Quadro resumitivo da iniciativa “Mercocidades responde à COVID-19” (MERCOCIDADES, 2020)

Estamos vivenciando um período muito específico em torno dos debates sobre o regionalismo na América do Sul. Logo após o momento de relativa euforia no início dos anos 2000 em torno dos organismos regionais, no qual o regionalismo pós-hegemônico apareceu como novidade, a “Onda Rosa” caracterizou as lideranças nacionais mais progressistas e a integração foi pensada com maior viés autonomista no sentido de se buscar projeções internacionais dos países da região em torno das iniciativas coletivas, o ano de 2020 sinaliza e, em partes, consolida alguns movimentos de ruptura no regionalismo sul-americano.

O que há de novo? E aqui não precisamos falar sobre a crise do Euro, a crise dos refugiados e a saída do Reino Unido que também representam processo similar na União Europeia. Na América Latina temos uma conjunção de fatores que conformam esse momento, os quais foram apontados por Bárbara Neves em texto recentemente publicado no Observatório de Regionalismo (ODR). Em resumo, três questões são essenciais para se defender o argumento de que a instabilidade no regionalismo sul-americano tende a aumentar nos próximos anos: a falta de perenidade nos mecanismos de integração a exemplo do fim da União de Nações Sul-americanas (UNASUL) e da criação do Fórum para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul (PROSUL), a conjugação de instabilidades políticas e sociais nos países da região e, por fim, a mudança de orientação política do Brasil (JUNQUEIRA; NEVES; SOUZA, 2020 (No Prelo)).

Entender o papel brasileiro nesse processo é fundamental, até porque ele é considerado por muitos como o paymaster da integração, relembrando o conceito de Walter Mattli (1999) para considerar o país que é essencial e tem capacidade em arcar com os cursos de negociação e aplicação envolvidos nos desenvolvimentos dos blocos regionais. Cabe observar, por exemplo, que em iniciativas anteriores como os casos do Mercosul e da UNASUL, o Brasil foi central para suas criações, algo que não foi visto em torno do PROSUL, uma vez que Chile e Colômbia tomaram a iniciativa central para seu estabelecimento.

Ademais e nesse emaranhado de fatores que contribuem para a atual conjuntura de desgaste dos organismos regionais sul-americanos, ainda temos um fator adicional que é a pandemia do novo coronavírus, a COVID-19. Por exemplo e considerando dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), entre os 12 países do mundo com maiores números de infectados até a publicação deste texto, cinco são da América do Sul: Brasil, Peru, Colômbia, Chile e Argentina. Como somatória: “O trágico para a América do Sul é que os fenômenos da fragmentação política e da governança regional e da desintegração econômico-comercial têm-se retroalimentado, com mais intensidade durante a pandemia, formando uma espiral que parece não ter fim.” (BARROS, 2020).

Considerando estas breves considerações, devemos pensar que, se existe uma nova conjuntura e se há dúvidas em relação aos rumos do regionalismo sul-americano, determinadas políticas, áreas, temas e até mesmo atores envolvidos nesse processo sofrerão algumas influências diretas ou indiretas dessa instabilidade generalizada. Tal afirmação procede? É correto pensar assim? Depende de qual caso é tomado para análise.

Em mesa-redonda organizada pelo Bacharelado de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC) através da iniciativa denominada “#BRIemCasa”, o Professor Gilberto Rodrigues dividiu fala com Fernando Santomauro para tratar sobre o tema “Agenda 2030 da ONU, as cidades e os desafios da COVID19”. E como isso se relaciona com o que estávamos apontando anteriormente? Em um momento final de sua análise, Rodrigues fez comentários sobre a Rede de Cidades do Mercosul, conhecida por Mercocidades, e elaborou o seguinte questionamento: por que a Rede continua efetiva em meio à pandemia se a integração regional foi retirada da agenda de governos de direita na região? Dito de outra maneira, as Mercocidades continuam tendo um papel ativo agora em 2020 e isso se dá concomitantemente à crise do regionalismo sul-americano e à carência de liderança brasileira. Por que isso ocorre? Buscaremos responder essa pergunta com base em estudos prévios (JUNQUEIRA, 2019) e, para tanto, é interessante explicar o que é a Rede, quando surgiu, como se desenvolveu e, por fim, o que ela vem implementando no cerne dos problemas de saúde pública decorrentes da pandemia.

A Rede Mercocidades foi criada em 1995 por onze governos locais cujos governantes à época não se enquadravam nos ditames integracionistas postulados pelos governos nacionais. Rosário, Assunção, Florianópolis, Porto Alegre, La Plata, Curitiba, Rio de Janeiro, Brasília, Córdoba, Salvador e Montevidéu juntaram esforços para instituir o que diziam ser “[…] um ato contra a naturalidade perversa dos processos de integração que tendem a sustentar-se nas burocracias centrais e nos grandes grupos oligopolistas e esquecem as comunidades.” (MERCOCIDADES, 1997, p. 01, tradução livre). Se o início do Mercosul se baseava sobretudo em estimular a integração comercial, a Rede pautou o poder local como possível propulsor de uma integração mais social, ou seja, para assegurar bem-estar e desenvolvimento das cidades sul-americanas (MERCOCIDADES, 2020). Atualmente, é considerada a principal rede de cidades da América do Sul (RODRIGUES; MATTIOLI, 2017) e possui mais de 350 membros espalhados por dez países do subcontinente, havendo um maior número no Brasil e na Argentina:

Figura 1 – Dispersão geográfica das Mercocidades

Fonte: Mercocidades (2020)

Além do fato das Mercocidades terem surgido enquanto um “laboratório de prefeituras de centro-esquerda”, o aspecto institucional é outra variável primordial para entendermos sua real efetividade agora em 2020. Em resumo cabe dizer que a Rede surgiu em virtude do Mercosul, mas não dentro do Mercosul. Ou seja, as Mercocidades não estão formalmente inseridas no organograma oficial do bloco e não tem que se submeter às suas instâncias decisórias centrais. Sua burocracia é a própria burocracia dos governos locais, sendo que seus órgãos principais, incluindo a Secretaria Técnica, encontram-se vinculados à Prefeitura de Montevidéu, no Uruguai.

Figura 2 – Estrutura das Mercocidades

Fonte: Mercocidades (2020)

Desde seus primórdios a Rede pautou a necessidade de participar ativamente da integração regional, inclusive defendendo a criação de uma estrutura própria para isso, o que ocorreu ainda em 2004 com a proposta do Foro Consultivo de Municípios, Estados Federados, Províncias e Departamentos do Mercosul (FCCR). Mas isso já é outro debate, cabendo apenas colocar luz à seguinte questão: o fato da Rede atuar paralelamente ao bloco provê maior autonomia decisória, o que explica em partes o questionamento central apresentado anteriormente no texto em relação à continuidade dos seus trabalhos no presente ano.

No aspecto sobre o trabalho das Mercocidades, uma outra variável a ser considerada é sua abrangência de agenda. Ao todo ela possui 22 Unidades Temáticas, Comissões e Grupos de Trabalho (GOMES, 2015).

Figura 3 – Temas de Trabalho da Rede

Fonte: Mercocidades (2020)

Toda essa estrutura também advém de um movimento mais amplo em torno da inserção de cidades nas relações internacionais. As décadas de 1990 e 2000 foram propícias para o surgimento de variadas redes, incluindo as Mercocidades, nas quais os governos locais passaram a trocar informações, estimular a cooperação e gerar novas formas de governança decisória, trazendo temas sociais para o seio da esfera pública municipal. Matérias como sustentabilidade, integração produtiva, inclusão social, cidadania regional e comunicação (MERCOCIDADES, 2015) deram surgimento à riqueza da Rede em termos de troca de conhecimento entre os gestores públicos.

Assim chegamos ao período atual da pandemia do novo coronavírus e à importância em tratar temas relacionados à saúde pública. Como dito acima, isso não se trata somente das Mercocidades, mas de algo internacional, a exemplo do movimento “Cidades para a Saúde Global”, uma plataforma de intercâmbio de informações e experiências entre governos locais para lidar com a COVID-19, sendo iniciativa gestionada pela Rede Metrópolis, Cidades e Governos Locais Unidos (CGLU) e Aliança Euro-latino-americana de Cooperação entre Cidades (ALLAS). Além de integrar essa ação, as Mercocidades vêm organizando seminários online sobre o tema, estão em constante diálogo com universidades, desenvolvem intercâmbio de informações sobre trabalho remoto e estão acompanhando a formulação de projetos locais no combate à pandemia, tudo isso inserido na estratégia “Mercocidades responde à COVID-19” (MERCOCIDADES, 2020).

Evidentemente, nosso objetivo aqui não é retratar a Rede ou somente as cidades como atores mais eficazes no combate à pandemia, até porque sabemos de seus limites e, para problemas globais, é imperativo contar com ações coordenadas entre diferentes níveis e atores, incluindo os governos nacionais. A par desse registro e resumindo nossa abordagem, por que as Mercocidades continuam com um papel ativo em 2020 em contraposição aos fatores limitantes, instabilidades e crises do regionalismo sul-americano? Em primeiro lugar, porque ela surgiu como movimento de oposição à integração em virtude de interesses políticos específicos de algumas cidades na década de 1990 que iam de encontro com as políticas defendidas pelos governos nacionais. Tal aspecto permanece em alguns casos até a atualidade, principalmente no Brasil em torno das constantes rixas ocorridas entre Jair Bolsonaro e algumas lideranças subnacionais. Em segundo, porque a Rede tem autonomia burocrática e não se insere formalmente no interior do organograma do Mercosul. Assim, se o bloco passa por severas letargias, isso não necessariamente impacta os trabalhos da Rede. Por fim, porque ela faz jus a um panorama global e abrangente que denota o ativismo das cidades na busca por soluções de enfrentamento à COVID-19.

Referências

BARROS, Pedro Silva. Desintegração econômica e fragmentação política na América do Sul. Folha de São Paulo, 13 ago. 2020. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/08/desintegracao-economica-e-fragmentacao-politica-na-america-do-sul.shtml> Acesso em 24 ago. 2020.

GOMES, Joséli Fiorin. A Rede Mercocidades na integração sul-americana: a paradiplomacia no Mercosul e na Unasul. Revista InterAção, v. 8, n. 8, jan./jun. 2015, p. 52-69.

JUNQUEIRA, Cairo. Entre interesses e identidades: o que querem e o que são? A atuação internacional dos governos subnacionais argentinos e brasileiros no Mercosul (1995-2018). Tese de Doutorado em Relações Internacionais, Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), São Paulo, 2019.

JUNQUEIRA, Cairo; NEVES, Bárbara; SOUZA, Lucas Eduardo. Regionalismo sul-americano nos anos 2020: o que esperar em meio às instabilidades políticas? Revista Tempo do Mundo (IPEA), 2020 (No Prelo).

MATTLI, Walter. The logic of regional integration: Europe and beyond. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.

MERCOCIDADES. Informe da Secretaria Executiva. Período 1996-1997, Gestão de Porto Alegre, 1997.

MERCOCIDADES. Informe da Secretaria Executiva e da Secretaria Técnica Permanente de Mercocidades. Período 2014-2015, Gestão de Rosário, 2015.

MERCOCIDADES. Site Oficial, 2020. Disponível em: < https://mercociudades.org/> Acesso em: 23 ago. 2020.

RODRIGUES, Gilberto; MATTIOLI, Thiago. Paradiplomacy, Security Policies and City Networks: The Case of the Mercocities Citizen Security Thematic Unit. Contexto Internacional, v. 39 (3), Sep./dec. 2017, p. 569-587.

Escrito por

Cairo Junqueira

Professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe (DRI/UFS). Doutor em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Mestre em Relações Internacionais, com ênfase em Política Internacional e Comparada, pela Universidade de Brasília - Instituto de Relações Internacionais (UnB/IREL). Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca (UNESP/FCHS). Foi Pesquisador Visitante junto à Facultad de Ciencias Sociales de la Universidad de Buenos Aires (UBA) - PPCP/Mercosul/CAPES. Atualmente é membro do Observatório de Regionalismo (ODR) vinculado à Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (REPRI) e do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPPs), além de ser colaborador do Projeto de Extensão "Internacionalização Descentralizada em Foco" (IDeF). Por fim, é coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Política Internacional e Sul-Americana (GP-SUL) com as seguintes linhas de interesse: Instituições Internacionais, Integração Regional e Paradiplomacia.