De acordo com dados da Agência Nacional das Águas e Saneamento Básico (ANA) cerca de 97,5% da água existente no mundo é salgada, restando apenas 2,5% de água doce no planeta, disponível na forma de geleiras (de difícil acesso), rios, que são apenas uma pequena porcentagem desse total e de águas subterrâneas (ANA, [2020]).
Ademais, a água não está distribuída de forma igual, o que leva diversas regiões do globo a enfrentarem graves problemas de escassez. Somado a esse panorama, outro desafio que deve ser apresentado é a baixa qualidade da água potável, em parte decorrente da poluição causada pela atividade humana. Segundo a ONU, 1 em cada 3 pessoas não tem acesso a água potável e três bilhões de pessoas não possuem as instalações necessárias para lavar as mãos de forma adequada (ONU, [2020]; SEMA, 2020). Portanto, em um contexto de pandemia, como a que enfrentamos atualmente, em que a higiene básica é peça fundamental, a questão hídrica revela mais uma face de sua importância estratégica.
Em um cenário como o apresentado, é necessário lembrar que o uso desse recurso precisa ser muito bem regulamentado para salvaguardar seu papel vital para a vida humana, além de se levar em consideração o caráter múltiplo da água na geração de energia; na manutenção de diversos ecossistemas; e como fonte de locomoção, por meio da navegação e irrigação.
Da mesma forma que a água não está igualmente dividida ao redor do globo, ela também não se limita às fronteiras políticas dos países, razão pela qual quase metade da superfície terrestre é conformada por bacias hidrográficas de rios compartilhados por dois ou mais países. Existem 263 rios e bacias transfronteiriças no mundo (UN-WATER, [2020]) e 592 corpos hídricos subterrâneos que abrangem mais de um país. Assim sendo, de acordo com o International Groundwater Resources Assessment Centre (IGRAC, [2020]), 64% dos países no mundo possuem aquíferos compartilhados com seus vizinhos. No caso do Brasil, o país compartilha cerca de 82 rios, conta com bacias hidrográficas importantes como a do Amazonas e a do Prata, além de compartilhar o Aquífero Guarani (ANA, 2020), um dos maiores aquíferos transfronteiriços do mundo.
Portanto, é premente que haja arranjos cooperativos entre os países para que certas questões referentes ao uso, proteção e sustentabilidade das águas transfronteiriças sejam garantidas, especialmente no contexto das mudanças climáticas, que acentuam uma série de desafios para a temática.
De acordo com Wolf et. al (2003), a cooperação é predominante na resolução de impasses referentes às águas compartilhadas por mais de um país. Não existe um acordo universal vinculante que trate da questão da água, somente iniciativas bi ou multilaterais de cooperação técnica ou arranjos formais e informais que estabeleçam certos parâmetros para o tratamento dado às águas transfronteiriças.
Existem diversas conferências internacionais que abordaram direta ou indiretamente os recursos hídricos, como é o caso da Conferência de Mar del Plata (1977), da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), a Conferência Internacional sobre Água e Meio Ambiente (1992), a Convenção sobre o Direito Relativo à Utilização dos Cursos de Água Internacionais para Fins Diversos dos de Navegação (1997), entre outros marcos que estabeleceram parâmetros e diretrizes para a água. O marco mais recente que trata da questão é a Agenda 2030 e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), sendo o ODS-6 específico para “assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos”; entre suas metas a serem atingidas, está o ODS-6.5: “Até 2030, implementar a gestão integrada dos recursos hídricos em todos os níveis, inclusive via cooperação transfronteiriça”.
Sendo as questões hídricas sentidas de forma mais clara em âmbito local ou regional, pensar como a temática vem sendo abordada dentro dos marcos de integração regional é ponto para a reflexão. O caso europeu é o mais avançado no tratamento para a questão, pois a Diretiva Quadro da Água, estabelecida pelo Parlamento Europeu no ano 2000 “define regras destinadas a interromper a deterioração do estado das massas de água da União Europeia (UE) e a alcançar o “bom estado” dos rios, lagos e águas subterrâneas”. A legislação atribuiu atividades muito claras às legislações dos países parte da UE, no sentido de gerir, monitorar, proteger e gerar informações sobre a água. Os países da UE tiveram que transpor para a legislação nacional a Diretiva até o ano de 2003(EUROPEAN UNION LAW, 2017).
No caso da União Africana, a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, principal órgão da União Africana para a promoção e proteção dos direitos humanos dos povos, tem dispensado especial atenção aos direitos econômicos, sociais e culturais desde 2010. Próximo do trigésimo aniversário da Carta Africana, a Comissão adotou os Princípios e Diretrizes de 2010 sobre a Implementação dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da África, sendo que, nesse âmbito, no ano de 2015, por meio da Resolução 300 sobre o direito às obrigações da água, a Comissão Africana instruiu o seu Grupo de Trabalho sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais a desenvolver os “princípios e diretrizes sobre o direito à água para ajudar os Estados na implementação de suas obrigações” (COMISSÃO AFRICANA DOS DIREITOS HUMANOS E DOS POVOS, [2020]). O objetivo das Diretrizes sobre o Direito à Água é o de informar e apoiar o trabalho dos países com base no respeito e na proteção do direito individual e coletivo à água; além de elaborar relatórios periódicos para a Comissão Africana, “essas Diretrizes informam o desenvolvimento de uma estratégia abrangente e integrada do estado para tratar de todos os direitos relacionados à água, que são por natureza interconectados e interdependentes”. A Resolução é fruto da intenção da União Africana de cumprir o ODS-6 e é interessante perceber que o continente africano, marcado por tantas disputas e tensões entre seus países, vem se articulando para as questões hídricas, contando com importantes projetos de gestão de recursos, como para o Sistema Aquífero do Arenito Núbio, o maior aquífero transfronteiriço de água fóssil do mundo.
No caso sul americano, deve-se lembrar que a região possui bacias hidrográficas e aquíferos de enormes proporções, como já foi dito, além três de seus países estarem entre os dez primeiros em disponibilidade hídrica do mundo (CASMA-LIMA, 2015). Contudo, esse potencial não é necessariamente refletido em alguns de seus projetos de integração, como no caso do Mercosul, que possui instâncias técnicas (Subgrupo de trabalho -6) e políticas (Reunião dos Ministros de Meio Ambiente) para tratar da temática ambiental, além de existir uma comissão que debate sobre o meio ambiente dentro do Parlamento do Mercosul, mas nenhum desses esforços se traduziu em um desenvolvimento para a questão hídrica dentro do bloco. É perceptível, ao analisar os documentos dessas instâncias que o meio ambiente é tópico permeado pelos interesses econômicos mecosulinos (LEITE, 2018). Em meados dos anos 2000, o Mercosul foi o âmbito escolhido por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai para abrigar as negociações para criação de um acordo para o Aquífero Guarani, o que perdurou até 2010, quando o documento foi assinado pelos países. Esse processo gerou a expectativa de que a temática hídrica assumisse posição de relevo dentro do bloco, mas o viés econômico ainda é predominante e, somado ao caráter intergovernamental das decisões tomadas no interior do Mercosul, que não possuem força vinculativa nos ordenamentos jurídicos nacionais, levaram esse ímpeto a se arrefecer.
É fato que a água ganhou importante relevo na agenda internacional a partir dos anos de 1990, com o final da Guerra Fria e é reconhecido seu papel como tema de extrema relevância no século XXI. Todavia, ao pensarmos no caráter transfronteiriço desse recurso, é surpreendente que os instrumentos internacionais ainda sejam freados pela soberania dos países. Tendo como exemplo a apresentação da forma como alguns blocos regionais abordam a água, percebe-se que os instrumentos para tratar dessas águas de maneira compartilhada ainda são incipientes, exceto o caso da UE que, por se tratar de um longo e mais aprofundado processo de integração, consegue incorporar no âmbito interno dos países as suas decisões. Porém, esta não está isenta de sofrer com a degradação e a escassez de seus recursos hídricos.
De acordo com Rivera e Candela (2018) diversos são os pontos que tornam a governança da água possível, entre eles podemos ressaltar o papel chave da informação; a comunicação, que deve ultrapassar fronteiras; instrumentos legais centrais que associem o local e o global, pois é necessária a legalidade conectando os acordos regionais, bilaterais ou multilaterais para evitar a dispersão de papéis assumidos pelos agentes, entre outros fatores que permeiam a governança e gestão dos recursos hídricos. Portanto, prover água potável em quantidade e qualidade necessárias se torna um desafio cada vez mais complexo, o que levou, em 2018, ao relatório e à carta aberta de 11 países e do assessor escolhido pela ONU e Banco Mundial, nos quais fazem apelo a uma mudança na relação dos países com a água, como forma de evitar situações de conflito potencial. O desafio está posto.
Referências
WOLF, A.; YOFFE, S.B.; GIORDANO, M. International Waters: Identifying Basins at Risk, Water Policy, v.5, n. 1, p. 29-60, 2003.
LEITE, M.L.T.A. O Acordo do Aquífero Guarani e a ótica da integração regional. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP). São Paulo, 2018.
RIVERA, A; CANDELA, L. Fifteen-year experiences of the internationally shared aquifer resources management initiative (ISARM) of UNESCO at the global scale. Journal of Hidrology: Regional Studies, 2018.