Foto: Al Jazeera

A União Europeia (UE) tem atravessado crises de diversas dimensões. A crise da Zona do Euro, subsequente à crise financeira de 2008, gerou inúmeras discussões sobre a sustentabilidade econômica do bloco e da moeda comum do processo de integração. Não obstante, mais recentemente, o bloco também presenciou a vitória do Brexit nas urnas, ou seja, a aprovação em referendo da saída do Reino Unido da UE. Diferente da Crise do Euro, o Brexit parece colocar em questão a sustentabilidade política do processo de integração europeu. Há, ainda, uma severa crise humanitária relacionada ao grande fluxo de refugiados que tem chegado ao continente europeu, sobretudo nos últimos dois anos. São, em sua grande maioria, deslocados provenientes de países como a Síria, Afeganistão, Iraque e Somália (ARANGO et al, 2016). Conhecida como ‘Crise dos Refugiados’, a situação atual no continente europeu expõe, na verdade, uma crise de diversas dimensões que atingem, também, o próprio processo de integração europeu. Evidencia-se um colapso do sistema europeu de asilo e refúgio, mas também reforça a noção de abismo existente entre o Norte-Sul – Centro e Periferia – inerente à UE e suas fronteiras, tornando também ingente o sentimento de xenofobia por parte de alguns cidadãos europeus. Ao mesmo tempo algumas instituições comunitárias europeias são erodidas, ameaçando, por exemplo, a livre-circulação no Espaço Schengen (ARANGO et al, 2016).

Enquanto bloco, a UE procurou ao longo destes dois anos algumas soluções comunitárias, evitando que a crise relativa aos refugiados gerasse soluções unilaterais dos membros, com a deterioração do Espaço Schengen e a livre circulação de pessoas, corroendo ainda mais o já fragilizado processo de integração. A Alemanha, na figura de Ângela Merkel, de início, liderou a autorização da entrada em seu território de uma grande quantidade de refugiados. Essa resposta foi importante em um primeiro momento, pois permitiu descongestionar o sistema europeu. A medida gerou inúmeras reações na UE, sobretudo na Alemanha, que assistiu a um crescimento de crimes xenófobos. Ainda que a solução alemã no início da crise tenha sido interessante, ela gerou um efeito negativo de desincentivo à responsabilidade de outros Estados a aderirem ao recebimento dos refugiados (ARANGO et al, 2016).

De acordo com o site da União Europeia, o bloco utilizou, até agora, cerca de 10 bilhões de euros do orçamento direcionados à atual crise (UE). Não obstante, montantes são direcionados para alguns países chaves no processo de deslocamento destas pessoas. Por exemplo, a Grécia é uma espécie de porta de entrada para a UE, e rota de passagem para países como Alemanha e Suécia, destinos finais de muitos dos deslocados que atravessam o Mar Mediterrâneo em direção ao velho continente. Em 2016, a Comissão Europeia enviou 83 milhões de euros para o país grego de forma a atender a demanda humanitária do país (EUROPEAN COMISSION, 2016a).

Outro país crucial nesta crise humanitária, geográfica e politicamente, é a Turquia. Tal como a Grécia, a Turquia também serve como rota de passagem para os deslocamentos provenientes do Oriente Médio e África, servindo de um entreposto antes deles chegarem às ilhas gregas. A Turquia seria o país com maior acolhimento de refugiados, aproximadamente 3 milhões de pessoas (2,5 milhões delas sendo sírios) (COMISSÃO EUROPEIA, 2017). Neste contexto, em 18 de março de 2016, a UE assinou um acordo com a Turquia estabelecendo que todos os novos imigrantes em situação irregular e requerentes de asilo com pedidos inadmissíveis, que cheguem à Grécia provenientes da Turquia, retornarão à Turquia. De acordo com a UE, “esta medida temporária foi concebida para pôr termo ao sofrimento humano”. Ainda segundo o acordo, para cada nacional sírio que for obrigado a regressar ao país turco devido a indeferimento de asilo, a UE acolherá um nacional sírio que já esteja na Turquia, dando-se prioridade aos deslocados que não tenham “previamente entrado ou tentado entrar“ de maneira irregular no bloco. Por fim, na declaração do acordo, considera-se que é de responsabilidade da Turquia impedir que novas rotas de deslocamento sejam criados por mar ou terra (“Turkey will take any necessary measures to prevent new sea or land routes for irregular migration opening from Turkey to the EU”) (EUROPEAN COMISSION, 2016b).

Neste ínterim, algumas contrapartidas foram estabelecidas, por exemplo, a promessa de aceleração do processo de liberação dos vistos de cidadãos turcos para adentrar na UE; o desembolso de 3 bilhões, por parte dos europeus, para auxiliar a Turquia até o final de 2018; a aceleração do processo de adesão da Turquia à UE, que se prolonga por anos (EUROPEAN COMISSION, 2016b). O acordo com a Turquia, no entanto, longe de representar uma solução consensuada, acabou por se tornar alvo de fortes críticas, sobretudo de Organizações Não-Governamentais, como a Anistia Internacional.

John Dalhuisen, diretor da Anistia Internacional para a Europa e a Ásia Central, considera que é válido apoiar a Turquia a desenvolver um sistema de asilo que funcione, contudo, da maneira que o acordo foi pensado, praticamente pressupõe-se que o sistema turco de asilo já funciona de forma a absorver todo o fluxo existente (ANISTIA). Assim, a solução turca consiste, na verdade, em transpor a responsabilidade de redução dos fluxos de refugiados para a Turquia. Logo, condiciona-se a ajuda humanitária a uma política de liberalização de vistos, além de uma quantia financeira de auxílio. Tal consideração parece ser reforçada na medida em que, nos termos da declaração UE-Turquia, coloca-se a Turquia como responsável por impedir que novas rotas surjam. Há, portanto, uma espécie de externalização do controle migratório que não seja responsabilidade do processo de integração europeu (MASCAREÑAS, 2016).

De acordo com o site oficial da UE, o número de refugiados e imigrantes vindos da Turquia foi de cerca de 7.000 por dia, antes da assinatura do acordo em 2015, para 47 por dia até o final de maio do ano de 2016 (COMISSÃO EUROPEIA, 2017). Ainda que os dados demonstrem que haja, de fato, uma redução do número de refugiados chegando à UE, o problema apenas foi transposto para fora das fronteiras europeias. Além disso, em 17 de março de 2017, o ministro do Interior turco, Süleyman Soylu, ameaçou suspender o acordo, liberando o caminho para 15 mil refugiados, isso porque, Alemanha e Holanda vetaram que ministros turcos fizessem comício nos respectivos países em favor da reforma constitucional proposta pelo atual Primeiro-Ministro Recep Tayyip Edorgan, além disso, a Turquia estaria acusando a UE de não cumprir sua parte do acordo, liberalizando os vistos turcos e acelerando o processo de adesão do país ao bloco europeu (UOL/ EFE).

Por fim, existe uma normativa comunitária europeia relativa aos pedidos de asilo dentro do bloco, de forma a harmonizar as políticas de asilo dos países. Em 1990, assinou-se a Convenção de Dublín, substituída posteriormente por Dublín II (2003) e Dublín III (2013). Em resumo, o primeiro Estado membro em que se tenha feito a solicitação de asilo, será o responsável pelo exame desta. No entanto, o objetivo do sistema de Dublín não é de distribuir equitativamente os pedidos de asilo entre os membros, mas apenas coordenar qual Estado é responsável pelo processamento do pedido. Neste sentido, os países fronteiriços da UE acabam sendo sobrecarregados (MASCAREÑAS, 2015; MASCAREÑAS, 2016). Em 2016, a Comissão Europeia apresentou algumas propostas de reformas no sistema de asilo europeu, pretendendo torná-lo mais harmonizado e justo, contudo, são propostas ainda em discussão no Conselho Europeu (CONSELHO EUROPEU, 2017).

Longe de se encontrar uma solução, a questão dos refugiados permanece batendo à porta da UE. Enquanto discute-se a reforma do sistema de asilo europeu, a solução do acordo UE-Turquia aparenta mais uma espécie de fortificação do espaço europeu do que uma solução, de fato, para a questão humanitária que transborda para o bloco. O bloco, ao longo de sua construção, apresentou diversas transformações importantes que aprofundaram o processo de integração entre os países. As sucessivas e concomitantes crises pelos quais ele passa expõem suas fragilidades econômicas, políticas e sociais, ao mesmo tempo em que parece corroer pilares importantes como a moeda única, o aprofundamento da integração entre os Estados membros e políticas como o Espaço Schengen. Tal como ocorreu com a Crise do Euro e ocorre com o Brexit, discutem-se saídas e soluções para a crise humanitária que atingiu não apenas o continente europeu, mas o próprio cerne do seu processo de integração. São crises multidimensionais, que parecem compor um delicado mosaico a ser resolvido pelos países europeus. Enquanto isso, as guerras e conflitos permanecem gerando mais ondas de deslocamentos, como ficou evidente no recente ataque químico à cidade síria Jan Shijun.

Referências Bibliográficas

ARANGO et al. Introducción: El año de los refugiados. In: El año de los refugiados. Barcelona Centre for International Affairs (CIDOB). Institución editora (2016). Disponível em: <http://www.cidob.org/publicaciones/serie_de_publicacion/anuario_cidob_de_la_inmigracion/el_ano_de_los_refugiados_anuario_cidob_de_la_inmigracion_2015_2016_nueva_epoca>. Acesso em: 07 de abril de 2017.

COMISSÃO EUROPEIA. A UE e a Crise dos Refugiados. 2017. Disponível em: <http://publications.europa.eu/webpub/com/factsheets/refugee-crisis/pt/>. Acesso em: 07 de abril de 2017.

CONSELHO EUROPEU. Reforma do Sistema Europeu Comum de Asilo. 23 março 2017. Disponível em:<http://www.consilium.europa.eu/pt/policies/migratory-pressures/ceas-reform/>. Acesso em: 07 de abril de 2017.

EUROPEAN COMISSION. Gerir a crise dos refugiados: Comissão apresenta relatório sobre os progressos efetuados na execução da Declaração UE-Turquia. Bruxelas. 15 de junho de 2016a. Disponível em: <http://europa.eu/rapid/press-release_IP-16-2181_pt.htm>.  Acesso em: 07 de abril de 2017.

EUROPEAN COMISSION. Implementing the EU-Turkey Statement – Questions and Answers. Brussels. 15 june 2016b. Disponível em:<http://europa.eu/rapid/press-release_MEMO-16-1664_en.htm>. Acesso em: 07 de abril de 2017.

EUROPEAN COMISSION. Refugee Crisis in Europe. 20 June 2016. Disponível em: <http://ec.europa.eu/echo/refugee-crisis_en>. Acesso em: 07 de abril de 2017.

MASCAREÑAS, Blanca Garcés. Por qué Dublín “no funciona”. Notas Internacionales. CIDOB 135. 11/2015. Disponível em: <http://www.cidob.org/publicaciones/serie_de_publicacion/notes_internacionals/n1_135_por_que_dublin_no_funciona/por_que_dublin_no_funciona>. Acesso em: 07 de abril de 2017.

MASCAREÑAS, Blanca Garcés. Más externalización del control migratório. Opinión 450. CIDOB. 12/2016. Disponível em: <http://www.cidob.org/es/publicaciones/serie_de_publicacion/opinion/migraciones/mas_externalizacion_del_control_migratorio>. Acesso em: 07 de abril de 2017.

http://br.rfi.fr/europa/20150818-alemanha-recebe-recorde-de-imigrantes-e-xenofobia-cresce-no-leste

https://anistia.org.br/noticias/retornos-forcados-de-pessoas-refugiadas-e-requerentes-de-asilo-da-ue-para-turquia-sao-irresponsaveis-e-ilegais/

https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2017/03/17/turquia-volta-a-usar-refugiados-como-arma-em-disputa-com-a-uniao-europeia.htm

http://www.efe.com/efe/portugal/portada/turquia-amea-a-enviar-15-000-refugiados-por-mes-europa/50000438-3210609

Escrito por

Lucas Bispo dos Santos

Mestrando no Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) e integrante da Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (REPRI), pesquisando os temas relativos ao Regionalismo, Integração Regional, Mercosul e União Europeia. Bacharel em Relações Internacionais, pela Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Política, Economia e Negócios, em 2014. Realização de intercâmbio, com bolsa parcial cedida pelo Santander Universidades, para Universidade de Coimbra, em 2013. Bolsista da FAP-Unifesp pelo Projeto Univercine, em parceria com a Cinemateca Brasileira, entre 2011 e 2012.