O regionalismo que despontou há pouco mais de uma década na América do Sul ousou pensar espaços temáticos de integração não antes engendrados. Dentre estes, o Conselho Sul-Americano de Saúde (CSS) se tornou uma das facetas da concepção pós-liberal junto de seus homólogos nos âmbitos da Defesa, da Energia e da Infraestrutura. Ainda que tais projetos, interligados pela União de Nações Sul-Americanas (Unasul), respondessem mais a uma lógica de expansão do que de aprofundamento desses processos, as experiências acumuladas em torno desses serviços e produtos jamais perdem-se de vista com o encerramento institucional. Tendo em vista a suspensão das atividades do Instituto Sul-Americano de Governo da Saúde (ISAGS) em 30 junho de 2019, o artigo faz suscitar a reflexão sobre o legado desse órgão, considerado principal instância estratégica do CSS e responsável por induzir grande parte do trabalho da organização.
Por vezes não gozando do status de seu primo mais próximo – o Centro de Estudos Estratégicos de Defesa (CEED), do Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS) -, o ISAGS é um centro de altos estudos e formulação de políticas públicas, criado em 2010 e efetivado em 2011, cujo norte se volta ao desenvolvimento de lideranças e recursos humanos, buscando, assim, fomentar a governança sul-americana em saúde e a articulação da agenda regional em saúde global. Seus trabalhos são desenvolvidos em parceria com programas e instituições nacionais em coordenação com os Ministérios da Saúde dos países-membros (UNASUL, 2011). A mais importante inovação do instituto, no entanto, foi o fato de encarar a saúde como um direito central e fundamental das populações sul-americanas, corroborando para o fortalecimento da premissa segundo a qual a integração regional deve estar atrelada à melhoria do bem-estar social.
Desse modo, o anúncio de seu encerramento obstaculiza ainda mais o já desafiador objetivo de democratizar o acesso à saúde pública na América do Sul. O desligamento das atividades do ISAGS deu-se sem maiores murmúrios: promoveu-se uma cerimônia de reconhecimento às contribuições do instituto para o fortalecimento da integração sul-americana, além do lançamento de uma mensagem da então Diretora Executiva do ISAGS, Carina Vance Mafla. De acordo com o comunicado, a decisão se deve “como resultado da atual situação política da situação” (MAFLA, 2019).
Por parte do Brasil, uma das razões para a descontinuidade das iniciativas da Unasul sem sido associada oficialmente ao caráter ideológico, custoso e ineficiente da instituição. Contrariamente, o desligamento do ISAGS estaria longe de se justificar por essa razão.

“Se cierran estas puertas, pero el camino está trazado. Dependerá de la suma de voluntades el continuar por un trayecto que nos lleve a una región en la que la salud sea un derecho efectivo”.

Nos anos mais recentes, o ISAGS apresentou indícios de sua capacidade de perpetuação no tempo. As Diretrizes Estratégicas, aprovadas em 2015, é um documento marco que estabeleceu 5 linhas de ações do instituto. As medidas previstas influem para a geração e disseminação de conhecimento e inovação, a formação de quadros especializados, a melhoria da intersetorialidade e da comunicação externa, a democratização do acesso ao conhecimento e à informação e o fortalecimento da diplomacia da saúde. Em contrapartida, a descontinuidade dessas iniciativas mitiga o panorama da governança em curso na América do Sul.
Por meio do Fundo de Iniciativas Comuns (FIC), por exemplo, o ISAGS colaborou com a estruturação de um Banco de Preços de Medicamentos (BPM), instrumento em que mais se notam os efeitos práticos do ISAGS-CSS, na área da saúde. Mediante essa base de dados conjunta aos doze países sul-americanos, é possível atenuar as altas discrepâncias que envolvem os valores de medicamentos farmacêuticos entre países, o que poderia render uma economia total de cerca de 1 bilhão de dólares anualmente (UNASUL, 2018). Além disso, são afetados os projetos como o do Mapa das Capacidades de Produção de Medicamentos, estudo que revela a capacidade de produção de medicamentos na região e fornece insumo para a elaboração de uma política regional.
O fato curioso é que, mesmo diante do espectro de crise dos projetos regionais, o ISAGS representava alguma garantia de continuidade e durabilidade “em um ambiente bastante mutável, por exemplo, com as transições de governo nos países ou a troca de funcionários nos Ministérios” (UNASUL, 2018), em razão de suas próprias características institucionais. Não obstante uma enxuta estrutura organizacional, formada por 15 funcionários ao todo, o Instituto foi responsável por cumprir uma importante função indutora dos trabalhos tanto no CSS quanto no bloco como um todo. Ademais, a sua vinculação com variadas agências ministeriais e centros de pesquisa nos países sul-americanos, tal como a brasileira Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), fez disseminar sua importância no meio especializado.
A trajetória do ISAGS inclui a publicação, em três idiomas (espanhol, português e inglês) de livros, estudos e artigos, destinada a cumprir sua missão também como centro disseminador de conhecimento sobre os avanços e desafios em saúde da América do Sul. Já a organização de seminários, conferências e cursos juntamente com estudiosos e autoridades de Ministérios da Saúde buscou coordenar visões técnicas e criar oportunidades de cooperação entre os países. Mais recentemente, o traço mais importante da atuação do ISAGS foi a geração de apoio estratégico para a definição de dezenas de posições comuns dos Estados sul-americanos em nível global.
Faria et al. (2015) traçam um panorama dos diversos espaços multilaterais em que o órgão tem atuado no período, além de demonstrar especialmente como seus posicionamentos relativos ao tema e defendidos na Assembleia Mundial da Saúde (AMS), órgão de caráter decisório da Organização Mundial de Saúde (OMS), contribuíram para aumentar a projeção global da região nessa matéria. A presença do CSS na AMS, a partir de 2010, marcou a presença da América do Sul no cenário da diplomacia da saúde global.
Dados os motivos listados, acreditava-se que a atuação do ISAGS-CSS corroborava com a trajetória rumo a uma governança regional em saúde, bem como seus desdobramentos na participação de processos de governança global relacionados ao tema.
Há espaço para a Saúde nos novos mecanismos de integração?
O questionamento acima tão diretamente proposto nem sempre produz respostas com tal precisão. Embora a saúde seja um dos temas listados entre os prioritários da recém-lançada iniciativa Fórum para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul (PROSUR), a retomada do tema em arranjos dessa natureza carece de incentivos políticos na configuração de poder predominante atualmente na região. Ainda assim, os interesses refletidos na Declaração de Santiago (2019) têm como foco temas como infraestrutura, energia, saúde, defesa, segurança e combate ao crime, prevenção de e resposta a desastres naturais. Em contrapartida, suas lideranças estão comprometidas com a flexibilização e baixa institucionalidade dos mecanismos de integração da região. Até o momento, nada que fizesse soar um avanço para o tema da saúde.
Um outro aspecto diz respeito à lógica estruturante dessa temática. Enquanto o ISAGS construiu sua atuação por meio da identificação e afrontamento das ameaças oriundas da mercantilização da saúde e privatização dos serviços a nível global (MAFLA, 2019), encarando a saúde como um direito social inalienável, há razões para crer que essa mesma temática receberá um novo tipo de tratamento se encampada por uma lógica informada por outros valores e princípios normativos. Isso se dá em razão das prioridades que emergem na região a partir do fortalecimento de políticas neoliberais de austeridade em termos econômicos. Ou seja, trata-se antes de questionar de que modo o novo ambiente político moldará o sentido da integração.
Diante do panorama atual, interroga-se se a ideia de flexibilizar não traz implícita consigo o significado de tornar ainda mais debilitado um processo cujos antecedentes são todos marcados por uma baixíssima institucionalidade.
Em relação especificamente ao ISAGS, por fim, deve-se supor quais seriam os resultados de uma diminuição da institucionalidade ao que já era uma ínfima estrutura de participação e investimentos de natureza marcadamente intergovernamental. Entraves como os que levaram ao encerramento do ISAGS colocam em xeque a perenidade dos objetivos da integração regional diante da falta de interesse político em ceder autonomia a arranjos supranacionais.
Tal qual afirma a Carina Mafla, Diretora Executiva do ISAGS, “Se cierran estas puertas, pero el camino está trazado. Dependerá de la suma de voluntades el continuar por un trayecto que nos lleve a una región en la que la salud sea un derecho efectivo”.
 
Referências
DECLARAÇÃO DE SANTIAGO. Declaração Presidencial sobre a Renovação e o Fortalecimento da Integração da América do Sul. Santiago, 22 de março de 2019. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-imprensa/20203-declaracao-presidencial-sobre-a-renovacao-e-o-fortalecimento-da-integracao-da-america-do-sul
FARIA, M.; BERMUDEZ, L.; GIOVANELLA, L. A Unasul na assembleia mundial da saúde: posicionamentos comuns do Conselho de Saúde Sul-Americano. Saúde em Debate, v. 39, pp. 920-934, 2015. Disponível em: https://www.scielosp.org/article/ssm/content/raw/?resource_ssm_path=/media/assets/sdeb/v39n107/0103-1104-sdeb-39-107-00920.pdf.
MAFLA, Carina V. Mensaje final de la Directora Ejecutiva sobre la suspensión de actividades del Instituto Suramericano de Gobierno en Salud de UNASUR. ISAGS. Rio de Janeiro, 23 de junho de 2019. Disponível em: http://isags-unasur.org/mensaje-final-de-la-directora-ejecutiva-carina-vance-mafla-sobre-la-suspension-de-actividades-del-instituto-suramericano-de-gobierno-en-salud-de-unasur/.
UNASUL. Decisión para el Establecimiento del Consejo de Salud Suramericano de la UNASUR. Salvador, 17 de dezembro de 2008. Disponível em: http://www.unasursg.org/images/descargas/ESTATUTOS%20CONSEJOS%20MINISTERIALES%20SECTORIALES/ESTATUTO%20CONSEJO%20DE%20SALUD.pdf.
______. ISAGS. Estatuto del Instituto Suramericano de Gobierno en Salud. Rio de Janeiro, 14 de abril de 2011. Disponível em: https://repo.unasursg.org/alfresco/service/unasursg/documents/content/ESTATUTO_DEL_INSTITUTO_SURAMERICANO_DE_GOBIERNO_EN_SALUD__ISAGS.pdf?noderef=dcecfcd0-9995-4fe9-88f2-b22ccec2cb08.
______. ISAGS e a integração regional em Saúde. ISAGS. 23 de maio de 2018. Disponível em: http://isags-unasur.org/unasul-e-a-integracao-regional-em-saude/.

Escrito por

Lucas Eduardo Silveira de Souza

Bacharel em Relações Internacionais (Unesp) e Mestre em Relações Internacionais (UnB). Área de interesse: América do Sul, regionalismo sul-americano, Unasul, integração regional e política externa brasileira.