O mês de dezembro de 2019 trouxe uma notícia alarmante para cientistas e a comunidade médica de todo o mundo: o surgimento de um novo tipo de pneumonia na cidade de Wuhan, situada na província de Hubei, na China. A partir da confirmação de que o contágio ocorria entre humanos de maneira rápida, a maioria governos de todo o mundo começou a se preparar para uma pandemia, exceção feita a governos que têm continuamente negado a gravidade da questão. Nesse contexto, o problema tornou-se ainda maior para a União Europeia (UE): além de lidar com a emergência sanitária, a doença agravou as tensões internas do bloco e a crise política, fortalecendo os argumentos da extrema direita eurocética[1] que já vinha ganhando espaço tanto no nível doméstico dos países membros quanto no nível supranacional. Enquanto a solidariedade europeia é colocada em xeque pelos governos nacionais, cujas primeiras respostas à pandemia reforçaram o papel dos Estados, movimentos eurocéticos criticam as tentativas de soluções supranacionais apresentadas pela UE. A ideia do presente texto é contribuir com o debate inicial sobre a pressão dos movimentos eurocéticos sobre a UE em meio a uma das maiores crises enfrentadas pelo bloco. Primeiramente, apresentaremos as estratégias regionais; na seção seguinte, serão discutidas as reações dos principais representantes da extrema direita eurocética.
 
Cronologia da pandemia e das ações da UE
 
A partir de informações fornecidas pelas autoridades chinesas, a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a monitorar a situação e a emitir os primeiros relatos para profissionais de saúde e a imprensa internacional a partir de 5 de janeiro de 2020. A rápida evolução dos acontecimentos demonstrava que o novo vírus[2], identificado pelo Centro Chinês de Controle e Prevenção de Doenças (“China CDC”, em inglês) em 9 de janeiro, possuía fácil transmissibilidade e poderia ultrapassar as fronteiras chinesas em algumas semanas.  Diante do risco, em 27 de janeiro, o Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças e o Escritório Europeu da Organização Mundial da Saúde começaram a coletar dados sobre prováveis casos de COVID19[3] no continente utilizando descrições de sintomas fornecidas pelos países membros da União Europeia. A partir dos dados coletados, confirmou-se a presença do vírus na Europa e o inquietante aumento de casos: em 21 de fevereiro, foram reportados 47 infectados e uma morte na França; em 5 de março, 4.250 casos confirmados em 38 países da Europa, incluindo 113 mortes[4].
A resposta das instituições europeias foi, dentro de suas competências, célere e o Conselho Europeu emitiu uma declaração em 13 de fevereiro detalhando as primeiras medidas de prevenção a uma possível pandemia, como o compartilhamento de informações sobre números de casos, quantidades de equipamentos médicos nas redes de saúde dos países membros e controle de passageiros nos grandes aeroportos europeus. Em 2 de março, a presidência do Conselho Europeu decidiu pela ativação plena do Mecanismo Integrado de Resposta Política a Situações de Crise (IPCR, em inglês), ferramenta que possibilita maior coordenação e rapidez das decisões políticas e elabora propostas para deliberação do Conselho.
Enquanto a institucionalidade supranacional europeia se movimentava, o reflexo imediato dos Estados membros diante da crise foi unilateral. Diversas restrições à exportação de insumos hospitalares, medicamentos e equipamentos de proteção individual foram impostas, prejudicando as cadeias de suprimentos e afetando os países com maior disseminação do vírus naquele momento, como a Itália. Em 10 de março, o Conselho instou os membros a aumentarem a colaboração e garantirem o funcionamento do mercado interno, afrouxando, inclusive, as regras para importação de matérias-primas e equipamentos de fora da UE como forma de apoiar a produção desses bens.
As grandes divergências sobre as abordagens da UE frente ao problema estão, como era de se esperar após os episódios da crise da dívida soberana de 2008, na questão econômica. O primeiro impasse surgiu com a Itália, país mais atingido pela doença e que assistiu ao colapso do seu sistema de saúde em diversas regiões da península. O consequente aumento da dívida pública italiana e a crise econômica que se aproxima do bloco após o fechamento do comércio e indústrias gerou apreensão entre os parceiros da UE, reacendendo o debate sobre os tipos de auxílio que devem ser prestados pelo Banco Central Europeu.
Enquanto os países economicamente mais vulneráveis apelam para uma solução ao estilo dos “eurobonds[5]” (agora rebatizados como “coronabonds”), os governos da Holanda, Áustria, Finlândia e Alemanha resistem a qualquer tentativa de mutualização das dívidas soberanas entre os membros da UE. Em 17 de abril, o Parlamento Europeu votou pela opção de “recovery bonds”, ou seja, títulos das dívidas que possuem garantias pelo orçamento da EU evitando, assim, a solução de compartilhamento dos riscos. As discussões sobre qual seria a melhor forma de auxiliar os países membros na iminência de uma crise de grandes proporções não são apenas econômicas, mas envolvem importantes elementos políticos e ideológicos que perpassam diferentes visões sobre a pertinência e os objetivos do projeto de integração europeu. De modo geral, partidos eurocéticos de direita são contrários ao compartilhamento dos custos das dívidas, mas possuem motivos diferentes: os partidos de economias estáveis que atuam na Alemanha e na Holanda consideram que essa solução seria injusta com os seus contribuintes e incentivaria a irresponsabilidade fiscal de outros países; os partidos das economias mais frágeis temem a cessão de soberania para a UE, visto que os mecanismos de funcionamento dos “coronabonds” não estão definidos e certamente exigiriam contrapartidas.
Os principais líderes da extrema direita eurocética, como Matteo Salvini e Jörg Meuthen não pouparam críticas às respostas da União Europeia em relação à crise e continuam suscitando dúvidas entre seu eleitorado sobre a relevância de continuar participando de um bloco que, a seu ver, tem um alto custo de permanência e não oferece soluções adequadas para os principais desafios enfrentados por seus membros.
 
Os eurocéticos
 
Os principais representantes da atual extrema direita eurocética são Jörg Meuthen (Alemanha), Marine Le Pen (França), Geert Wilders (Holanda) e Matteo Salvini (Itália), políticos de destaque em seus respectivos países.
Jörg Meuthen e Geert Wilders representam a opinião dos países ricos da UE: as soluções apresentadas custarão caro demais para os contribuintes alemães e holandeses, que não receberão nenhum benefício desses empréstimos. Meuthen sustenta que a mutualização seria apenas uma transferência de dívida e que isso estimularia a irresponsabilidade fiscal dos países endividados. Wilders defende que o governo holandês canalize seus recursos exclusivamente para seu sistema de saúde e pare de financiar as atividades da UE, usando esses argumentos para fortalecer ainda mais sua posição de “Nexit” (do inglês “Netherlands Exit”, ou seja, a saída da Holanda do projeto europeu).
Le Pen, por sua vez, criticou a falta de ação da “tecnocracia de Bruxelas” frente ao aumento de casos de contágio na França e insistiu no fechamento total das fronteiras, atacando novamente os migrantes, que agora, ainda mais do que antes da crise, se tornarão um peso para os contribuintes franceses. O italiano Matteo Salvini e seu partido, a Liga Norte, foram veemente contra as propostas de mutualização da dívida e, passada essa discussão, tem concentrado suas críticas ao Mecanismo Europeu de Estabilidade (MES).
Instituído pelo Conselho da UE em 2011, o MES tem como proposta garantir a estabilidade do euro ao oferecer empréstimos aos países endividados. Acionado para apoiar a Itália durante o surto de Covid-19 e após intensas negociações foi aprovado sem condicionalidades e para uso na crise sanitária, o que não arrefeceu a desconfiança por parte dos críticos da medida. Salvini e os “leghistas[6]” apelidaram o MES de “diktat”[7] e acreditam que, mesmo sem condicionalidades imediatas, o mecanismo colocará em risco a poupança dos italianos ao aumentar o endividamento externo, além de permitir a interferência do Banco Central Europeu em assuntos domésticos.
Portanto, as críticas dos eurocéticos à UE não são uníssonas e são, até certo ponto, contraditórias, pois visam agradar aos seus respectivos públicos domésticos. Enquanto os eurocéticos dos países mais ricos pregam que seus cidadãos arcam com os altos custos da UE e pouco recebem em troca da distante burocracia de Bruxelas, nos países endividados o discurso é que o Banco Central Europeu é invasivo e fere a soberania.
Ainda que não seja o escopo desta breve análise, cabe citar a ameaça ao projeto europeu representada por Viktor Orbán, primeiro-ministro húngaro de extrema direita e eurocético que expandiu consideravelmente os poderes do executivo em meio à crise gerada pela pandemia. Em 30 de março, o parlamento húngaro aprovou uma lei que permite ao primeiro-ministro estender o estado de emergência e adotar outras medidas extraordinárias, como suspender leis. A resposta da UE para essas violações à democracia tem sido, até agora, tímida diante da gravidade da situação. O partido de Orbán, Fidesz, integra o Partido Popular Europeu, movimento de centro direita do Parlamento da UE que tem relutado, até o momento, em expulsar os húngaros de suas fileiras.
Ao contrário da crise de 2008, agora os eurocéticos possuem significativo apoio popular e se comunicam através das redes sociais. Uma visita rápida ao perfil do Twitter de qualquer um desses personagens mostrará o alcance de suas ideias e seu poder de engajamento. A UE, ao contrário, segue com dois problemas clássicos de sua formação: primeiramente, o cabo de guerra entre a supranacionalidade e a soberania de seus Estados membros, que relutam em ceder poderes ao projeto de integração, fato que reflete no escopo de restrito das áreas nas quais a UE pode atuar. A saúde, por exemplo, é um tema que só está em sua alçada de maneira complementar e cuja decisão final cabe aos Estados membros, ainda que se trate de um problema transfronteiriço. Em segundo lugar, ainda que a UE tenha feito esforços significativos para apoiar os países membros em meio à pandemia, suas ações seguem distantes do cidadão comum e são comunicadas, em grande parte, pelas mídias nacionais, que filtram o conteúdo que mais interessa aos seus países (HIX, 2005). Esse problema já era relevante na era pré-internet; agora, com as redes sociais, possui um agravante, pois os detratores do projeto de integração europeu dialogam diretamente com os cidadãos através das redes sociais.
Em resumo, a UE tem tomado providências para dirimir os efeitos da crise sanitária e articulado respostas através de suas instituições técnicas e políticas. A questão é o alcance dessas medidas e seu poder de implementá-las, já que a supranacionalidade possui restrições colocadas pelos próprios países membros. Ao mesmo tempo, os cidadãos cobram ações palpáveis, algo que, até agora, apenas os Estados nacionais têm conseguido prover. Nesse impasse, o projeto europeu se torna um adversário oportuno para movimentos eurocéticos.
A pandemia e suas consequências econômicas serão mais um teste para a resiliência da UE. Dependendo de sua capacidade de coordenar respostas supranacionais efetivas, terá a oportunidade de, no futuro, rediscutir suas atribuições em situações de crise.
 
Referências
ATAÍDE, ÂNIA. O que são os eurobonds? O Jornal Econômico, 24 de março de 2020. Disponível em: https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/respostas-rapidas-o-que-sao-as-eurobond-564520. Acesso em 09/04/2020.
BERIAIN, Iñigo; ATIENZA-MACÍAS, Elena; ARMAZA, Emilio. The European Union Integrated Political Crisis Response Arrangements: Improving the European Union’s Major Crisis Response Coordination Capacities. In: Disaster Medicine and Public Health Preparedness, vol. 9, n. 3, jun. 2015. Disponível em: https://doi.org/10.1017/dmp.2015.10. Acesso em: 09/04/2020.
COTTAKIS, Michael. Europe’s choice: A borderless crisis requires a borderless solution. LSE , Brexit, London School of Economics and Political Science, 03 de abril de 2020. Disponível em:  https://blogs.lse.ac.uk/europpblog/2020/03/23/europes-choice-a-borderless-crisis-requires-a-borderless-solution/ Acesso em 04/04/2020.
DIMITRAKOPOULOS, D.; LALIS, G. Covid-19: how has the EU reacted so far?. LSE , Brexit, London School of Economics and Political Science, 03 de abril de 2020. Disponível em:  https://blogs.lse.ac.uk/brexit/2020/04/03/covid-19-how-has-the-eu-reacted-so-far/. Acesso em 04/04/2020.
GIULIANI, Federico. Salvini inchioda Conte: “Usare il Mes? L’Italia ne uscirebbe con le ossa rotte”. Il Giornale, 26/03/2020. Disponível em: https://www.ilgiornale.it/news/economia/salvini-inchioda-conte-usare-mes-litalia-ne-uscirebbe-ossa-1846152.html. Acesso em: 26/03/2020.
NEUTEL, Hugo. O meu nome é Bond, Coronabond. O que significa a palavra da discórdia europeia?. TSF Portugal, 31 de março de 2020. Disponível em: https://www.tsf.pt/portugal/economia/o-meu-nome-e-bond-coronabond-o-que-significa-a-palavra-da-discordia-europeia-12012329.html. Acesso em: 09/04/2020.
SPITERI et al. First cases of coronavirus disease 2019 (COVID-19) in the WHO European Region. In: Eurosurveillance, vol. 25, n. 09, mar. 2020. Disponível em: https://www.eurosurveillance.org/content/10.2807/1560-7917.ES.2020.25.9.2000178. Acesso em: 09/04/2020.
 
[1] Classificam-se como eurocéticos movimentos ou partidos que questionam os benefícios gerados pela participação dos Estados no processo de integração regional europeu. O fenômeno está presente em todo o espectro político, tanto à direita quanto à esquerda. Este abordará líderes eurocéticos de extrema direita.
[2] Nomeado “SARS-CoV-2” em 11 de fevereiro de 2020 pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
[3] Do inglês “Coronavirus Disease”.
[4] Eurosurveillance, vol. 25, n. 09, mar. 2020.
[5] Emissão de dívida em moeda diferente do país que a emite. No caso em questão, seria gerida pela UE e resultaria em uma dívida comum para a zona do euro (ATAÍDE, 2020).
[6] Apoiador ou filiado do partido Liga Norte (do italiano “Lega Nord”).
[7] Do alemão “ditado”. Refere-se a um decreto punitivo imposto unilateralmente.

Escrito por

Flavia Loss

Doutoranda pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP) e mestra pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Integração da América Latina (PROLAM-USP). É professora no curso de Relações Internacionais da Universidade Cruzeiro do Sul. Pesquisadora do Observatório de Regionalismo e do Grupo Rede de Investigação em Política Exterior e Regionalismo (REPRI). Integra o Grupo de Reflexión sobre Integración y Desarollo en América Latina y Europa (GRIDALE) e o centro de estudos CiGlo (Ciudades Globales). Possui experiência no desenvolvimento de projetos acadêmicos nas áreas de Política Internacional e Relações Internacionais, atuando principalmente com os temas de análise de política externa e integração regional.