No encerramento de 2018, o Observatório de Regionalismo (ODR) traz em sua última edição do ano uma entrevista especial com o Professor Roberto Goulart Menezes, docente do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (IREL/UnB) e professor visitante no Centro Giovanni Arrighi de Estudos Globais da Johns Hopkins University desde setembro, além de membro da Coordenação da Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (REPRI) e pesquisador do Instituto Nacional de Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU/CNPq/FAPESP).

“Não se trata apenas de mudança de governo. Podemos estar diante de uma tentativa de mudança de regime”.

O momento não poderia ser mais convidativo à reflexão: o término desse ciclo culmina em importante transição governamental no Brasil, cujo processo político, econômico e social enseja diversos desafios. A proposta desse conteúdo cumpre uma função dupla: tanto traçar um balanço da conjuntura atual da política externa brasileira, até então sob a batuta da presidência de Michel Temer (MDB), quanto refletir sobre as perspectivas dessa área para o ano de 2019, tendo em vista os primeiros indicativos que já despontam no meio especializado sobre o governo do presidente eleito Jair Messias Bolsonaro (PSL).

“Tudo leva a crer que o Itamaraty terá um papel coadjuvante na formulação e implementação da política externa”.

A brevidade da gestão Temer não a impede de ser decisiva para os rumos assumidos pelo Brasil diante dos processos regionais. Segundo Menezes, esse ciclo “melancólico e de letargia” será substituído por outro sobre o qual ainda pairam várias incertezas. Tendo assumido a presidência da República interinamente em maio de 2016 e de modo definitivo a partir do fim de agosto daquele ano, após a deposição por impeachment da presidente Dilma Rousseff, o Itamaraty esteve sob a chefia de José Serra (2016-2017) e Aloysio Nunes Ferreira (2017-2018), que encamparam a missão de “desideologizar” a política externa das gestões petistas e sanear as contas do Ministério das Relações Exteriores. No tocante ao regionalismo sul-americano, a gestão chega ao fim marcado pelo slogan da “refundação” do Mercosul, agora sem a Venezuela, e pela continuidade das negociações do acordo entre o bloco e a União Europeia; a descontinuidade da participação do País na Unasul e a crise do regionalismo pós-liberal.


ODR: Como o senhor avalia o papel do País no ciclo que se encerra em relação aos processos regionais sul-americanos, especialmente Mercosul e Unasul?
Menezes: Desde o impedimento da presidente Dilma Rousseff, em agosto de 2016, o Brasil não tem de fato uma política externa. Aliás, a área de política externa perdeu muito espaço desde o fim do primeiro mandato dela. E com a crise política no País a presidente e o seu núcleo duro do governo passou a gastar quase toda a energia com as questões domésticas, notadamente, a disputa para manter-se no exercício do cargo. A agenda política e econômica com a América do Sul ficou em partes travada devido à crise política e econômica na Argentina, a grave crise humanitária na Venezuela e os atritos do Brasil com a Argentina, em função das questões comerciais. No governo Temer, tanto José Serra como Aloysio Nunes adotaram um tom de guerra com os países vizinhos. Não fizeram nada para que o Brasil avançasse na integração com os parceiros na região. Os dois – à frente do Itamaraty – miraram a Aliança do Pacifico com um certo ar de que é lá que mora a modernidade. E, para eles, tudo o que o Brasil sempre quis em termos de comércio a Aliança do Pacífico parece ter. Em relação à Unasul, o Brasil foi de protagonista e liderança na construção desse espaço inédito de concertação na América do Sul para o imobilismo. No Governo Dilma a Unasul ainda funcionava, ainda que com menos intensidade que o período anterior, mas era compreendida como um foro político para se discutir as questões da região e construir confiança entre seus integrantes. Com a chegada do Temer e seus Ministros das Relações Exteriores, foi um desastre. Eles viam bolivarianismo em tudo que é lugar! O Serra chegou a pedir um levantamento de todas as organizações nas quais o Brasil é parte. Não sabia nem o que significava BRICS e como iria discorrer por três minutos sobre o que é a Unasul? A cabeça dele só consegue pensar em comércio. Em como tirar vantagens das relações com os países vizinhos. No fundo o desejo permanente é de ser reconhecido pelos Estados Unidos da América como o grande aliado. E não concebem o Brasil como um país chave na construção da governança regional. Assim, o ciclo que se encerra, melancólico e de letargia, será sucedido por outro, em que não sabemos qual será a política externa, a partir de primeiro de janeiro de 2019. Até o momento nada de construtivo e que se espera de um país do tamanho do Brasil e de sua importância na geopolítica regional foi dito pelo futuro ministro das Relações Exteriores. A única coisa que parece certa é a desconstrução de tudo o que foi feito desde 2003.
ODR: Que cenário o senhor vislumbra para o Brasil a partir de 2019 no tocante às Relações Exteriores do País, tendo em vista os posicionamentos assumidos pelo presidente eleito, que incluem a defesa por um alinhamento com o governo Donald Trump, a retirada do Acordo de Paris sobre as mudanças climáticas, e a transferência da Embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém?
Menezes: Os Estados Unidos, ao longo do século XX, sempre foram importantes para o Brasil. É uma relação que é chamada de parceria estratégica, pois implica que possuem interesses em certos temas, com criação de confiança e diálogo, e que se estende no tempo. Porém, a política externa de Trump, muito centrada na dimensão comercial, não quer saber dos outros países. E não há motivo para que seja diferente com o Brasil. A busca do alinhamento nem sempre é correspondida. Em Relações Internacionais, utiliza-se o termo bandwagon para designar parte desse comportamento. O fato é que, no período Fernando Collor (1990-1992), isto foi tentando, mas não foi correspondido. O governo Trump deve exigir provas de que, de fato, o Brasil quer parte de sua atenção, mas para isso terá que dar provas, digamos. Uma delas pode ser o desengajamento do BRICS e adotar uma política de hostilidade com a China. Para piorar, [o presidente eleito Jair Bolsonaro] lançou a proposta de mudar a embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém. Israel já chamou o Brasil de anão diplomático. Com a mudança da Embaixada, então, podemos dizer que o Brasil precisará de uma lupa para ser notado. Esse é um tema que não interessa o Brasil tomar lado. O Brasil deve assumir e manter seu compromisso com os Direitos Humanos, com a dignidade humana e o direito dos palestinos a um Estado. E para isso é preciso trabalhar pela paz na região. Outra pauta urgente é a questão das mudanças climáticas. Há um desencontro entre os futuros ministros, das Relações Exteriores (que parece ter adotado um comportamento de pastor) e o seu colega da área ambiental. A pressão maior até o momento tem vindo do agronegócio, pois o Brasil pode ser retalhado pelos países europeus, por exemplo, se sair do acordo. O presidente francês [Emmanuel Macron] já condicionou as negociações Mercosul-União Europeia à permanência do Brasil no acordo. A agenda ambiental é outra área desprezada pelo futuro governo do Brasil. Primeiro, por ignorância e desconhecimento. Segundo, porque ele quer dar continuidade ao desmonte do ordenamento jurídico ambiental brasileiro iniciado pelo governo Temer. Em suma, o Brasil tem tudo para virar um pária na arena internacional, muito distante do potencial do País.

Foto: SERGIO LIMA / AFP
Presidente eleito, Jair Bolsonaro, e o indicado a ministro das Relações Exteriores, o embaixador Ernesto Araujo. Foto: SERGIO LIMA / AFP

ODR: Em artigo de sua autoria publicado no E-International Relations, da Grã-Bretanha, o senhor fala de um “futuro incerto da democracia brasileira”. Por que as incertezas parecem ser maiores agora do que foram nas eleições presidenciais brasileiras dos últimos 15 anos?
Menezes: A eleição de Jair Bolsonaro pôs uma sombra sobre a democracia brasileira. O futuro presidente afirma em entrevistas e posts nas redes sociais que enviará ao Congresso projeto para ampliar o escopo da lei antiterror aprovada no contexto da realização da Copa do Mundo, ainda no governo Dilma Rousseff. O objetivo do novo governo é intimidar e tolher a capacidade de manifestações e resistências ao seu governo. Ele tem um agenda ultra-neoliberal, uma agenda que segue a lógica da austeridade. Uma agenda impopular. Em uma de suas declarações, afirmou que vai acabar com o ativismo no Brasil. O vice-presidente eleito já declarou mais de uma vez que é favorável a um autogolpe. Creio que ele tenha em mente a ideia de fujimorização do regime no País. Não se trata apenas de mudança de governo. Podemos estar diante de uma tentativa de mudança de regime.
ODR: O que sugere a indicação de Ernesto Araújo para a chefia do Ministério das Relações Exteriores do governo Bolsonaro, sopesando tanto a trajetória quanto as declarações recentes do diplomata?
Menezes: Tudo leva a crer que o Itamaraty terá um papel coadjuvante na formulação e implementação da política externa. A Casa Civil (com parte das atribuições sendo disputada pelo vice-presidente) deve se encarregar dos objetivos e diretrizes da política externa. O embaixador nos Estados Unidos, a depender de quem for indicado para o posto, deve ter um papel-chave junto a Casa Civil. O fato de ser um diplomata, o Ministro, não dá ao Itamaraty a opção de dizer que não participou dessa política, como tentou-se fazer parecer no governo Collor. O papel será secundário. E isso não é bom para o País. Na linha de tentar desconstruir tudo o que se fez nos últimos 20 anos, corre-se o risco de gastar tempo precioso em um mundo que não espera nenhum País. Nada do que foi declarado até o momento é positivo para a atuação internacional do Brasil. Nada! O futuro ministro conhece o Mercosul e já serviu nos Estados Unidos. O fato é que não se deve discutir se ele deveria ou não ser indicado. Ele é embaixador e sua promoção ocorreu inclusive por mudanças na carreira implementadas na gestão Celso Amorim. É que a linha indicada até o momento não demonstra que há uma estratégia de fato por parte da nova gestão. Se isso se confirmar – o Itamaraty como coadjuvante – então teremos uma política de retorno aos tempos em que se tirava os sapatos para entrar nos Estados Unidos.
ODR: O que implicaria tanto favorável quanto desfavoravelmente ao Brasil um alinhamento político e econômico com a potência norte-americana? Que espaço a América do Sul ocuparia nesse contexto?
Menezes: Não é fácil conseguir implementar esse alinhamento. Certamente há resistências internas no Itamaraty a essa visão. Não é a história da diplomacia brasileira. Já tivemos arroubos com beija-mão, frases como a do [militar e político brasileiro] Juracy Magalhães (“tudo que é bom para os EUA é bom para o Brasil”), mas depois da estabilização da economia brasileira em meados dos anos 1990 o País reconquistou a capacidade de planejamento. Quadro no Itamaraty tem para isso e nos demais órgãos dos serviços públicos federais. Nesses dois anos de governo Trump não há espaço para outros interesses que não os do próprio EUA. E é importante destacar que o Trump não virá a posse do presidente que jura ser o Trump dos trópicos. Se o Jair Bolsonaro bateu continência para um assessor do presidente Trump, imagine o que ele não faria para demonstrar a vassalagem ao próprio Trump! Então o futuro governo terá que correr, pois só terá o ano de 2019 para tentar conquistar a atenção dos Estados Unidos. E pode dar com os burros n’água, como se diz. A atuação brasileira na América do Sul deve regredir apenas a agenda comercial. E provavelmente a Secretaria Geral, que cuida dos temas da região, deve ser extinta na nova gestão do Itamaraty. Um retrocesso imenso se anuncia nas relações com os países vizinhos.
 
Presidente Trump em anúncio de retirada dos EUA do Acordo de Paris. Foto: Kevin Lamarque/Reuters.
Presidente Trump em anúncio de retirada dos EUA do Acordo de Paris. Foto: Kevin Lamarque/Reuters.

ODR: Segundo o filósofo norte-americano Jason Stanley, da Universidade Yale, tanto Trump quanto Bolsonaro são representativos de um movimento global reacionário a uma ordem internacional preestabelecida. De que modo esses fatores condicionam a inserção internacionais do País a partir de 2019, considerando os valores e princípios cristalizados na política externa do Itamaraty?
Menezes: A eleição do Trump tem diferenças com a do Jair Bolsonaro. Trump venceu no colégio eleitoral, mas perdeu no voto popular para Hilary Clinton. Então ele não é uma unanimidade. Depois ele disputou até o fim e a contragosto de muitos republicanos históricos, e mais influentes no Partido, a sua indicação. A sua eleição foi uma surpresa. Ele se apresentou como antissistema. É um empresário milionário que nunca exerceu mandato. No Brasil, Jair Bolsonaro não é antissistema. Desde 1988 ele tem mandato parlamentar e colocou toda sua família na política! A política para eles é um empreendimento como uma empresa mesmo. São políticos fracos e quase invisíveis. Nunca apresentaram projetos com começo, meio e fim. E com a polarização política entorno da incógnita de uma candidatura do Lula (que acabou preso em abril de 2018), ele catalisou o sentimento anti-petista. Sua plataforma é de extrema direita. Não há nenhuma dúvida. Quanto ao crescimento dos partidos e plataformas de extrema-direita no mundo, isto ocorre desde o fim da Guerra Fria. Na Polônia, na Hungria, nos Estados Unidos e no Brasil, agora. Com a montagem do governo e as negociações com o Congresso, o futuro governo já se deu conta de que, a partir de primeiro de janeiro de 2019, terá que governar um país do tamanho e da importância do Brasil, e isso significa descer do palanque e mostrar que tem capacidade e conhecimento da máquina. Então essa plataforma de extrema-direita precisa buscar inimigos internos e a ideologia é sempre a dos outros. Eles são puros! E invocam uma agenda e um discurso cristão, mas no fundo isso é para mascarar um projeto de poder que está nos seus primeiros momentos. Agora [Bolsonaro] escolheu a imigração como inimiga. Parece que ele leva a sério a ideia de que é o Trump dos trópicos, mas é preciso lembrá-lo que ele não tem o poder do país que tanto admira e é deslumbrado: os Estados Unidos.
ODR: Tendo em vista os cenários projetados nesta entrevista, o que passará a ser cada vez mais crucial para a agenda de estudos e pesquisas sobre política externa e regionalismo?
Menezes: Precisamos aguardar o futuro governo começar para podermos analisar as políticas adotadas. Mas tudo indica que a agenda girará entorno da desconstrução da política externa que foi realizada nos últimos 20 anos. Trump impôs a renegociação do NAFTA (North American Free Trade Agreement). Será que o futuro presidente acha que pode fazer isso com o Mercosul? A ladainha da ideologia na política externa será ouvida ainda por muito tempo. Mas o que importa é saber o que será de fato essa política externa. Por enquanto foram só declarações. A realidade é que conta. Qual a visão internacional desse governo? É difícil saber até o momento. Temos poucos indícios ainda.


 
Entrevista exclusiva realizada via correio eletrônico por Lucas Eduardo S. de Souza em 19/12/2018.

Escrito por

Lucas Eduardo Silveira de Souza

Bacharel em Relações Internacionais (Unesp) e Mestre em Relações Internacionais (UnB). Área de interesse: América do Sul, regionalismo sul-americano, Unasul, integração regional e política externa brasileira.