Após o texto introdutório sobre a dinâmica regional asiática, hoje falaremos de um aspecto mais pontual sobre a ASEAN e seus temas de regionalismo: a questão do Mar do Sul da China e de que maneira a ASEAN trabalha normativamente com essa questão em relação às dinâmicas de cooperação regional para a segurança.

Porém, antes de avançarmos ao entendimento sobre como a ASEAN trabalha a cooperação relativa aos problemas do Mar do Sul da China, é interessante compreendermos rapidamente do que se tratam esses problemas. Lo (1989) em seu excelente livro “China’s Policy Towards Territorial Disputes: The Case of South China Sea Islands” disseca o tema de uma maneira que deixa claro toda a complexidade que as relações da China com os países do Sudeste Asiático (com quem compartilha esses problemas) possuem para o ambiente geopolítico da região. Dessa maneira, ao resumirmos essa questão de acordo com esse autor, os problemas do Mar do Sul China compreendem uma disputa territorial entre China, ASEAN e Taiwan por dois conjuntos de ilhas presentes nessa região: as Paracel e as Spratly (Figura 1).

Fonte: BBC
Fonte: BBC

Neste texto vamos falar basicamente de dois lados desse conflito: o da China e dos países do Sudeste Asiático, justamente por serem os dois elos mais importantes tendo em vista o histórico desse embate. Em primeiro lugar, Lo (1989) demonstra que para Beijing essa questão consiste em remontar parte da extensão territorial chinesa, previamente conquistada durante os seus tempos imperiais. Em outras palavras, temos que para os chineses tanto as Paracels quanto as Spratlys são territórios que fizeram parte da extensão territorial do império chinês, o que tornaria essa disputa com o Sudeste Asiático uma espécie de luta pela reconquista de parte de seu território original. Assim, a própria China delimita essa região, de modo que as ilhas permaneçam dentro de suas fronteiras geográficas, pela conhecida Nine Dash Line, a linha tracejado em vermelho na Figura 1 e que configura o espaço de mar que os chineses argumentam ser de total soberania de Beijing.

Em contrapartida, membros do sudeste asiático, mais especificamente Filipinas, Vietnã, Malásia e Brunei, amparados pela lei do mar da UNCLOS (United Nations Convention on Law of The Sea) de 1982 pleiteiam, por exemplo, como argumentado por Lo (1989), que as reivindicações dos chineses interferem diretamente em sua soberania no que tange seus direitos em ter acesso aos seus mares territoriais [1], conforme os limites acordados por essa convenção, e às zonas econômicas exclusivas [2]. Dessa maneira, esses países combatem esse limite estabelecido por Beijing através da Nine Dash Line e defendem a limitação desse espaço oceânico pelo o que foi acordado pela UNCLOS em 1982, a linha tracejada em azul demonstrada na Figura 1.

Com isso, podemos passar à análise de como a ASEAN se insere nesse debate com uma agenda específica para essa questão do mar do Sul da China. Primeiramente, a ASEAN assume essa disputa de modo que ela não seja tratada de modo unilateral e sim através do auxílio da própria instituição regional. Além disso, a ASEAN, enquanto instituição regional, constrói a sua agenda especifica para essa questão, sobretudo, através da ARF (ASEAN Regional Forum), que consiste no elo de cooperação dessa instituição, cujo objetivo é promover entendimentos nas áreas de segurança regional. Porém, tal ponto faz com que surja uma pergunta interessante: porque colocar a ARF como esse representante e não a ASEAN? Será que a mesma especificamente não possui uma política clara sobre a questão e a repassa para uma outra instituição?

 O fato é que a ARF pode ser entendida como parte essencial da ASEAN, já que o seu centro institucional é compartilhado de modo que a ARF se insira como uma espécie de extensão da mesma, mas com um escopo maior de membros como os Estados Unidos, China, Austrália, dentre outros. Esse ponto é um fator interessante para o regionalismo asiático, como observado por Beeson (2009) e por vários outros autores da literatura especializada, já que esses adendos institucionais, como a ARF nesse caso, são, na verdade, meras extensões da própria ASEAN, pois a mesma continua com o papel de liderança mesmo quando traz para essa cooperação outros atores para além do próprio Sudeste Asiático [3]. É por isso que podemos assumir essa relação da ASEAN-ARF como uma extensão e, portanto, assumir que a tratativa da ASEAN para a questão do Mar do Sul da China coincide com a própria agenda da ARF para esse confronto.

Com essa relação mais clara, como o proposto para discussão neste texto, temos que a agenda de segurança da ASEAN, representada principalmente através da ARF, mas também por acordos paralelos como a ZOPFAN (Zone of Peace, Freedom and Neutrality), a SEANWFZ(Southeast Asian Nuclear-Weapon-Free-Zone) e um acordo de conduta entre as partes de 2002, constrói quatro conjuntos principais de normas para a cooperação sobre o conflito do Mar do Sul da China: 1) a neutralização da região frente às disputas entre as grandes potências, o que garante a não intromissão desses Estados nas dinâmicas domésticas de segurança regional; 2) o respeito pelo não uso militar da energia atômica, de forma que se proíba a construção de misseis balísticos ou armas de ataque; 3) a utilização dos aspectos construídos do ASEAN Way (que foi analisado no ultimo texto) e dos cinco princípios de coexistência pacífica, como as duas regras para as relações entre China e ASEAN, de maneira que tais relações sejam primordialmente amparadas pela ARF, a qual assume o papel de principal fórum responsável por coordenar as dinâmicas de segurança na região; 4) e quando olhamos especificamente para as questões marítimas, o foco privilegiado é sobre a questão do Mar do Sul da China, de modo que nenhuma outra questão marítima dessa região possa servir como pretexto para essa em específico.

Partindo do aceite pelas partes tanto dessas normas, quanto da proeminência da ARF, tal ponto transforma a maneira pela qual a gestão desse conflito será abordada por Beijing e pela ASEAN. O primeiro aspecto é que esse conflito passa a não ser mais tratado como uma questão interna chinesa e que depende de um bilateralismo de Beijing, mas sim como um problema que enfatiza a resolução pelo multilateralismo. Além disso, fica claro com a análise desses documentos que a UNCLOS passa a ser a norma primordial para gerir esse embate, assim como outras normas universalmente aceitas do Direito Internacional Marítimo. Por fim, temos uma declaração de 2002 que aceita regras em comum para essa questão e que também anseia por um aprofundamento no sentido de serem aceitas regras mais densas e especificas sobre a temática.

Em suma, essa é a maneira pela qual a ASEAN lida com a questão marítima referente ao conflito sobre o mar do sul da China. É de modo a tentar trazer esse conflito, antes tratado de modo bilateral pela China com cada uma das partes envolvidas, como observado por Lo (1989), para uma tratativa multilateral. E, respeitando essas tradições da ASEAN-ARF, podemos avançar no entendimento para essa questão pelo lado do regionalismo.

É claro que esse conflito ainda não é um ponto em que uma resolução definitiva foi acordada, mas é visível que, com esse avanço normativo da ASEAN-ARF em relação às tentativas unilaterais chinesas, tal contenda teve uma singela melhora em relação ao nível de tensão anterior que esse assunto possuía para as relações multilaterais na Ásia. Além disso, o objetivo desse texto foi fazer uma reflexão mais normativa da abordagem da ASEAN sobre esse tema, o que não retira a necessidade (e que insere talvez uma oportunidade futura) de elaborarmos um texto mais empírico sobre essa questão e contrastarmos com os dados analisados neste breve ensaio.

NOTAS:

1) Mar Territorial é a faixa de agua costeira delimitada em 12 milhas Náuticas (cerca de 22km) a partir do litoral do próprio Estado. Essa região é considerada parte integrante do território soberano de um Estado. Fonte: UNCLOS, 1982.

2) Zona Econômica exclusiva é a faixa de agua costeira delimitada até 200 milhas náuticas (cerca de 370 km) em que o Estado exerce jurisdição exclusiva sobre suas riquezas econômicas, naturais e de navegação. Fonte: UNCLOS, 1982.

3) A literatura normalmente usa a metáfora dessas cooperações regionais como um carro conduzido pela ASEAN direcionando a cooperação. Em outras palavras, por mais que instituições surjam, fundamentalmente, elas estão vinculadas com a ASEAN e por isso podemos argumentar no sentido de que elas são um contínuo.

PARA MAIS INFORMAÇÃO (REFERÊNCIAS)

ABAD Jr, M.C. (2000). The Role of ASEAN in Security Multilateralism. ZOPFAN, TAC, and SEANWFZ.

ARF

(1994).Chairman’s Statement, The First Meeting of the Asean Regional forum. Disponível em: ­tokyo.ac.jp/~worldjpn/documents/texts/arf/19940725.O1E.html Acesso em: 23/03/2016.

(1995).Chairman’s Statement, the Second Meeting of the Asean Regional Forum. Disponível em: ­tokyo.ac.jp/~worldjpn/documents/texts/arf/19950801.O1E.html Acesso em: 23/03/2016.

(1996).Chairman’s Statement, the Third Meeting of the Asean Regional Forum. Disponível em: ­tokyo.ac.jp/~worldjpn/documents/texts/arf/19960723.O1E.html Acesso em: 23/03/2016.

(1997).Chairman’s Statement, the Fourth Meeting of the ASEAN Regional Forum. Disponível em: ­tokyo.ac.jp/~worldjpn/documents/texts/arf/19970727.O1E.html Acesso em: 23/03/2016.

(1998).Chairman’s Statement, The Fifth Meeting of the Asean Regional Forum. Disponível em: ­tokyo.ac.jp/~worldjpn/documents/texts/arf/19980727.O1E.html Acesso em: 23/03/2016.

(1999).Chairman’s Statement, The Sixth Meeting of the Asean Regional Forum. Disponível em: ­tokyo.ac.jp/~worldjpn/documents/texts/arf/19990726.O1E.html Acesso em: 23/03/2016.

(2000).Chairman’s Statement, the Seventh Meeting of the Asean Regional Forum. Disponível em: ­tokyo.ac.jp/~worldjpn/documents/texts/arf/20000727.O1E.html Acesso em: 23/03/2016.

ASEAN

(1971). Zone of Peace, Freedom and Neutrality Declaration.

(2002). Declaration on the Conduct of Parties in the South China Sea.

(2006). ASEAN Regional Security: The Threats facing it and the Way Forward.

BEESON, Mark (2009). Institutions of Asia-Pacific: ASEAN, APEC and beyond. Nova Iorque: Routledge.

LO, Chi-Kin (1989). China’s Policy towards Territorial Disputes: The Case of South China Sea Islands. Nova Iorque: Routledge.

UNITED NATIONS (1982). United Nations Convention on Law of the Sea.

Escrito por

Márcio José Oliveira Júnior

Estuda a área de Política Internacional, mais especificamente Política Externa da China moderna. Ingressou no ano de 2011 na Universidade Federal de São Paulo, no curso de Relações Internacionais que está vinculado a Escola Paulista de Política Economia e Negócios (EPPEN). É participante do Grupo de Pesquisa UNIFESP/UFABC "A inserção internacional brasileira: projeção global e regional" e do grupo Inserção Regional e suas consequencias para a política externa: uma análise do Brasil e da Índia ambos certificados pelo CNPq. Foi bolsista de Iniciação Científica pela FAPESP nos anos de 2012 a 2014. Atualmente é mestrando no PPGRI da Universidade Federal de Uberlândia com bolsa CAPES, ligado ao Ie (Instituto de Economia) e também pesquisador ligado a Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (REPRI).