Imagem por EDD 2022

Durante os dias 21 e 22 de junho de 2022, a Comissão Europeia organizou as 16.ª Jornadas Europeias do Desenvolvimento (European Development Days, EDD), uma conferência para fomentar a discussão, o networking e a cooperação sobre diferentes temas, com uma ampla participação de jovens líderes, presidentes, primeiros-ministros, ministros, representantes do setor privado, instituições multilaterais, bancos e muito mais. O tema deste ano foi o ‘Global Gateway’.

Lançado em 1º de dezembro de 2021, o ‘Global Gateway’ intitulou-se como a contribuição da União Europeia (UE) para reduzir as demandas por investimento em todo o mundo. Alinhada com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas para 2030, e os compromissos dos líderes do G7 a partir de junho de 2021 para o âmbito do desenvolvimento sustentável, a UE declarou investimentos de até 300 bilhões de euros até 2027 em cinco (5) áreas-chave: 1. setor digital; 2. clima e energia; 3. transporte; 4. saúde; 5. educação e pesquisa.

Através do ‘Global Gateway’, a UE espera reforçar as ligações entre a Europa e o mundo através de: 1. apoio e financiamento para a conectividade digital; 2. investimento em energia limpa para mitigação e resiliência climática; 3. promoção do desenvolvimento de infraestrutura sustentável, inteligente e não focado exclusivamente em rodovias; 4. superação de gargalos na cadeia de suprimentos, especialmente no aspecto farmacêutico, por meio do investimento no desenvolvimento das capacidades produtivas locais; e 5. investimento em educação de qualidade, digitalização e inclusão, especialmente de meninas, mulheres e grupos vulneráveis em todo o mundo.

Mas como o ‘Global Gateway’ promoverá todas essas conexões? De acordo com a UE, o ‘Global Gateway’ será apoiado financeiramente pelo Banco Europeu de Investimento (EIB) e pelo Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (EBRD). No entanto, a estratégia conta também com a participação de bancos nacionais dos Estados-Membros da UE. Além disso, durante o EDD, a Comissária Europeia de Parcerias Internacionais, Jutta Urpilainen, afirmou várias vezes que a UE também busca mobilizar o setor privado, não apenas do lado da UE, mas de seus parceiros globais, para alavancar o impacto desses investimentos em infraestrutura.

É interessante destacar que o ‘Global Gateway’ conta também com o apoio de novos instrumentos financeiros da UE, nomeadamente: o Instrumento de Vizinhança, Desenvolvimento e Cooperação Internacional (NDICI)-Global Europe; o Instrumento de Assistência de Pré-Adesão (IPA) III; o Mecanismo Interligar a Europa; o Interreg; InvestEU; o Horizonte Europa; o Fundo Europeu para o Desenvolvimento Sustentável+ (FEDS+); e o braço financeiro do NDICI-Global Europe, que disponibilizará até 135 bilhões de euros para investimentos em projetos de infraestrutura entre 2021 e 2027.

A UE tem sido um ator importante na arena internacional, no entanto, desde a crise econômica global de 2008, seu papel como credor e apoiador financeiro internacional sofreu uma queda profunda. Como pode ser visto na base de dados do Banco Mundial, de 2007 a 2009, os Investimentos Externos Diretos (IED) da União Europeia no mundo caíram de 11,1% do seu PIB investido no exterior, para 3,9%, respectivamente. Além disso, desde 2016 o mundo viu mais uma queda dos investimentos da UE no exterior, atingindo em 2018 um dos seus investimentos mais baixos desde a década de 1970, 0,8% (Imagem 1).

Imagem 1 – Investimento Externo Direto, saídas líquidas (% do PIB) – União Europeia

Fonte: Banco Mundial

Dessa maneira, a estratégia “Global Gateway” surge em um momento importante, não apenas para trazer a UE de volta à sua posição de influência na estrutura internacional, mas como player global através dos investimentos globais dirigidos ao cumprimento da Agenda 2030 da ONU. Como apontam diferentes estudos, os investimentos da UE, do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) no exterior têm, em comparação com os investimentos chineses, por exemplo, um impacto de maior qualidade para o desenvolvimento, pois são delineados por propósitos governamentais, sociais e ambientais (Gallagher 2016). No entanto, tais investimentos e empréstimos dessas agências ocidentais também apresentam maiores condicionalidades para os países em desenvolvimento, sendo de difícil acesso aos países menores e mais instáveis, que, ao mesmo tempo, são os que mais necessitam de recursos.

O ‘Global Gateway’ apresenta uma oportunidade para direcionar investimentos e empréstimos para construir infraestrutura (transporte, digital, energia, saúde e educação) e superar nos próximos anos a enorme lacuna e as dificuldades existentes para muitos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento no acesso a esses recursos.

No entanto, é importante entender como tais recursos podem ser recebidos, uma vez que os bancos ocidentais têm requisitos a serem cumpridos, por parte dos países, para que o financiamento seja aprovado. Nesse sentido, a UE anunciou que, no âmbito do ‘Global Gateway’, será prestada assistência técnica aos parceiros para reforçar a sua capacidade na preparação de projetos de infraestruturas credíveis. Durante o EDD, um dos principais pontos discutidos sobre o acesso aos recursos do ‘Global Gateway’ foi o compromisso necessário da contraparte dos parceiros na melhoria da prestação de contas. Tal cenário pode ser alcançado, como aponta a comissária da UE Jutta Urpilainen, garantindo transparência, longevidade e contingência ao uso desses recursos, com foco no fortalecimento das capacidades institucionais dos Estados.

Ao ter participado do EDD 2022, gostaria de destacar alguns pontos centrais e percepções frente aos variados painéis que foram realizados sobre a estratégia ‘Global Gateway’. Em primeiro lugar, houve 9 painéis discutindo diferentes contribuições potenciais do ‘Global Gateway’, sendo 5 deles para discutir a estratégia em diferentes regiões do globo: Ásia Central, África, região do Indo-Pacífico, a vizinhança europeia e América Latina e Caribe.

Durante a Conferência de Abertura, Ursula von der Leyen, Presidente da Comissão Europeia, destacou a importância de abordar o déficit global de investimento em infraestrutura, especialmente no período pós-Covid. O ‘Global Gateway’ foi apontado como “a melhor escolha para investimentos em infraestrutura, tendo 3 objetivos principais: resiliência, sustentabilidade e cooperação. Na mesma conferência, o Presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, disse que tal estratégia visa impulsionar a Europa como fonte de desenvolvimento global.

De outros pontos de vista, durante a abertura, houve também alguns aportes críticos e demandantes em relação à UE. O Rei do Lesoto, Letsie III, destacou as desigualdades entre o Norte e o Sul, vendo a cooperação como essencial para superar as desigualdades, a pobreza e muitos outros problemas que afetam o mundo, especialmente o Sul Global. O Presidente de Gana, Nana Akufo-Addo, trouxe no seu discurso o problema do aumento da pobreza e o acesso limitado a créditos e empréstimos pelos países africanos, sendo importante avançar na cooperação UE-África. Além disso, e durante os 2 dias de evento, as alterações climáticas e o impacto ambiental foi um dos temas principais quando se discutiu a necessidade do investimento em energias verdes e infraestruturas sustentáveis. Nesse sentido, por exemplo, o Presidente de Cabo Verde, José Maria Neves, chamou a atenção para o aumento das secas, bem como para o crescimento da desertificação no país.

Durante o painel ‘A Geopolítica do Global Gateway’, muitas questões importantes foram destacadas pelos palestrantes. Kandeh K. Yumkella, economista agrícola de Serra Leoa, político e ex-subsecretário-geral das Nações Unidas, questionou:Como o Global Gateway se diferencia, ou complementa a Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI), da China, ou a iniciativa norte-americana Construindo um Mundo Melhor (BW3)?

Trazendo a perspectiva de muitos países africanos, Yumkella destacou que a parceria com a Europa deve ajudar e considerar as necessidades da África, no longo e no curto prazo. Ressaltando que o continente africano é rico em matérias-primas e minerais necessários, Yumkella afirmou que os países africanos não querem que o Global Gateway promova uma parceria com foco em suas matérias-primas, mas sim que promova uma relação equitativa e igualitária, visando o desenvolvimento, industrialização e construção de cadeias de valor regionais. Além disso, o economista salientou ainda que a China não é vista como uma ameaça em África, mas sim uma oportunidade, e que cada parceria é uma oportunidade para a ambição africana de industrialização

Imagem 2 – Painel: ‘A Geopolítica do Global Gateway”

Fonte: EDD 2022

Durante o painel ‘Global Gateway na região Indo-Pacífico’, muitos foram os questionamentos dos representantes governamentais sobre como a UE pretende lidar com a diversidade e assimetria dos países nas regiões, já que essa diversidade resulta em diferentes necessidades. Como a UE atenderia a essas necessidades? O ex-presidente de Timor-Leste, Kay Rala Xanana Gusmão, discutiu a decepção dos países mais pobres do Indo-Pacífico com o baixo desenvolvimento da infraestrutura, preocupado que o ‘Global Gateway’ seja uma iniciativa muito grande para alcançar algo concreto.

Respondendo às perguntas levantadas durante o Painel Indo-Pacífico, Jean-Louis Ville, Diretor Interino da Comissão Europeia para Parcerias Internacionais com o Oriente Médio, Ásia e Pacífico (INTPA.C), apontou que não existe algo como uma proposta única para todos, afirmando que ouvir as necessidades e expectativas de cada país era um dos objetivos da EDD. Nesse sentido, Jean-Louis Ville afirmou que uma agenda de projetos será definida conjuntamente, considerando as diferentes necessidades existentes, sem deixar de lado os esforços para combater a desigualdade na região.

Imagem 3 – Painel: “Global Gateway na região Indo-Pacífico”

 Fonte: EDD 2022

Por fim, o painel “Global Gateway na América Latina e no Caribe (ALC)” abordou um tema específico sobre infraestrutura, a infraestrutura digital. A comissária Jutta Urpilainen mencionou que no dia 15 de junho esteve presente no lançamento do trecho do Equador da conexão digital entre a Europa e a América Latina dentro do projeto BELLA (Building Europe Link to Latin America). O cabo submarino de fibra óptica conecta a Europa e a América Latina com o objetivo de fornecer conectividade confiável de alta capacidade para impulsionar os intercâmbios comerciais, científicos e culturais entre os dois continentes. Atualmente, a BELLA já liga Portugal ao Brasil, Argentina, Chile, Peru, Equador e Colômbia.

Imagem 4 – Projeto BELLA

Fonte: BELLA

Após discutir sobre as conexões digitais e a transformação digital na ALC, tive a oportunidade de perguntar aos palestrantes do painel sobre as expectativas dos representantes da ALC em relação ao ‘Global Gateway’, bem como as ações da UE para direcionar investimentos em infraestrutura que poderiam impactar as necessidades concretas da região.

Imagem 5 – Participação no Painel “Global Gateway na América Latina e no Caribe”

Fonte: EDD 2022.

Abordando a visão da ALC, Mario Cimoli, secretário-executivo interino da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), destacou a necessidade de se pensar as heterogeneidades entre a ALC e a UE. Dentro da ALC seria necessário direcionar os esforços para a regulamentação e padronização entre os países, no qual a integração regional teria um papel importante. Além disso, Cimoli destacou que a UE como parceira da região deve ir além da estratégia ‘Global Gateway’, conjugando-a com uma política de investimentos que possa gerar empregos, e impactar no desenvolvimento da ALC e no combate à desigualdade, especialmente no acesso à internet nos lares latino-americanos.

Por parte da UE, a Comissária Jutta Urpilainen apontou os principais desafios para um impacto positivo e efetivo mais amplo do “Global Gateway” no desenvolvimento da ALC: corrupção e instituições fracas. Perante estes desafios, a Comissária disse que é importante reforçar a governança para gerar maior atratividade para os investimentos da UE, especialmente os provenientes do setor privado. A previsibilidade e a transparência foram destacadas como cruciais, considerando que a ALC deveria desempenhar seu papel na garantia de sua prestação de contas, que também é fundamental para a manutenção da democracia na região.

Imagem 6 – Painel “Global Gateway na América Latina e no Caribe”

Fonte: EDD 2022.

Também é importante destacar que durante o painel da ALC sobre o ‘Global Gateway’, estiveram presentes representantes apenas de Belize e Costa Rica, que apresentaram suas visões individuais e nacionais para a estratégia europeia e sua aproximação com a UE. Foi possível visualizar a diferença de posicionamento e unidade ao comparar os debates da ALC com os demais painéis. Enquanto os países africanos apresentavam demandas comuns à UE, defendendo seus objetivos de industrialização e de construção de cadeias de valor regionais por meio da União Africana, a participação latino-americana retratou sua atual fragmentação regional, não apresentando uma visão conjunta de como a estratégia da UE poderia beneficiar a região como um todo.

Além disso, os problemas ambientais enfrentados pela região não foram mencionados durante a discussão sobre digitalização. Em outro painel sobre a ALC, cujo tema foi “Caminhos Verdes na ALC”, discutiu-se sobre a transição energética na região. Neste painel, o representante da CEPAL, Mario Cimoli, destacou a dificuldade da transição na região, que já possui energias renováveis de alta qualidade em seu território, mas que são suprimidas pela demanda internacional de petróleo, tornando a transição verde desvantajosa. Em nenhum momento os problemas indígenas foram abordados. Conforme discutido anteriormente no Observatório de Regionalismo, o acordo UE-MERCOSUL, por exemplo, ignora as demandas das populações indígenas latino-americanas, ampliando as áreas de exploração agrícola que invadem e aumentam a exploração dos territórios indígenas. Tal problema deve ser considerado quando se pensa nas relações da UE e da ALC.

Durante a EDD foi possível ver as prioridades da UE para suas parcerias futuras, nas quais o continente africano ocupa o primeiro lugar de prioridade, a Ásia o segundo e, por último, a América Latina e Caribe. O que deve ser analisado cautelosamente nos próximos anos são os objetivos da UE em impulsionar uma estratégia global de financiamento do desenvolvimento e infraestrutura. Para além dos objetivos econômicos, através dos quais empresas e construtoras europeias terão acesso a diferentes mercados, há também interesses geopolíticos. Como dito anteriormente, a UE teve uma mudança em seu posicionamento dentro da estrutura internacional, tendo no ‘Global Gateway’ uma oportunidade de retomar sua participação internacional de maior impacto. Porém, não está claro como essa estratégia se diferenciará das iniciativas chinesas e norte-americanas, frente às necessidades e demandas reais das outras regiões do globo.

A UE afirma que o seu objetivo é fazer a sua parte, enquanto um global player, para ajudar os países a ultrapassar as suas lacunas de investimento e alcançar, em conjunto, os objetivos da agenda de desenvolvimento sustentável para 2030. No entanto, houve muitas menções sobre a presença chinesa em todo o mundo e a oportunidade trazida pela UE em apresentar “uma opção melhor” para investimentos dirigidos ao desenvolvimento.

O ‘Global Gateway’ entregará projetos sustentáveis e de alta qualidade, levando em consideração as necessidades dos países parceiros e garantindo benefícios duradouros para as comunidades locais, como dizem? Teremos que seguir acompanhando o desenvolvimento desta estratégia e da parceria entre a UE e as diferentes regiões do globo. No entanto, alcançar uma relação de ganhos mútuos dependerá mais da capacidade regional de cooperar e defender conjuntamente suas necessidades e prioridades, ao invés de priorizar a negociação bilateral, na qual ganha preponderância as prioridades nacionais e individuais. O regionalismo e a cooperação podem desempenhar um papel crucial nestas parcerias transatlânticas.

 

Referências

Gallagher, Kevin. 2016. The China Triangle: Latin America’s China Boom and the Fate of the Washington Consensus. New York, NY, United States of America: Oxford University Press.

 

Escrito por

Bárbara Carvalho Neves

Doutora e Mestre pelo Programa de Pós Graduação em Relações Internacionais - San Tiago Dantas. Bolsista FAPESP (20/04348-5).
Colaboradora do Laboratório de Novas Tecnologias de Pesquisa em Relações Internacionais (LANTRI), do Grupo Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (REPRI) e do Grupo de Reflexión sobre Desarrollo y Integración en América Latina y Europa (GRIDALE).
Áreas de Interesse: Política Externa Brasileira, Regionalismo Sul-Americano, Instituições Regionais, Integração em Infraestrutura, IIRSA e COSIPLAN.
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