A crise venezuelana tem sido tema recorrente na imprensa, na academia e na política internacional. Os produtos dos descaminhos democráticos da Venezuela tencionam ainda mais a administração Maduro, que tem se encontrado sob os mais variados polos de pressão. Em decorrência disso, este texto busca atualizar a discussão sobre a questão venezuelana, fornecendo um diagnóstico abrangente, ainda que breve, das causas e efeitos da crise no país, sem perder a objetividade da análise. Nesse sentido, entende-se que a problemática é complexa e qualquer aproximação a ela deva ter em conta sua diversidade temática (economia, política, sociedade) e os níveis de atuação envolvidos (local, regional e internacional), bem como suas contradições.

Com relação à origem da crise na Venezuela, (de modo sintético,) em 1989, as políticas liberais do presidente Pérez culminaram na revolta conhecida como Caracazo, na capital, e em outras manifestações pelo país. O recurso à força excessiva cindiu, inclusive, as próprias forças armadas. Como consequência, já em 1992, militares da oposição tentaram sucessivos golpes contra Pérez, o qual foi deposto por via institucional em 1993. No ano seguinte, o novo chefe do executivo, Rafael Caldera, concedeu indulto aos revoltosos do momento anterior, dentre eles Hugo Chávez, eleito presidente pela primeira vez em 1998.

Com Chávez a Venezuela passa por mudanças substantivas nos campos das instituições, político, social e econômico. Desse modo, à medida que a economia venezuelana, baseada no bom momento à exportação de petróleo, lograva ser distributiva, avanços sociais foram feitos no país. Concomitantemente, as vitórias políticas de Chávez abriram espaço para a implementação de um corpo legislativo unicameral, lhe deram condições de resistir a um golpe em 2002, fortaleceram sua base parlamentar e marginalizaram a oposição. Ao longo dos anos 2000 o socialismo do século XXI pulsava no norte da América do Sul. Em 2013, todavia, com Chávez morto, seu vice Nicolás Maduro disputou eleições apertadas e logrou ser eleito com 50,6% dos votos.

Maduro não herdou o bom momento vivido por seu antecessor e a capacidade de seu governo, em termos econômicos, tem sido bastante restrita à vista de, sobretudo, o preço internacional do petróleo e da carência do país com relação à modernização de seu parque industrial e consequente dependência de importações. Além disso, a vitória nas eleições de 2013 sinalizou o crescimento da oposição, a qual lograra maioria legislativa no sufrágio de 2015. A partir de então, o atrito entre os dois polos de poder passou a ser constante, compreendendo cenários de prisão de opositores, a abertura de um processo de impeachment contra Maduro, sucessivos embates entre o poder judiciário e o congresso, a convocação de uma constituinte pelo governo e a antecipação contestada das eleições presidenciais para 2018, da qual o candidato chavista saiu vitorioso (confira outras publicações do ODR). Mais recentemente, na escalada de protestos e violência no país destacam-se o (controverso) atentado à vida do presidente, a investigação e prisão de mais de 20 suspeitos e a morte do vereador de oposição, Fernando Albán Salazar, divulgada pelo governo como suicídio (e as acusações de Maduro de que o governo colombiano estaria por trás dos atentados).

Na seara social, o reflexo dessa instabilidade tem preocupado. De acordo com um material publicado na semana passada (Policy Briefs y Policy Memo – Respuestas Regionales a la Crisis Venezolana) pela Coordinadora Regional de Investigaciones Económicas y Sociales (CRIES) e The Stanley Foundation, há dificuldade das organizações políticas e especializadas em lidar com a questão venezuelana, sua crise democrática e, principalmente, humanitária (traduzida, sobretudo, em migrações massivas, complicações sanitárias e de abastecimento). A articulação de respostas ao desgaste no país passa desde a ausência de uma liderança mais assertiva na região ao próprio reconhecimento por parte do governo de Maduro de que há, de fato, uma crise humanitária na Venezuela (seu discurso na última Assembleia Geral da ONU atesta isso). Ainda segundo a publicação da CRIES com The Stanley Foundation, o fenômeno migratório tem desorganizado grupos de interlocução, entre as iniciativas internacionais e alguma estrutura não governamental minimamente organizada.

 Dentre as instituições regionais que vêm atuando na questão venezuelana, podemos destacar o Grupo de Lima (GL), a Organização dos Estados Americanos (OEA), o Grupo de Trabalho da OEA dedicado à migração venezuelana, a Organização Pan Americana da Saúde, o Mercosul e a própria Unasul.(Com relação a esta última, vale a leitura do texto publicado no ODR sobre a questão da saída argentina do organismo internacional, o qual incorpora na análise como o governo chavista vem contribuindo à crise regional).

No que tange às negociações com o governo, o Grupo de Lima ainda não conseguiu estabelecer diálogo direto e suas ações mais substantivas tem sido no âmbito discursivo. A brevidade da última declaração do GL nos convida a transcrevê-la integralmente:

Os governos de Argentina, Brasil, Chile, Costa Rica, Guatemala, Honduras, México, Paraguai, Peru e Santa Lúcia, países membros do Grupo Lima, reafirmam seu compromisso de contribuir para a restauração da democracia na Venezuela e para superar a grave crise política, econômica, social e humanitária que esse país atravessa, por meio de uma saída pacífica e negociada. Nesse sentido, continuarão a promover iniciativas com esse fim no âmbito do Direito Internacional.

Exortam uma vez mais o regime venezuelano a pôr fim às violações dos direitos humanos, libertar os presos políticos, respeitar a autonomia dos poderes do Estado e assumir a responsabilidade pela grave crise que a Venezuela vive hoje.

Da mesma forma, expressam sua preocupação e seu rechaço a qualquer curso de ação ou declaração que implique uma intervenção militar ou o exercício da violência, a ameaça ou o uso da força na Venezuela.

Consoante à posição do Grupo de Lima fora o discurso do presidente brasileiro Michel Temer na Assembleia Geral da ONU. Para o pesquisador Daniel Rei Coronato, “[d]eixando de lado as dificuldades e pressões existentes na região fronteiriça, que culminaram com diversos episódios lamentáveis nos últimos meses, Temer buscou demonstrar orgulho daquilo que denominou como ‘tradição de acolhimento’, realizado por ‘um povo forjado na diversidade’, além da instituição da nova Lei de Migração. Ademais, aproveitou para pontuar que uma solução definitiva para a questão só seria possível quando a Venezuela reencontrasse ‘o caminho da democracia e do desenvolvimento’, atacando publicamente o governo de Nicolás Maduro, imputando a ele um caráter ditatorial em concordância com as diretrizes adotadas pelo Itamaraty desde que assumiu o poder.”. (Para mais sobre a questão dos imigrantes em Roraima, ver texto de Laís Azeredo, publicado no site do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais).

Um pouco mais radical, entretanto, fora a posição de Trump, que em entrevista declarou que na Venezuela há “um regime que, francamente, poderia ser derrotado rapidamente se os militares decidirem fazer isso”. Na mesma linha tem se posicionado o secretário-geral da OEA, Luis Almagro, que não descarta uma intervenção militar no país e atribui à “comunidade interancional” a responsabilidade de evitar uma derrocada ditatorial sob o governo de Maduro.

De olho na relação entre o Brasil e a crise na Venezuela, o latino-americanista Sean W. Burges sustenta que tanto a morte de Chávez, quanto o impeachment de Dilma Rousseff no Brasil, agravaram a crise naquele país. Nesse sentido, o trato dialógico entre ambos os países se enfraqueceu. Além disso, aponta o autor, a indisposição brasileira em lidar com a perturbação em seu vizinho provavelmente vem se construindo graças ao fluxo comercial entre as partes e, também, pelo “poder” que os empréstimos brasileiros à Venezuela atribuem a esta. Na esfera hemisférica, Burges conclui que a fraqueza pro-democrática do sistema interamericano não é acidental e este tem latido pouco, mas sem mordidas.

Já para Nolte e Mijares, o foco econômico da integração latino-americana como um todo não fora acompanhado de autonomia política das instituições. Ou seja, “em uma época de polarização ideológica e política, a falta de uma institucionalidade supranacional limita as capacidades de gestão de crises” (tradução livre). E, nesse cenário, apontam os autores, ainda há a complexidade dos conflitos identitários das elites regionais. A imprensa brasileira, por exemplo, vinha pressionando o candidato à presidência do Partido dos Trabalhadores (PT), Fernando Haddad, a definir sua posição com relação à Venezuela, visto que em seu plano de governo tal colocação não fora mencionada e a orientação do candidato Jair Bolsonaro tem sido bastante clara nesse sentido, associando uma eventual vitória do PT ao que ele chama de “venezualização” do Brasil.

Por fim, consoante nosso intuito de fornecer um diagnóstico abrangente da questão venezuelana, considerando não apenas seus efeitos contemporâneos, mas também suas causas históricas, pode-se compreender um pouco melhor a dimensão e complexidade que o tema exige. No que tange ao encaminhamento do problema, por um lado, a comunidade internacional é chamada a responsabilizar-se pelo apaziguamento das tensões na Venezuela e garantir a volta da democracia no país. Por outro, as instituições, mormente regionais, sem um desenho institucional supranacional, ou até mesmo mais assertivo, ficam à mercê das idiossincrasias governamentais dos Estados que às integram. Somam-se a isso a resistência do governo Maduro em reconhecer as dificuldades do país e aceitar ajuda humanitária, a desarticulação da sociedade civil pela própria crise e sua consequente migração. Portanto, qualquer esboço de solução ao caso venezuelano não pode ser unidimensional, mas requer diversidade em suas áreas de ação (política, econômica, humanitária, de abastecimento, etc.), e deve ser multinível, com arranjos regionais mais incisivos e inclusivos, com suporte à sociedade civil e diálogos com o governo do país. Talvez, a questão venezuelana seja o maior desafio à reconfiguração (ou onda) vigente na América do Sul hodierna.

Escrito por

Angelo Lira

Mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp - Unicamp - Puc-SP). Pesquisador vinculado ao Observatório de Regionalismo e ao Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI). Membro da Comissão Editorial do Boletim Lua Nova (CEDEC).