O COVID-19 impactou de forma drástica o cotidiano da população mundial desde o final de 2019, na China, onde foram registrados os primeiros casos da doença1 e, de forma gradual, mais casos foram sendo diagnosticados ao redor do globo. O crescente número de contágios, somados aos casos graves que levam à internação em unidades de terapia intensiva, levaram os governos a adotarem medidas de isolamento social e uma onda de pânico se espalhou.

O espraiamento da doença se deu devido ao constante e intenso fluxo de circulação decorrente do mundo globalizado em que vivemos. Diversos países, entre eles o Brasil, anunciaram que fechariam suas fronteiras terrestres e restringiriam a entrada por via aérea de pessoas originárias de países com alto número de casos do COVID-19, como a Itália, Reino Unido, China, entre outros. Apesar da medida, o governo brasileiro não incorporou os Estados Unidos na lista de restrição, um dos países no mundo com maior número de infectados.

Essa decisão dificultou a volta de brasileiros que estavam em diferentes locais do mundo. Entretanto, diante do cenário político da região, que já sofria com problemas migratórios, o caso da fronteira brasileira com a Venezuela, que recebe diariamente a entrada de refugiados, se tornou ainda mais crítico ao considerar a situação frágil do sistema de saúde venezuelano frente à pandemia. A união em Boa Vista, Roraima, entre venezuelanos e brasileiros foi a solução para a construção de um hospital temporário para o acompanhamento e tratamento contra a doença. O hospital terá 1.200 leitos hospitalares e mais mil vagas para observação de casos suspeitos e está sendo construído pela Operação Acolhida, com o apoio da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) e outras agências das Nações Unidas.

A atuação conjunta dos países latino-americanos têm se apresentado cada vez mais uma necessidade na superação de problemas que assolam o mundo e o continente, sendo que uma das questões cruciais é o esforço regional para haver desenvolvimento durante e, principalmente, após a crise do COVID-19, que tem trazido sérios impactos econômicos ao redor do globo. De acordo com relatório lançado pela Comissão Econômica para a América latina e o Caribe no início de Abril, “a América Latina e o Caribe não têm outra opção estratégica a não ser avançar para um modelo de desenvolvimento mais sustentável por meio de uma maior integração para mitigar os efeitos da pandemia de COVID-19”.

Nesse sentido, o compromisso com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável se faz premente, em especial o ODS 6, referente ao acesso à água de qualidade e ao saneamento básico. Uma crise como a relacionada à pandemia atual desnuda certas questões que já existiam, mas emergem frente a essa situação, pois podem agravar os casos de contágio e as suas possíveis soluções, dado que a higiene é premissa básica para a contenção do COVID-19. Na América Latina, somente 65% dos moradores da região têm serviços de saneamento básico.

O recente estudo da CEPAL traz interessantes dados para a reflexão sobre os caminhos que podem ser percorridos e a possibilidade de mudanças na forma de organização e desenvolvimento adotadas até o momento para evitar a repetição dos erros que nos levaram a uma situação em que os efeitos da pandemia serão devastadores no curto e longo prazo.

O relatório enfatiza que os governos da região adotem medidas emergenciais para lidar com as questões sanitária, social e econômica e repensar suas estratégias de desenvolvimento, com a coordenação e a integração sub-regional e regional para assegurar as cadeias de suprimentos de bens essenciais; fortalecer o comércio intra-regional e as cadeias de produção, entre outras medidas. Portanto, a cooperação internacional desempenha um papel fundamental, uma vez que a pesquisa indica que a América Latina e o Caribe enfrentam a pandemia de uma posição mais frágil que outras regiões do globo.

A chegada da COVID-19 certamente terá um impacto negativo no Produto Interno Bruto (PIB) da região, que mesmo antes da atual situação tinha previsões pouco animadoras.

Segundo o relatório, a crise do COVID-19 terá efeitos econômicos diretos nos sistemas de saúde e nas taxas de mortalidade, e efeitos indiretos, que se materializarão no lado da oferta e da demanda na economia. Entre os efeitos diretos está o impacto nos sistemas de saúde da região, cuja infraestrutura é insuficiente para enfrentar os problemas gerados pela pandemia.

Os efeitos previstos pela pandemia na região se manifestarão em cinco pontos-chave: a diminuição da atividade econômica; a queda dos preços dos produtos primários; a interrupção das cadeias globais de valor; a menor demanda por serviços de turismo e o agravamento das condições financeiras mundiais.

Ainda de acordo com o relatório, aponta-se que a integração regional é aspecto premente para enfrentar a crise, pois os países da região possuem capacidade produtiva pouco sofisticada e demasiadamente fragmentada, portanto, fortalecer as capacidades nacionais e regionais é fundamental, sendo um caminho o comércio intra-regional, bem como, tratarem conjunto da emergência sanitária é crucial. A região deverá repensar suas estratégias de desenvolvimento para conter a gravidade de futuros choques e contar com um apoio das organizações financeiras multilaterais via negociação coletiva de empréstimos em condições favoráveis pode ser uma saída.

Portanto, por meio dos dados apresentados no relatório da CEPAL, algumas questões podem ser postas. A primeira delas é a premência em se repensar os problemas sociais, econômicos e ambientais originários das políticas adotadas até o momento. A segunda é fruto do primeiro ponto e se trata de refletir sobre o modelo de desenvolvimento adotado e, vinculados a essa questão, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) podem ser parte da solução.

Vale a nós aqui a reflexão. Como sabido, no ano de 2019 um dos acordos regionais americanos foi reestruturado, o North-American Free Trade Agreement (NAFTA), já discutido aqui no ODR. Por sua vez, o novo Acordo Estados Unidos-México-Canadá – USMCA trata apenas de questões comerciais específicas aos países do bloco, não havendo nenhuma menção à possibilidade de atuação conjunta dos mercados diante de problemas em comum, como estamos presenciando no cenário atual.

O ODS de número 6 é Saúde e Bem Estar, entretanto, assim como colocado na discussão da CEPAL para repensar o regionalismo e a cooperação na América Latina através do desenvolvimento conjunto em períodos de crise para amenizar os efeitos da mesma, o mesmo pode ser pensado para a porção norte do continente. Como mencionado, hoje, os Estados Unidos é o epicentro do Covid-19 no mundo, somando mais de 20 mil mortes desde o início do surto, sendo que muitos destes resultam do não acesso à saúde pública no país. Por sua vez, apesar da importante relação comercial entre os países do UMSCA, diante da pandemia às únicas ações tomadas em comum acordo foi o fechamento de fronteiras.

Deste modo, vale destacar que, a integração regional latino-americana, que se mostra esgarçada nos últimos anos também pode ser a trilha para que se possa sair da crise após a pandemia. Dentro das esferas de debate regional, o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável sempre foram temas secundários, fruto de discussão atrelada à possibilidade de vantagens comerciais dos blocos. Contudo, o atual cenário nos incita a considerar a relevância desses temas e, principalmente, a oportunidade das saídas regionais e o fortalecimento das propostas e soluções em um âmbito que vem sendo preterido.

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NOTAS

Escrito por

Maria Luísa Telarolli

Mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós- Graduação UNESP, Unicamp e PUC-SP "San Tiago Dantas" e doutoranda em Geografia Humana pela USP. Pesquisa recursos hídricos, governança internacional e o Aquífero Guarani, mais especificamente,o Acordo do Aquífero Guarani no MERCOSUL. Além de ser membro do Observatório de Regionalismo, também é membro do Grupo de Estudos Interdisciplinares de Cultura e Desenvolvimento (GEICD) da UNESP/ FCLar, da Waterlat - Gobacit e do Grupo de Geografia Política e Meio Ambiente do Departamento de Geografia Humana da USP.