A morte da vereadora Marielle Franco, e as suspeitas condições em que o crime foi envolto, foram muito repercutidas no ambiente internacional. Entre os países do Mercado Comum do Sul (Mercosul), houve protestos em Buenos Aires e a coalizão governista do Uruguai lamentou a morte da representante eleita. Além disso, a tragédia ecoou nas paredes do Parlamento Europeu (PE). Os deputados da instituição homenagearam a vereadora e pediram à Comissão Europeia[1] a paralisação das negociações entre o Mercosul e a União Europeia (UE) (CHADE, 2018). Diante deste fato, é importante retomar a discussão das negociações entre os dois blocos, de forma a compreender o estágio atual em que a ‘novela’ se encontra, mas também compreender em que medida o discurso dos parlamentares europeus – em casos como o de Marielle Franco – podem, de fato, repercutir diretamente na paralisação das negociações.

As negociações comerciais Mercosul-UE possuem como principal característica o pêndulo entre entraves e retomadas ao longo dos mais de 20 anos de conversações. Tendo impulso inicial em 1995, com a assinatura do Acordo de Madri, as negociações só foram iniciadas, de fato, a partir do final de 1999. Foram paralisadas em 2004, quando se previa a assinatura do acordo inicialmente, e, posteriormente, retomadas em 2010. Em 2013, novamente foram bloqueadas, e retomadas a partir de 2015. O capítulo mais recente se deu durante a reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), realizada na cidade de Buenos Aires, em dezembro de 2017. Esperava-se anunciar um acordo concretizado durante a reunião. No entanto, mais uma vez, o consenso não foi atingido. O dissenso entre os dois blocos, tal como já discutido anteriormente em texto do Observatório, permanece nas questões agrícolas, sobretudo.

Por um lado, a UE não abre mão de sua Política Agrícola Comum[2] (PAC), visto que parcela importante dos países europeus – beneficiados pela política de proteção agrícola – é contra a completa liberalização do setor, pois os países do Mercosul são grandes produtores agrícolas e, portanto, altamente competitivos. Do lado de cá do Atlântico, o temor recai, em boa medida, sobre a alta competitividade europeia no setor industrial e de serviços.

De forma geral, a UE não pretende estabelecer ampla liberalização do setor agropecuário para o Mercosul. A liberalização dos chamados ‘produtos sensíveis’, caso da carne bovina e etanol, se dará apenas por meio de cotas tarifárias. Ou seja, liberalização parcial para determinada quantidade de produtos[3]. O Mercosul, por sua vez, estaria reticente em abrir mais seu mercado de automóveis, lácteos, azeites, bem como estaria hesitando nos temas do regime de drawback[4] e de propriedade intelectual, sobretudo devido à exigência europeia de prorrogação da proteção de patentes de medicamentos, evitando que estes sejam substituídos por genéricos.

Apesar da manutenção de dissonância entre as ofertas, o discurso dos negociadores e autoridades dos países permanece ressoando como otimista. Tanto Michel Temer como João Gomes Cravinho – embaixador da Delegação da UE no Brasil – têm afirmado na mídia que o acordo poderia sair ainda neste mês de abril. Retórica esta que já ocorreu em diversos outros momentos ao longo destes 20 anos[5] (TEMER DIZ…, 2018; EMBAIXADOR…, 2018).

No geral, uma vez que o possível acordo Mercosul-UE possui amplo espectro, sua concretização assume contornos que vão além das questões comerciais e econômicas, assumindo teor político e social em diversos momentos ao longo dos anos de tratativas. Assim, a retórica vai além do aspecto comercial, mas assume fortes contornos relativos ao diálogo político e à cooperação. O próprio Acordo de Madri estabelecia diretrizes amplas que deveriam nortear o Mercosul e a UE na cooperação e nas negociações comerciais, pontuando como primeiro princípio da cooperação “o respeito dos princípios democráticos e dos direitos fundamentais do homem (…)” (ACORDO-QUADRO…, 1995, on-line). Além disso, faz parte da própria retórica europeia, em seus processos de cooperação internacional com outros países e blocos, o reforço da democracia e dos direitos humanos como fundamental para a consumação de acordos comerciais, assumindo, inclusive, uma cláusula democrática em alguns acordos negociados.

Mais recentemente, após o assassinato da vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco, 52 deputados do PE pediram à Comissão Europeia a suspensão das negociações. O grupo de parlamentares compõe a bancada de esquerda do PE, integrando a aliança Esquerda Unitária Europeia e a Esquerda Nórdica Verde. O grupo demandou que as negociações fossem suspensas até que houvesse o fim da violência e intimidação contra a oposição política e defensores de direitos humanos no Brasil (clique aqui para ver o vídeo). Entre os partidos representados, está o espanhol Podemos. Além de compor o grupo que exigiu a suspensão, o Podemos enviou uma carta própria à Comissão Europeia exigindo que Bruxelas condenasse formalmente o assassinato e paralisasse as tratativas (DEPUTADOS…, 2018).

Na mesma linha, o presidente da Delegação da Assembleia Parlamentar Euro-Latino-americana, Ramón Jáuregui Atond; Fernando Ruas, o presidente da Delegação para as Relações com o Brasil; Francisco Assis, presidente da Delegação para as Relações com o Mercosul; e Elisabetta Gardini, a presidente do Fórum EuroLat das Mulheres, assinaram Declaração Conjunta exortando às autoridades brasileiras à investigação imediata e à proteção dos defensores de direitos humanos no país. Não houve citação, no entanto, à paralisação das negociações (PARLAMENTO EUROPEU, 2018).

No geral, o Tratado de Lisboa estabeleceu que cabe ao PE a aprovação de qualquer acordo celebrado no domínio da Política Comercial Comum do bloco. Os grupos que compõe o Parlamento, portanto, podem assumir algum tipo de pressão para travar ou não o acordo. Não obstante, apesar do importante aspecto retórico, político e ideológico, que estas manifestações assumem, estas representam pouca efetividade no computo geral das tratativas. Em outras oportunidades, eurodeputados estabeleceram críticas semelhantes ao processo de negociações entre os blocos, com pouca efetividade ao andamento das tratativas por parte da Comissão Europeia, com exceção do caso da suspensão do Paraguai, em 2012.

Assim, em 2012, após o então presidente paraguaio, Fernando Lugo, ter sofrido processo de impeachment, sem tempo hábil de defesa, houve entendimento dos países do Mercosul de que havia ocorrido uma quebra da ordem democrática no país. Sendo assim, acionaram a cláusula democrática do bloco e o Paraguai foi suspenso do Mercosul, inclusive das negociações com a Europa. Em seguida, houve uma missão de eurodeputados até Assunção para averiguar as condições da democracia do Paraguai. Devido ao ocorrido, o eurodeputado Luis Yáñez-Barnuevo – chefe da Delegação do PE para as Relações com o Mercosul – anunciou que a agenda de negociações entre o bloco europeu e o sul-americano estava suspensa até que o Paraguai realizasse eleições diretas e fosse reincorporado ao Mercosul (DESTITUIÇÃO…, 2012).

Por parte do bloco europeu, no caso paraguaio, dado a velocidade do processo de impeachment de Fernando Lugo e as condições em que este ocorreu poderia ensejar a dubiedade do processo e do respeito à democracia. Ao mesmo tempo, o Paraguai é um dos países do Mercosul mais interessados na concretização do Acordo. Negociar com o bloco sem a presença do país, ao mesmo tempo em que a Venezuela adentrava no bloco, poderia incorrer em dificuldades de avançar com a pauta europeia de ofertas, sem a presença de um fiel da balança mais aberto à Europa.

No caso da suspensão venezuelana do Mercosul – primeiro devido à Tarifa Externa Comum, em seguida à utilização da cláusula democrática – o PE aprovou sanções seletivas ao país caribenho, congelando bens e restringindo acesso ao território europeu de pessoas do país que estivessem envolvidas em violações dos direitos humanos. Apesar disto, não consta entre o comunicado de imprensa do Parlamento o pedido de paralisação das negociações, sobretudo devido ao fato de que a Venezuela já não estava inserida nas tratativas entre os dois blocos (PARLAMENTO EUROPEU, 2018b). Em declaração sobre a possibilidade de a suspensão venezuelana atrapalhar as atuais negociações entre os dois blocos, o presidente da delegação para os países do Mercosul do PE, afirmou que a questão era preocupante, mas que, “felizmente, a Venezuela não participa das negociações” (NEM VENEZUELA…, 2016).

Assim, diversos motivos incorrem para que a UE não apenas não fosse contrária a suspensão, mas também a visse como favorável. Primeiro, a Venezuela não fazia parte das negociações. Segundo, a crise política e econômica instaurada no pais caribenho poderia transbordar para os outros países do Mercosul, tornando mais difícil a negociações do acordo. Terceiro, a Venezuela sempre se caracterizou por ser crítica ao acordo Mercosul-UE. Logo, a suspensão do país não poderia incorrer em cenário mais favorável aos interesses europeus, uma vez que mesmo alheia às tratativas poderia gerar agenda de dificuldades no seio do bloco. Mesmo entre os eurodeputados do bloco à esquerda no PE, pouca ou nenhuma declaração foi feita favorável à Venezuela.

Por fim, no caso do impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, eurodeputados pediram a suspensão das negociações entre os dois blocos. Cerca de 30 deputados enviaram carta à Comissão Europeia e o eurodeputado espanhol Xavier Benito, do Podemos, afirmou que devido à abrangência do acordo, para além das questões tarifárias, suas tratativas deveriam se dar entre atores democraticamente eleitos. Com este tom, o eurodeputado questionava a legitimidade do processo de impeachment e de Michel Temer como presidente. Apesar das manifestações destes deputados, não houve qualquer movimento da Comissão Europeia por paralisar as negociações. Pelo contrário, o discurso de que o acordo seria concretizado brevemente se manteve (GRUPO…, 2018).

O caso mais recente de manifestação dos eurodeputados foi, justamente, em relação ao assassinato de Marielle Franco. O tom do discurso dos deputados crítica não apenas as condições em que o crime contra Marielle se deu, mas também pontuando o contexto de crise política em que o Brasil se encontra. No entanto, ao que tudo indica, a Comissão Europeia, mais uma vez se manterá isenta de congelar as tratativas.

Neste caso, a ação do Parlamento Europeu pode ser compreendida em dois âmbitos: A ação do PE enquanto instituição e a ação dos eurodeputados. No caso da ação do PE, as ações concretas direcionados ao caso paraguaio, venezuelano e brasileiro marcam a diferença de tratamento para cada um dos membros do Mercosul. Já nas ocorrências de discursos dos eurodeputados, sobretudo em relação ao Caso Marielle Franco, podem ser lidas de duas formas: a primeira, o discurso como maneira de reforçar as bases político-ideológicas que compõe os grupos de Esquerda frente aos seus pares no âmbito do PE; a segunda, uma forma de marcar oposição ao andamento das tratativas entre Mercosul e UE.

É importante e necessária a repercussão internacional que o assassinato de Marielle Franco obteve. Todavia, as consequências dos discursos dos eurodeputados serão mínimas no andamento das tratativas. Na narrativa da novela Mercosul-UE, a morte de Marielle ressoa apenas como eco distante, entre interesses econômicos e políticos.

Referências
ACORDO-QUADRO Inter-regional de Cooperação entre a Comunidade Europeia e seus Estados Membros, por uma Parte, e o Mercado Comum do Sul e seus Estados Parte, por Outra. Madrid. 1995. Disponível em: <http://www.sice.oas.org/TPD/MER_EU/negotiations/Interregional_agreement_s.asp>. Acesso em: 08 abr. 2018.
CHADE, Jamil. Diante da morte de Marielle, deputados europeus pedem suspensão de negociações com Mercosul. Estado de São Paulo, 15 mar. 2018. Disponível em: <http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,diante-de-morte-de-marielle-deputados-europeus-pedem-suspensao-de-negociacao-com-mercosul,70002228542>. Acesso em: 08 abr. 2018.
COMISSÃO EUROPEIA. A política agrícola comum (PAC) e a agricultura na Europa – Perguntas Frequentes. Bruxelas, 26 jun. 2013. Disponível em: <http://europa.eu/rapid/press-release_MEMO-13-631_pt.htm>. Acesso em: 08 abr. 2018.
DEPUTADOS europeus pressionam a UE a agir após morte de Marielle. DW, 15 mar. 2018. Disponível em: <http://www.dw.com/pt-br/deputados-europeus-pressionam-ue-a-agir-ap%C3%B3s-morte-de-marielle/a-42999409>. Acesso em: 08 abr. 2018.
DESTITUIÇÃO de Lugo interrompe negociações entre UE e Mercosul. Terra, 18 jul. 2012. Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/mundo/destituicao-de-lugo-interrompe-negociacoes-entre-ue-e-mercosul,3f7a9c01358da310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html>. Acesso em: 08 abr. 2018.
EMBAIXADOR da UE no Brasil diz que acordo com Mercosul está “muito próximo”. Diário de Notícias, 10 mar. 2018. Disponível em: <https://www.dn.pt/lusa/interior/embaixador-da-ue-no-brasil-diz-que-acordo-com-mercosul-esta-muito-proximo-9175591.html>. Acesso em: 08 abr. 2018.
GRUPO de eurodeputados pede suspensão das negociações com o Mercosul. El País, 31 mai. 2016. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/05/31/internacional/1464656635_863477.html>. Acesso em: 08 abr. 2018.
NEGOCIAÇÕES entre Mercosul e União Europeia vivem semana crucial. Mercado. Folha de São Paulo. 02 de outubro de 2017. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/10/1923469-negociacoes-entre-mercosul-e-uniao-europeia-vivem-semana-crucial.shtml>. Acesso em: 08 abr. 2018.
NEM VENEZUELA nem Brexit impactam acordo UE-Mercosul, dizem parlamentares europeus. O Globo, 2 nov. 2016. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/economia/nem-venezuela-nem-brexit-impactam-acordo-ue-mercosul-dizem-parlamentares-europeus-20403737>. Acesso em: 08 abr. 2018.
PARLAMENTO EUROPEU. Declaração conjunta do presidente da Delegação à Assembleia Parlamentar Euro- Latino-Americana, do presidente da Delegação para as Relações com a República Federativa do Brasil, do presidente da Delegação para as Relações com o Mercosul e da presidente do Fórum EuroLat das Mulheres do Parlamento Europeu sobre o assassinato de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro, na noite de quartafeira, 14 de março de 2018. Disponível em: <http://www.europarl.europa.eu/cmsdata/140489/1149009PT_2.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2018.
PARLAMENTO EUROPEU. Venezuela: Parlamento Europeu apela a sanções contra Maduro e chefes militares. 08 fev. 2018b. Disponível em: <http://www.europarl.europa.eu/news/pt/press-room/20180202IPR97036/venezuela-parlamento-europeu-apela-a-sancoes-contra-maduro-e-chefes-militares>. Acesso em: 08 abr. 2018.
PREOCUPACIÓN de la Rural por la oferta negociadora de la Unión Europea al Mercosur. Campo. La Nación. 04 de octubre de 2017. Disponível em: <http://www.lanacion.com.ar/2068997-preocupacion-de-la-rural-por-la-oferta-negociadora-de-la-union-europea-al-mercosur>. Acesso em 16 de outubro de 2017.
TEMER DIZ que acordo entre Mercosul e União Europeia será fechado ‘em definitivo’. G1, 11 mar. 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/temer-diz-que-acordo-entre-mercosul-e-uniao-europeia-sera-fechado-em-definitivo.ghtml>. Acesso em: 08 abr. 2018.
Fonte da imagem: Homenagem de Marielle Franco na Câmara dos Deputados, em Brasília. http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/a-protagonista/2018/03/15/camara-dos-deputados-define-comissao-externa-para-acompanhar-investigacao-de-assassinato-de-marielle-franco/
[1]              Órgão responsável por negociar os tratados comerciais da União Europeia;
[2]              A Política Agrícola Comum (PAC) europeia visa assegurar o nível de vida justo aos agricultores do bloco, priorizando a produção de alimentos, a gestão sustentável dos recursos naturais e um desenvolvimento equilibrado das zonas rurais da UE. O orçamento da PAC gera apoio ao rendimento dos agricultores com pagamentos diretos a eles, medidas de apoio ao mercado e medidas de desenvolvimento rural (COMISSÃO EUROPEIA, 2013).
[3]              O Mercosul teria pedido cota de carne bovina de 390.000 toneladas/ano, sem tarifas. A proposta europeia dispôs de 70.000 toneladas (PREOCUPACIÓN…, 2017). No caso do etanol, a UE colocou a possibilidade de 600 mil toneladas de etanol por ano (NEGOCIAÇÕES…, 2017).
[4]              O regime de drawback é a suspensão ou eliminação de tributos sobre insumos importados para utilização em produto exportado.
[5]              Desde 2000 é comum ver na mídia notícias indicando que o acordo brevemente será concretizado. Em 2004 dizia-se que o acordo poderia ser fechado até final daquele ano ou início de 2005; em 2010 de que o acordo seria fechado no mais tardar em 2013; em 2016 de que o acordo seria fechado final de 2017; e, atualmente, de que o acordo poderá ser fechado nos próximos meses.

Escrito por

Lucas Bispo dos Santos

Mestrando no Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) e integrante da Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (REPRI), pesquisando os temas relativos ao Regionalismo, Integração Regional, Mercosul e União Europeia. Bacharel em Relações Internacionais, pela Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Política, Economia e Negócios, em 2014. Realização de intercâmbio, com bolsa parcial cedida pelo Santander Universidades, para Universidade de Coimbra, em 2013. Bolsista da FAP-Unifesp pelo Projeto Univercine, em parceria com a Cinemateca Brasileira, entre 2011 e 2012.