em 1996, o Protocolo de Trujillo mudou o seu nome para Comunidade Andina e alterou a sua institucionalidade, incorporando o Conselho Presidencial e o Conselho de Ministros de Relações Exteriores ao Sistema Andino de Integração (SAI). No decorrer de sua longa trajetória, a CAN enfrentou diversas crises internas e externas, tanto de natureza política como econômica.

Para fins desta breve análise, nos interessam as discussões que permitiram acordos de livre comércio com países de fora do bloco andino. Originalmente, o capítulo III do Acordo de Cartagena versa sobre as Relações Exteriores e a Política Externa Comum (PEC), estipulando nos artigos 51 e 52 que as negociações com outros blocos econômicos devem ser empreendidas de maneira comunitária. Mais especificamente, a alínea b) do artigo 52 reforça que os órgãos comunitários devem “coordenar negociações conjuntas da Comunidade Andina com outros processos de integração, com terceiros países ou grupos de países” (ACORDO DE CARTAGENA, 1969, tradução nossa). De acordo com Vigil (2008), o texto não torna obrigatório que todas as negociações sejam conjuntas, mas coloca ênfase na coordenação necessária para que os diálogos estejam alinhados entre os países membros, deixando a possibilidade de acordos bilaterais em aberto.

         No entanto, as mudanças políticas ocorridas na região no final da década de 1990 e o relacionamento dos países membros com os Estados Unidos acenderam intensos debates no interior da CAN sobre a viabilidade e a pertinência de acordos bilaterais.

A ascensão de Hugo Chávez à presidência da Venezuela alterou o padrão de relacionamento deste país com os vizinhos e com a potência norte-americana. Na época, os Estados Unidos buscavam criar a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), ampliando o seu mercado na América Latina. O governo venezuelano opôs-se ao projeto, enquanto a Colômbia e o Peru eram entusiastas. Para Briceño-Ruiz (2004), a resistência da Venezuela em relação à ALCA criou a primeira grande fratura entre os sócios andinos, rompendo com a homogeneidade política que imperava no bloco até a década de 1990, quando os sócios compartilhavam visões similares sobre os rumos da  integração.

         Para a Colômbia e o Peru, o dilema seria resolvido com a flexibilização das normas andinas sobre acordos bilaterais, permitindo que os seus sócios pudessem usufruir do comércio com os seus parceiros comerciais mais importantes, os Estados Unidos e a União Europeia. A CAN continuava relevante para os andinos, mas enfrentava o mesmo dilema de outros arranjos integracionistas formados por países em desenvolvimento: o comércio intrabloco é importante para as manufaturas (especialmente da Colômbia), mas o grosso das exportações são commodities para os países desenvolvidos. Boa parte da literatura econômica a respeito da integração latino-americana versa sobre a escolha entre a abertura de mercados e o desenvolvimento endógeno (VIGEVANI; RAMANZINI, 2010).

No caso da CAN, o temor de uma ruptura definitiva fez com que o argumento da flexibilização prevalecesse, visto que já estava previsto na legislação comunitária. O passo decisivo foi dado com a Decisão 598 de julho de 2005, que autorizou a assinatura de acordos bilaterais com terceiros países e tentou, em paralelo, impedir a ruptura do projeto de integração andino. Assim, a Decisão 598/2005 determina que o ordenamento jurídico andino seja preservado em negociações com terceiros e que os demais sócios sejam informados e consultados a cada etapa. Os efeitos dessa medida foram favoráveis às negociações comerciais que as economias mais robustas do bloco (Colômbia e Peru) empreenderam com os Estados Unidos a partir de 2005.

A primeira década de 2000 testemunhou a ascensão de outros governos progressistas na região e o consequente aprofundamento da clivagem no interior da CAN, tornando as divergências a respeito de projetos de integração e de desenvolvimento o maior empecilho para a continuidade da integração andina, e levando à saída da Venezuela em 2006 (ARAUJO, 2014).

Para Vigil (2008), a CAN sobreviveu devido a sua capacidade de flexibilização diante das adversidades que enfrentou durante sua trajetória. A permissão ampliada para negociações bilaterais permitiu que os membros não tivessem que escolher entre continuar no projeto de integração andina ou firmar tratados de livre comércio com países desenvolvidos. Por outro lado, Espinosa (2017) argumenta que a flexibilização prejudicou o aprofundamento da integração, diminuindo o interesse dos membros em investir no projeto e incitando condutas não-cooperativas, visto que os ganhos com os acordos bilaterais são mais rápidos. 

Propostas de flexibilização do Mercosul

No Mercosul, os discursos contra e a favor da flexibilização acompanham sua história desde o início. Enquanto Washington impulsionava a proposta da ALCA, os governos sul-americanos inicialmente apoiaram a ideia, através do Rose Garden Agreement em 1991 – no formato 4+1. Apesar da institucionalização pelo Protocolo de Ouro Preto, a pressão de alguns membros por negociar bilateralmente cresceu até os anos 2000, quando duas decisões do Conselho do Mercosul reforçaram a obrigatoriedade de negociação conjunta. Primeiro, a decisão 32/2000 determina que os Estados-Parte tenham uma política comum ao interagirem com países não-Mercosul, isto é, impede a assinatura de acordos comerciais bilaterais. Segundo, como forma de reduzir os conflitos internos pelas assimetrias, a decisão 28/2003 garante tratamento diferenciado ao Paraguai, devido ao seu nível de desenvolvimento e ausência de acesso ao mar. Tais medidas foram impulsionadas por Brasília e serviram tanto para oferecer mais benefícios aos membros, quanto para evitar a defecção dos sócios – vista na CAN -, na medida em que são mercados importantes e fortemente atrelados à economia brasileira, bem como à Argentina. 

Diante desse quadro institucional, o Mercosul celebrou 39 acordos nas últimas três décadas, incluindo 5 acordos de livre comércio com parceiros extrarregionais. Entretanto, há discussões a respeito dos benefícios que os Estados teriam se negociassem acordos individualmente. Sobretudo Paraguai e Uruguai questionam que não conseguem diminuir sua dependência dos sócios maiores – Argentina e Brasil – e que os acordos existentes até agora não ofereceram ganhos comerciais suficientes. Por esse motivo, no esforço de diversificação de parcerias, flexibilizar as atuais regras mercosulinas e permitir negociações individuais poderia aportar os resultados desejados. A celeridade que se espera desse formato decorre de não haver tantas partes envolvidas, ou seja, menos interesses possivelmente divergentes. 

Neste ano, Montevidéu propôs formalmente a flexibilização durante a cúpula presidencial pelo aniversário do bloco. Isso ocorreu no contexto em que EFTA e UE concluíram as negociações com o Mercosul e há expectativas de assinatura de acordos com Canadá, Coreia do Sul e Singapura. Contudo, a efetivação desse conjunto depende do consenso entre os quatro governos, e a Argentina, desde 2020, vem se mostrando contrária aos acordos de livre comércio do Mercosul. Isso decorre da preocupação de que a abertura indiscriminada do mercado, particularmente para o Norte Global, agravaria a situação socioeconômica, já fragilizada pela pandemia. Além disso, outro aspecto que chama a atenção é que o Paraguai – historicamente defensor da flexibilização – não apoiou a proposta uruguaia. Tal posicionamento pode ser reflexo de que o Uruguai mira negociar com a China, país que não é reconhecido diplomaticamente por Assunção. 

Pode-se destacar três elementos na comparação com a flexibilização ocorrida na Comunidade Andina. Primeiro, os membros da CAN tinham um claro parceiro com o qual firmar tratados de livre comércio – os Estados Unidos. Já no Mercosul, não se sabe quem estaria interessado em celebrar acordos bilaterais com os Estados-Parte, inclusive com o Uruguai que avança na proposta. Em segundo lugar, os países andinos não são tão assimétricos e possuem níveis de interdependência razoavelmente similares. Portanto, não há um equivalente ao Brasil que tenha interesse em conservar o bloco coeso, como sua área de influência. Por fim, na CAN, apesar da saída venezuelana, havia maior convergência a respeito de um novo projeto de integração que permitisse as negociações bilaterais. Entre os governos mercosulinos, as divergências permanecem. 

Portanto, a experiência andina demonstra que acordos bilaterais podem ser uma estratégia de conciliação de interesses, permitindo que diferentes objetivos econômicos sejam perseguidos por cada membro, mas sem paralisar nem esfacelar o bloco. Em contrapartida, o ponto negativo da flexibilização é que abre espaço para reforçar os projetos individuais de cada governo, sem a coordenação do bloco, que passa a segundo plano em seus planos de política externa.

 

Referências

ARAUJO, Flavia. Agendas de Política Externa para a Comunidade Andina de Nações: os casos de Bolívia e Colômbia. Belo Horizonte:Estudos Internacionais: Revista de Relações Internacionais da PUC Minas, vol. 2, n. 2, 189-214, 2014. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/estudosinternacionais/article/view/8199.

BRICEÑO-RUIZ, José. La posición de Venezuela frente a ALCA y las relaciones de la CAN con Estados Unidos y la UE. In: Aldea Mundo. Mérida: Universidade de los Andes, vol 8, n. 16, Nov/Abr 2004. Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=54381607. 

VIGEVANI, Tulio; RAMANZINI, Haroldo. Pensamento brasileiro e integração regional. Rio de Janeiro: Contexto Internacional, vol. 32, n. 2, 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-85292010000200006

VIGIL, Fernando. Compatibilidad con la integración en la Comunidad Andina de la negociación de Acuerdos de Libre Comercio con los Estados Unidos por parte de algunos de sus miembros: apuntes preliminares. In: Agenda Internacional, Ano VX, n. 26, 2008. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/6302368.pdf

 

Escrito por

Flavia Loss

Doutoranda pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP) e mestra pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Integração da América Latina (PROLAM-USP). É professora no curso de Relações Internacionais da Universidade Cruzeiro do Sul. Pesquisadora do Observatório de Regionalismo e do Grupo Rede de Investigação em Política Exterior e Regionalismo (REPRI). Integra o Grupo de Reflexión sobre Integración y Desarollo en América Latina y Europa (GRIDALE) e o centro de estudos CiGlo (Ciudades Globales). Possui experiência no desenvolvimento de projetos acadêmicos nas áreas de Política Internacional e Relações Internacionais, atuando principalmente com os temas de análise de política externa e integração regional.