O crescente destaque de atores subnacionais (sejam estados ou regiões) em articulações e organizações internacionais tem sido um tema cada vez mais recorrente e importante dentro do estudo das Relações Internacionais. Termos como descentralização e governança têm ganhado cada vez mais espaço, e têm como característica em comum a inserção de outros atores no ambiente internacional. Exemplos dessas interações são o Comitê das Regiões, da União Europeia, que conta também com um fundo regional, incluindo até mesmo regiões transfronteiriças. Outros exemplos são redes de cidades (como o União Ibero-Americana de Cidades, UCCI; Grupo de Liderança de Cidades e Clima, C40; Governos Locais para o Desenvolvimento Sustentável, ICLEI, entre outras), ou até mesmo cidades que assinam tratados internacionais, como foi o caso recentemente de São Paulo e a Declaração de Paris1)A Declaração de Paris é um acordo entre cidades, promovido pelo Conselho Europeu de Municipalidades e Regiões e pela rede de unidades subnacionais (governos locais e regionais) Forum Zero Carbone.. Esse artigo traz informações sobre a criação da primeira iniciativa de destaque no âmbito de Estados Federados no Brasil, o Consórcio Nordeste, e após uma breve contextualização, chamamos atenção para três características de sua atuação: integração regional, diplomacia científica e como ator de um movimento municipalista internacional. Por fim, são realizadas observações sobre o caráter inovador do Consórcio Nordeste no Brasil, já que as ações subnacionais do país são majoritariamente municipais. 

A criação do Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável do Nordeste (Consórcio Nordeste) foi assinada em 2019 pelos nove estados da região Nordeste: Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe. A criação do consórcio foi possível graças à lei dos consórcios públicos, aprovada em 2005, que possibilitou a criação de pessoas jurídicas para unidades federativas com interesses e objetivos em comum. Curiosamente, a integração regional2) Nesse contexto, o termo integração regional está mais relacionado à integração territorial, a partir de infra-estrutura e difusão de políticas públicas, por exemplo é citada como o objetivo principal do consórcio. A substituição da competição pela cooperação, frequentemente citada como parte dos objetivos e origens da integração regional, também é mencionada como crucial para a região e criação do consórcio, principalmente no que diz respeito às compras públicas.

O Consórcio foi criado em 2019 para ser o instrumento jurídico, político e econômico de integração dos nove Estados da região Nordeste do Brasil, um território de desenvolvimento sustentável e solidário neste momento de grandes desafios. O Consórcio é uma iniciativa que pretende atrair investimentos e alavancar projetos de forma integrada, constituindo-se, ao mesmo tempo, como uma ferramenta de gestão criada e à disposição dos seus entes consorciados, e como um articulador de pactos de governança. Dentre as possibilidades abertas com a criação do Consórcio, estão a realização de compras conjuntas, a implementação integrada de políticas públicas e a busca por cooperação, também em nível internacional.(Consórcio do Nordeste, 2021)

Outro ponto digno de nota é a conjuntura na qual o Consórcio Nordeste é criado.  O que vem recentemente sendo chamado de “movimento municipalista internacional” chama atenção para atores subnacionais que utilizam como estratégia a oposição aos governos nacionais como forma de se destacar em paradiplomacia, buscar alianças e investimentos fora de seus países. Esse tem sido um método observado especialmente no cenário recente marcado pela insurgência de governos populistas, pela retomada de valores como o nacionalismo e por inspirações de movimentos de extrema direita que têm surgido em diversas regiões no cenário internacional.

Essa estratégia dá enfoque principalmente para questões de meio ambiente e democracia. Assim, esses atores subnacionais tornam-se micro polos de valores democráticos, ou cidades que se comprometem com as metas de tratados internacionais para o meio ambiente, desenvolvimento sustentável e clima. Nesse sentido, o Consórcio Nordeste pode ser visto também como uma resposta à eleição e ao governo Bolsonaro, já que a proposta do consórcio é fortemente conectada com valores de governos progressistas.

Essa aliança nasceu, diria, da identidade do Nordeste, não de uma combinação prévia entre os governadores. Nos 15 anos de administração Lula e Dilma, a região viveu um crescimento extraordinário, acima da média nacional. Na Bahia, tínhamos uma universidade federal. Hoje são seis. Havia uma escola técnica. Atualmente são 35. E assim foi em diversas áreas. O Nordeste percebeu que a expansão da economia está ligada à distribuição de renda. Ficou nítido que esse modelo faz bem ao País, não o seu contrário. Esse sentimento foi esteio para a unidade dos governadores, muito sólida atualmente. (Governador Rui Costa, ex-presidente do Consórcio Nordeste)

A ideia de oposição é utilizada também para construir parcerias internacionais, o que tem sido uma das frentes mais fortes de atuação do Consórcio Nordeste. A liderança de Ernesto Araújo no Itamaraty (2019-2021) seria também um facilitador para essas articulações internacionais ao criar um “vácuo” nas relações do Brasil com outros países. Nesse sentido, o Nordeste prevê a partir dessas alianças a integração energética da região, em cooperação com a França, e a atração de investimentos em educação e outras áreas, especialmente com Alemanha, França e Itália. A integração envolve também como objetivo a adoção de políticas públicas comuns, como já foram notadas nos setores de segurança pública e agricultura familiar.

Essas relações estabelecem a chamada science diplomacy 3)De acordo com Turekian, ex-diretor da AAAS, science diplomacy é  “o uso e aplicação de cooperação científica para ajudar a construir pontes e fortalecer relacionamentos entre e dentre as sociedades, com um interesse particular por áreas nos quais podem não haver outros mecanismos de engajamento em um nível oficial”.(diplomacia científica) que tem sido uma importante ferramenta para a União Europeia e seus países estabelecerem relações diplomáticas (no caso do nível subnacional, paradiplomáticas). Sendo apresentado um novo conceito para uma prática tão antiga quanto às relações internacionais, a diplomacia científica tem como método utilizar-se da ciência para estabelecer relações diplomáticas, assim como utilizar-se dessas relações já estabelecidas para a cooperação e intercâmbio científico. 

A redução de custos a partir de compras conjuntas fez a promessa de “realizar mais por menos”, inclusive em compras internacionais. O fato de esse ser um dos principais pontos focais da iniciativa fez com que o Consórcio Nordeste ganhasse destaque no cenário da COVID-19. A única crítica, no entanto, relaciona-se com a transparência da instituição. Uma polêmica relacionada com o desvio de verba na compra de respiradores na crise do COVID-19 fez com que fosse aberta uma CPI4) No caso, CPI é a sigla de Comissão Parlamentar Interestadual. em julho de 2020, e, desde então, transparência em gastos e no orçamento tem sido uma das prioridades da iniciativa. Os esforços não se limitaram aos suprimentos hospitalares, mas incluem os esforços pela compra de vacinas. Foi fechado um acordo com a Rússia pela compra de doses da vacina Sputnik V, e mesmo após ser acionado o Supremo Tribunal Federal (STF) (pelo governo do Maranhão e do Ceará, ambos participantes do Consórcio Nordeste), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) adiou a visita ao laboratório russo para inspeção

Como exemplo de diferença no destaque internacional dos subníveis locais e regionais, podemos citar o engajamento desses atores com as organizações regionais internacionais. No caso do Comitês das Regiões (órgão consultivo da União Europeia), participam autoridades de divisões administrativas locais (cidades) e regionais (departamentos, distritos, províncias, estados, etc.), o que faz com que diferentes níveis se engajem no processo. No caso do Mercosul, foi criado também um órgão consultivo representativo de regiões, o Foro Consultivo de Municípios, Estados Federados, Províncias e Departamentos do Mercosul (FCCR),explorado por Cairo Junqueira em um post aqui no Observatório de Regionalismo. A observação das atividades do FCCR constatou baixo engajamento de atores que não fossem as cidades. Essa falta de interesse foi uma questão problemática já no notável esvaziamento na divisão de estados federativos do FCCR5) O FCCR se divide entre dois Comitês, um para a articulação de níveis regionais, denominado Comitê de Estados Federados, Províncias e Departamentos, e outro encarregado de níveis locais, o Comitê de Municípios

Além disso, existe uma assimetria de participação: as municipalidades de maior engajamento eram pertencentes às divisões sul e sudeste do país; outras municipalidade que se destacaram nessas iniciativas eram pertences às regiões de  regiões de fronteira com outros países do Mercosul (Argentina, Paraguai e Uruguai). A entrada da Venezuela possibilitaria também corrigir essas assimetrias, contando com uma maior participação e integração de outras partes do Brasil (que não a Sul e Sudeste) no bloco, além da incorporação de novas fronteiras, mas com a suspensão precoce do país no Mercosul não foi possível verificar se essa tendência se confirmaria. Essa diferença na atuação também pode se destacar o Mercocidades, que engloba centenas de cidades do Mercosul ampliado. Com um forte engajamento no nível municipal, é possível perceber, diferentemente do caso observado na União Europeia, que existe, na região do Cone Sul, uma falta de atuação dos estados federativos no nível internacional. Nesse contexto, o Consórcio Nordeste inova ao (1) ser um ator de nível regional (estados federados) de destaque internacional, (2) especialmente sendo uma parte do país que conta com menor engajamento nos canais já disponíveis. 

Entretanto, a atuação do Consórcio Nordeste é recente para se afirmar quais os rumos do consórcio. Com menos de dois anos completos de atuação, é cedo para dizer se as três características citadas aqui continuarão em plena atividade e se consolidarão; ou se perderão força frente à estratégia de não-alinhamento com o governo federal, enfrentando também não-alinhamento entre os governadores. Por outro lado, o cenário de avaliação atual oferece uma instituição promissora de cooperação estadual, que ocupa um espaço de prioridade nesses governos subnacionais, e que causou uma relevante projeção internacional a partir das características aqui citadas, especialmente levado em conta os desafios propostos pelo COVID 19.

Notas   [ + ]

1. A Declaração de Paris é um acordo entre cidades, promovido pelo Conselho Europeu de Municipalidades e Regiões e pela rede de unidades subnacionais (governos locais e regionais) Forum Zero Carbone.
2. Nesse contexto, o termo integração regional está mais relacionado à integração territorial, a partir de infra-estrutura e difusão de políticas públicas, por exemplo
3. De acordo com Turekian, ex-diretor da AAAS, science diplomacy é  “o uso e aplicação de cooperação científica para ajudar a construir pontes e fortalecer relacionamentos entre e dentre as sociedades, com um interesse particular por áreas nos quais podem não haver outros mecanismos de engajamento em um nível oficial”.
4.  No caso, CPI é a sigla de Comissão Parlamentar Interestadual.
5.  O FCCR se divide entre dois Comitês, um para a articulação de níveis regionais, denominado Comitê de Estados Federados, Províncias e Departamentos, e outro encarregado de níveis locais, o Comitê de Municípios

Escrito por

Tainá Siman

Mestra em Relações Internacionais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) com bolsa CAPES, com dissertação intitulada "Governança Multinível no Mercosul: uma análise a partir do processo observado na União Europeia". Bacharel em Relações Internacionais pela PUC Minas, com período de intercâmbio acadêmico na Universitat Autónoma de Barcelona (UAB). Durante a graduação, foi também bolsista de iniciação científica da FAPEMIG, com o projeto “Zona Tripartida Livre Comércio – A União Faz a força? Uma análise político-econômica sobre o potencial da integração africana para o desenvolvimento”, sobre o acordo Tripartite COMESA-SADC-EAC. Também foi bolsista do projeto de extensão MINIONU. Participou do primeiro curso de verão do United Nations University Institute on Comparative Regional Integration Studies (UNU-CRIS) com bolsa em excelência acadêmica, e realizou estágio de curto período no Instituto Social do Mercosul.
Linhas de pesquisa principais incluem: Integração Regional, Governança, Descentralização, Regionalismo Comparado, Mercosul, e Design Institucional.
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