Em agosto, a Reforma Trabalhista aprovada pelo legislativo brasileiro e sancionada por Michel Temer virou pauta de problematização no Mercosul, pois, considerando a Declaração Sociolaboral acordada pelos países do bloco em julho de 2015, o governo uruguaio enviou ao seu equivalente brasileiro, ocupante do cargo de presidência pro tempore da instituição, uma nota para que sejam analisados os eventuais impactos dessa medida para as dinâmicas da integração. Em linhas gerais, o país de Tabaré Vazquez sustenta que as mudanças a serem inauguradas pelas novas disposições trabalhistas no Brasil possam ter desdobramentos tanto para os trabalhadores, quanto para as empresas uruguaias. De maneira sucinta, a ideia de dumping social (prática de financiamento da competitividade empresarial às custas de direitos trabalhistas) permeia o desconforto expresso. No entanto, como surgiu, em que consiste e qual o alcance da Declaração Sociolaboral do Mercosul em que se baseia o governo do Uruguai?

Após a década de 1980, famigerada década perdida na América Latina, as aberturas de mercado e a participação mais efetiva nos processos de globalização têm aprofundado contrastes e demandas diversas de sociedades, cada vez mais, complexas. Por um lado, a busca por melhores condições de produção fomenta a inquietação das elites produtivas internas, que passaram a competir de forma mais acirrada com seus pares internacionais, bem como destes últimos, os quais primam por reservas normativas que garantam sua competitividade. E, no sentido do segundo caso, merecem destaque as reivindicações de economias desenvolvidas. Por outro lado, as contradições e imposições desses movimentos geram tensões nos indivíduos via proeminência dos direitos trabalhistas e as possibilidades de afrouxamento ou expansão de suas garantias. Desse modo, é a partir do contexto em pauta que a inclusão de temas trabalhistas em tratados comerciais se faz presente (SIROËN, 2013).

No caso do Mercosul, a primeira Declaração Sociolaboral é de 1998, portanto ainda inserida na fase de seu apogeu neoliberal (1990-1999), quando as administrações, principalmente brasileira e argentina, priorizaram relações comerciais em detrimento da produtividade, e, já no final da década, com o declínio das trocas intrabloco, dúvidas sobre o modelo adotado (economicamente enviesado) abriam novas perspectivas à integração (GARDINI: 2011). O documento assinado resultou da negociação entre os governos, sindicados e empregadores, prevendo direitos individuais, coletivos e outros direitos. Em suma, os direitos individuais versavam sobre a não discriminação, a igualdade de tratamento, trabalhadores migrantes e de regiões fronteiriças, a eliminação do trabalho forçado, a abolição do trabalho infantil e de menores de idade e os direitos dos empregadores. Já os direitos coletivos focavam as liberdades de associação e sindical, a negociação coletiva, a greve, a utilização de procedimentos independente e imparciais para a solução de controvérsias e, em último, o diálogo social. Por sua vez, os outros direitos contemplavam o fomento ao emprego, a proteção aos desempregados, a instituição de programas de formação e orientação profissional, a saúde e a segurança no trabalho, normas de inspeção e, finalmente, a assistência e amparo mínimo frente a riscos sociais, doenças, velhice, invalides e morte.

Com relação à aplicação e seguimento de suas normas, a Declaração: promoveu a criação da Comissão Sociolaboral, a qual se incumbe de supervisionar e recomendar atribuições referentes ao prescrito; e sustentava que invocar o documento sociolaboral não é possível para fins além dos que prevê, estando vedada sua utilidade para questões comerciais, econômicas e financeiras (Artigo 25º). Além disso, sua mecânica de aplicação apresentou algumas ressalvas quanto ao seu não cumprimento pelos Estados, o que não implicava a suspensão dos benefícios tarifários previstos no Tratado de Assunção, e ao seu cumprimento, o qual se daria sem a exigência de internalização nos corpos jurídicos locais para que se faça eficaz e vinculante (em todos os países do Mercosul, diversos tribunais já evocaram a Declaração como fonte de direito em suas sentenças), entretanto prevê seu reconhecimento e aplicação via legislação interna de cada Estado (CASTELLO: 2016).

O Artigo 24º do documento em questão previa sua revisão, partindo do reconhecimento da qualidade dinâmica dos assuntos que tratava e tendo em vista o aprofundamento do processo de integração. A princípio dois anos foram considerados e as eventuais alterações deveriam inspirar-se, sobretudo, na experiência acumulada e nos trabalhos formulados pela Comissão Sociolaboral. Não obstante, a segunda versão da Declaração Sociolaboral do Mercosul é de julho de 2015 e traz em seu preâmbulo: “Considerando o estabelecido no artigo 24 da Declaração Sociolaboral do MERCOSUL, os Estados Partes procederam à revisão da Declaração firmada em 10 de dezembro de 1998.”.

De modo genérico, o novo acordo inaugura a seção Princípios Gerais, onde se encontram seus preceitos norteadores, a saber: trabalho decente e empresas sustentáveis. O primeiro remete ao conceito inaugurado em 1999 no âmbito da Organização Internacional do Trabalho e, basicamente, se ampara em quatro dimensões: “os direitos e princípios fundamentais do trabalho, a promoção do emprego de qualidade, a extensão da proteção social e o diálogo social”. Por sua vez, as empresas sustentáveis têm por base um estudo da OIT de 2007, visando, grosso modo, a integração produtiva da região, o respeito à dignidade humana e ao meio ambiente e, inclusive, a própria manutenção do trabalho decente.

As demais seções são Direitos Individuais, Direitos Coletivos, Outros Direitos, Aplicação e Seguimento e Disposições Transitórias. Enquanto a versão de 1998 mantinha 25 artigos, a Declaração vigente sustenta 34 e esse incremento, pode-se dizer, descreve sua órbita ao redor dos princípios mencionados e torna patentes a defesa de oportunidades e de tratamento entre homes e mulheres (Artigo 5º) e para trabalhadores com deficiência (Artigo 6º), o direito à jornada de trabalho não superior a oito horas diárias  (Artigo 11º), proteção contra demissão (Artigo 15º), a liberdade sindical, estando os Estados comprometidos a “envidar esforços para assegurar o direito à criação e à gestão das organizações de trabalhadores e de empregadores e de reconhecer a legitimidade na representação e na defesa de seus representados nos diferentes âmbitos” (Artigo 16º), o diálogo social, sendo que os “Estados Partes comprometem-se a fomentar o diálogo social em âmbito nacional e regional, instituindo mecanismos efetivos de consulta permanente entre representantes dos governos, dos empregadores e dos trabalhadores, a fim de garantir, mediante o consenso social, condições favoráveis para o crescimento econômico sustentável e com justiça social na região e à melhoria das condições de vida de seus povos” (Artigo 20º), a centralidade do emprego nas políticas públicas para alcançar o desenvolvimento sustentável na região (Artigo 21º), o fomento ao emprego  “a fim de elevar o nível de vida e corrigir desequilíbrios sociais regionais” (Artigo 22º)  e a revisão da Declaração após seis anos de sua adoção (Artigo 32º).

Desse modo, o documento prescreve compromissos e metas para seus Estados participantes, contudo prevalecem suas mecânicas de aplicação, dependentes de um suposto voluntarismo para serem incorporadas de fato, porém, ao mesmo tempo, vinculantes.

Agora, se nos voltarmos àquela temática inicial: a dimensão regional da Reforma Trabalhista do governo brasileiro; temos mais elementos para problematizá-la.

É fato que a situação política e econômica no Brasil hodierno é indigesta: o presidente não eleito é considerado ruim/péssimo por 69% dos brasileiros (Datafolha), tido como envolvido nas corrupções desveladas pela Operação Lava-Jato por 83% (Datafolha), o PIB do país não é positivo desde 2014 (IBGE) e a taxa de desemprego no trimestre fevereiro, março e abril de 2017 era de 13,6%, 14 milhões de pessoas (Pnad- IBGE, em Folha de S. Paulo). Nesse sentido, a administração Temer defendeu o casamento entre a Lei de Terceirização (mais informação aqui) e a Reforma Trabalhista (mais informação aqui) (sem contar a almejada, pelo governo e setores a ele alinhados, Reforma Previdenciária) sob a bandeira de que tais medidas criarão mais empregos no país. Assim, a nova configuração trabalhista pode gerar empregos, contudo vai na contramão dos quatro pilares do trabalho decente (os direitos e princípios fundamentais do trabalho, a promoção do emprego de qualidade, a extensão da proteção social e o diálogo social).

Em linhas gerais, a Reforma é rejeitada pela maioria da população e observada por esta como um instrumento mais benéfico aos empresários, contra os trabalhadores (Datafolha), além disso, tendo em conta o chamado Projeto de Emenda Constitucional do teto dos gastos públicos (PEC 241 ou PEC 55), a estratégia de recuperação econômica proposta não parece lastreada em um projeto de longo prazo, afinal o congelamento de gastos proposto pode impactar o desenvolvimento cognitivo e científico do país e, portanto, a capacidade modernizante de suas empresas. Como corolário, o conjunto das ações propostas e aprovadas pelo governo criam melhores condições para o desenvolvimento do empresariado, proporcionando competitividade a priori para este setor em detrimento de conquistas sociais enraizadas no ordenamento social brasileiro.

Portanto, é a partir da perspectiva de quem encara as mudanças encabeçadas pelo governo brasileiro como nocivas à concorrência intrabloco que o Uruguai se mostra preocupado. Como resultado, os ministros desse país Ernesto Murro (Trabalho e Seguridade Social) e Rodolfo Nin Novoa (Relações Exteriores) expressaram o temor de seu governo, o qual se atenta à possibilidade de competição fundada no “retrocesso” e na “queda dos direitos trabalhistas”, e, portanto, recorrem a Declaração Sociolaboral do Mercosul.

Em suma, se considerarmos os artigos 21º e 22º, Centralidade do Emprego nas Políticas Públicas e Fomento do emprego, a criação de empregos deve ser central para os Estados, bem como a busca por elevação do nível de vida e a correção dos desequilíbrios sociais e regionais. Sendo assim, por um lado, a administração Temer justifica suas ações através do fomento ao emprego, mas, por outro, as medidas propostas podem aumentar os desequilíbrios sociais e regionais. Já observando o Artigo 20º, Diálogo social, as rejeições dos brasileiros tanto ao governo, quanto à Reforma Trabalhista, alimentam a suspeição de que a consulta tripartite, entre representantes dos governos, dos empregadores e dos trabalhadores, não fora suficiente.

Para concluir, as complexas dinâmicas presentes nas sociedades atuais produzem contradições, tensões e demandas bastante frequentes à resolução dos Estados, os quais são pressionados por seus cidadãos organizados, suas elites nacionais, elites regionais (de um processo de integração/ regionalização) e elites internacionais. Destarte, a expansão de leis trabalhistas internacionais se insere no desenrolar desses processos, visando a proteção dos cidadãos e, também, a regulamentação da competitividade comercial. Logo, quando no Brasil é sancionada a Reforma Trabalhista, não prefigura incorreta a asserção de que o caminho escolhido talvez não seja o correto, ou o adequado, afinal parece negar as duas premissas mencionadas. Na hipótese da competição desigual, esta pode ter impacto negativo para o aprofundamento do processo de integração do Mercosul, tendo no episódio da nota uruguaia um marco disso; bem como refletir em cautela de outras partes para relacionar-se comercialmente com o Brasil.

Escrito por

Angelo Lira

Mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp - Unicamp - Puc-SP). Pesquisador vinculado ao Observatório de Regionalismo e ao Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI). Membro da Comissão Editorial do Boletim Lua Nova (CEDEC).