Isabela Battistello Espindola

Doutoranda em Geografia Humana na Universidade de São Paulo. Membro do grupo de pesquisa Geografia Política e Meio Ambiente. Email: isaespindola@hotmail.com

“A autora Isabela Battistello Espíndola agradece à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que financiou o projeto de pesquisa referente ao Processo n. 2017/17997- 9. As opiniões, hipóteses, e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do(s) autor(es) e não necessariamente refletem a visão da Fapesp.”
Imagem por Agência Brasil

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O ano de 2020 é, sem dúvidas, um ano de mudanças, questionamentos e aprendizados. Em um cenário de fake news e propagação de desinformação, é preciso “inundar a internet com fatos e com ciência, e combater o crescente flagelo da desinformação” relacionada ao COVID-19 (GUTERRES, 2020). Nesse sentido, este breve artigo foca em como o combate a pandemia do COVID-191 perpassa por questões de integração regional, cooperação internacional e saneamento básico (água e esgoto).

À medida que o mundo combate a pandemia de COVID-19, também se questiona o próprio funcionamento da sociedade contemporânea capitalista. A crise gerada pela pandemia do covid-19 trouxe à tona questões muitas vezes deixadas de lado nos atuais governos. Vivemos em um mundo globalizado, modernizado e interligado. Mesmo com tantos avanços, somos sujeitos aos mais diversos riscos. O COVID-19 é apenas um deles, e é capaz de mostrar como um risco ora antes restrito a um território, ultrapassou fronteiras geopolíticas e se converteu em uma verdadeira ameaça global. Nas palavras de Beck (2002), vivenciamos uma sociedade global de riscos.

A crise gerada pela pandemia do covid-19 também é capaz de ressaltar as desigualdades intrínsecas ao capitalismo e as consequências dos padrões de consumo adotados até então. Vulnerabilidades crônicas, concentração de renda, fornecimento de água intermitente e escassez de alimentos são apenas alguns dos exemplos (COCA, 2020). Esses problemas, muitas vezes históricos em alguns países, são capazes de aumentar os riscos da pandemia do novo coronavírus. E é exatamente a população mais vulnerável que enfrenta os maiores riscos em relação a pandemia atual.

Paz (2020) lembra que pandemias anteriores já indicaram que populações com dificuldade de acesso à água potável e saneamento básico apresentam índices maiores de letalidade de doenças. A Organização Mundial da Saúde (OMS) expressou preocupação com a ampliação da força de contágio do vírus do COVID-19 em áreas em que o acesso ao saneamento básico é precário. A higiene é premissa básica para a contenção de sua propagação do COVID-19 (TELAROLLI, 2020), mas requer acesso a uma fonte de água, continuidade de serviço e qualidade da água segura. Para o Banco Mundial (World Bank, 2020) os “serviços de água, saneamento e higiene (WASH) gerenciados com segurança são uma parte essencial da prevenção e proteção da saúde humana durante surtos de doenças infecciosas, incluindo a atual pandemia de COVID-19”.

É importante lembrar que o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 6 inclui metas para garantir que todos tenham acesso à higiene adequada e equitativa até 2030, além do alcance do acesso universal e equitativo a água potável e segura. Apesar dos países terem assumido a responsabilidade de alcançar as metas do ODS6, poucos as cumpriram (SDG – Knowledge Platform, 2019). Na América Latina, por exemplo, somente 65% da população tem acesso a serviços de saneamento básico (TELAROLLI, 2020). Para a ONU, a pandemia do COVID-19 mostra que a sociedade também enfrenta uma crise global de higiene. Nesse cenário, vale o seguinte questionamento: Como evitar a propagação do COVID-19 se cerca de 40% da população mundial não possui instalações básicas para lavar as mãos com sabão e água (UN-Water, 2020)?

Uma das soluções encontra-se na cooperação entre os países, principalmente na área da saúde, tecnologia e ciência. Uma vez que o vírus se propagou em decorrência do fluxo de pessoas e dessa conexão global, não é de se estranhar que uma das possíveis soluções também percorra o mesmo caminho. Todavia, não podemos deixar de lembrar que as iniciativas de integração regional e políticas multilaterais têm sido amplamente rejeitadas pelos governos atuais. Exemplo recentes envolvem a saída do Reino Unido da União Europeia, e a própria implosão da UNASUL na América do Sul.

Mesmo com esse quadro de desmonte de processos de integração, Buss e Tobar (2020) argumentam que a cooperação é mais que necessária. No entanto, para que isso possa ocorrer é preciso que os governos dos países abram seus cofres públicos para investir e injetar dinheiro nos serviços de saúde e na economia. Para os autores, é “essencial restaurar esses mecanismos políticos e técnicos para lidar com a nova epidemia de coronavírus, bem como com os novos e potenciais desafios de saúde de interesse internacional”. O engajamento de instituições públicas e a cooperação entre os governos associado a iniciativas de integração são fatores mais que necessários para enfrentar e combater a pandemia.

Buss e Tobar (2020) afirmam que o G20 prometeu injetar US $ 4,8 trilhões na economia global. A União Europeia declarou que contribuirá com €37 bilhões em fundos não utilizados para financiar várias medidas durante a pandemia de coronavírus (Conselho Europeu/Conselho da União Europeia, 2020). No âmbito sul-americano, o MERCOSUL declarou que “aprovou um aporte de US$ 16.000.000 adicionais para o projeto Plurinacional Investigação, Educação e Biotecnologias aplicadas à Saúde, que serão destinados totalmente ao combate coordenado contra o COVID-19” (MERCOSUL, 2020a). O Fundo para a Convergência Estrutural do MERCOSUL (FOCEM) é o responsável por financiar os recursos mencionados.

Segundo o MERCOSUL (2020a), US$ 5.800.000 serão disponibilizados para “compra de equipamento, insumos, materiais para a proteção dos operadores e kits para a sua rápida detecção” e também para “fortalecer a capacidade de diagnóstico do vírus”. Além da disponibilização de recursos financeiros, Antonio Rivas, ministro das Relações Exteriores do Paraguai, expressou a necessidade de cooperação e desenvolvimento de trabalho conjunto para a “coordenação de medidas sanitárias em nível regional” (MERCOSUL, 2020b).

É interessante ver tais percepções nesse momento de crise. Grande parte dos países do MERCOSUL enfrentam problemas relacionados ao sistema de tratamento de água e esgoto. Segundo estudo do Instituto Trata Brasil (2018), o número de indivíduos sem acesso a serviços de saneamento básico ainda é enorme. A universalização desses serviços é ainda um grande desafio para os países. Com relação ao MERCOSUL, os indicadores de todos os países-membros (com exceção da Bolívia que não foi abarcada no estudo) são superiores ao Brasil em termos da porcentagem da população total com acesso ao saneamento. O Brasil apresenta 98,1% de acesso à água, 82,8% de acesso ao serviço de esgoto e a ocorrência de defecção aberta atingi 2.1%. Argentina, apresenta 99,1% de acesso à água, 96,4% de acesso ao serviço de esgoto e a ocorrência de defecção aberta atingi 1,3%. O Paraguai apresenta 98% de acesso à água, 88.6% de acesso ao serviço de esgoto e a ocorrência de defecção aberta é de 0%. O Uruguai apresenta 99,7 % de acesso à água, 96,4 % de acesso ao serviço de esgoto e a ocorrência de defecção aberta é de 0,1%.

O saneamento básico (água e esgoto) tem um papel na proliferação no novo coronavírus. A Organização Mundial da Saúde (WHO – World Health Organization, 2020) diz que a persistência do COVID-19 na água potável é possível, mas até o momento não há evidências de que o vírus esteja presente em fontes de água superficial ou subterrânea ou que seja transmitidos através da água contaminada. De acordo com Centro para o Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC, 2020) o vírus que causa o COVID-19 ainda não foi detectado na água potável. A Agência de Proteção Ambiental Americana (USEPA – United States Environmental Protection Agency, 2020) também expõe que o vírus COVID-19 não foi detectado no abastecimento de água potável.

O Centro para o Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC, 2020) também informa que o vírus que causa o COVID-19 foi detectado nas fezes de alguns pacientes diagnosticados com COVID-19. No entanto, o centro reitera que ainda não possui dados para afirmar se a quantidade de vírus liberada pelo corpo nas fezes é capaz de infeccionar outros indivíduos. Com base em dados de surtos anteriores de outros vírus da família coronavírus, como síndrome respiratória aguda grave (SARS) e síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS), a instituição espera que o risco seja baixo. Até o momento, a Organização Mundial da Saúde não confirmou nenhum caso de transmissão oral-fecal de COVID-19.

Medidas de distanciamento social, isolamento e até mesmo, quarentena de nada adiantarão se os governos não adotarem ações voltadas para a higiene pessoal, saneamento e acesso à água com qualidade para sua população. As fragilidades dos sistemas de água e saneamento somente agravarão a crise do COVID-19. Os governos devem trabalhar para melhorar esses aspectos relacionados a água e ao saneamento. Sem uma cura ou uma vacina, essa é uma das melhores ações que os países podem adotar para proteger suas populações. Caso nada seja feito, a tendência é de que os sistemas de saúde, ora já frágeis e debilitados, se tornem mais críticos.

Referências bibliográficas
BECK, U. La sociedad del riesgo global. Madrid: Siglo Veintiuno, 2002.
BUSS, P. M.; TOBAR, S. COVID-19 e as oportunidades de cooperação internacional em saúde. Cadernos de Saúde Pública, 36 nº.4, Rio de Janeiro, Abril 2020.
CDC – Center for Disease Control and Prevention. Water and COVID-19 FAQs. CDC – Center for Disease Control and Prevention, 03/04/2020. Disponível em: < https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/php/water.html>. Acesso em: 20 abr. 2020.
COCA, E. L. F. A pandemia do COVID-19 e a fome como desafios globais. Revista Mundorama, 13/04/2020. Disponível em: <https://mundorama.net/?p=26959>. Acesso em: 20 abr. 2020.
Conselho Europeu/Conselho da União Europeia. COVID-19 – Conselho adota medidas para a libertação imediata de fundos. 30/03/2020. Disponível em: < https://www.consilium.europa.eu/pt/press/press-releases/2020/03/30/covid-19-council-adopts-measures-for-immediate-release-of-funds/>. Acesso em: 20 abr. 2020.
GUTERRES, A. (14 de abril de 2020). ONU quer fim de “pandemia global da desinformação” sobre covid-19 (Discurso). Disponível em: < https://news.un.org/pt/story/2020/04/1710342>. Acesso em: 20 abr. 2020.
Instituto Trata Brasil. Benefícios Econômicos e Sociais da Expansão do Saneamento Brasileiro. 2018. Disponível em: < http://www.tratabrasil.org.br/images/estudos/itb/beneficios/sumario_executivo.pdf >. Acesso em: 24 abr. 2020
MERCOSUL. (a). Esforço regional contra a pandemia: o MERCOSUL aprovou um fundo de emergência de US$ 16 milhões que serão destinados totalmente para ao combate contra o COVID-19. 03/04/2020. Disponível em: < https://www.mercosur.int/pt-br/esforco-regional-contra-a-pandemia-o-mercosul-aprovou-um-fundo-de-emergencia-de-us-16-milhoes-que-serao-destinados-totalmente-para-o-combate-contra-o-covid-19/>. Acesso em: 24 abr. 2020.
MERCOSUL. (b). Os presidentes da região acordam medidas para combater o Covid-19. 17/03/2020. Disponível em: <https://www.mercosur.int/pt-br/os-presidentes-da-regiao-acordam-medidas-para-combater-o-covid-19/>. Acesso em: 24 abr. 2020.
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PAZ, H. As desigualdades sociais que a pandemia da covid-19 nos mostra. Brasil de Fato, 04/04/2020. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2020/04/04/artigo-as-desigualdades-sociais-que-a-pandemia-da-covid-19-nos-mostra>. Acesso em: 20 abr. 2020.
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TELAROLLI, M. L. COVID- 19 e o desenvolvimento sustentável: um caminho para a integração regional? Observatório de Regionalismo, 03/04/2020. Disponível em: <https://observatorio.repri.org/artigos/covid-19-e-o-desenvolvimento-sustentavel-um-caminho-para-a-integracao-regional/>. Acesso em: 20 abr. 2020.
UNESCO/UN-Water. United Nations World Water Development Report 2020: Water and Climate Change, Paris, UNESCO, 2020.
UN-Water. Water facts: Handwashing/Hand hygiene. United Nations – UN Water, 20/04/2020. Disponível em: <https://www.unwater.org/water-facts/handhygiene//>. Acesso em: 20 abr. 2020.
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Escrito por

Observatório de Regionalismo

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