Texto por Carlos Frederico Pereira da Silva Gama
Professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do Tocantins (UFT) e,
Pesquisador Visitante na Al Akhawayn University in Ifrane (Marrocos).
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Um olhar panorâmico sobre o cenário político europeu revela continuidade. Nas cinco principais economias da União Europeia, 2020 começa com governos de configuração similar àqueles que iniciaram 2019 – conservadores na Alemanha, Reino Unido e Itália, socialistas na Espanha e liberais na França. Em quatro deles, o ano pregresso foi marcado por eleições ou a dissolução de governos.
Essa continuidade nos faz crer na resiliência de idiossincrasias nacionais1 num mundo parcialmente globalizado2. Tal impressão, porém, pode ser matizada, à luz das interfaces entre arenas domésticas e um espaço comunitário em expansão. Instituições europeias tiveram impactos significativos sobre as transformações nos estados-membros em 2019. Tais efeitos se tornam mais visíveis quando abordamos, em chave comparativa, processos políticos em curso nas eleições nacionais desse ano. Neste artigo, fazemos uma comparação dos impactos das instituições europeias nas eleições em dois estados-membros da União Europeia em 2019 – o Reino Unido e a Espanha. Além de ter realizado eleições gerais no ano que passou, ambos países são monarquias parlamentares multinacionais que lidaram, recentemente, com consultas populares referentes à autonomia de regiões (a Escócia em 2014, a Catalunha em 2017). Seus governos, oriundos de forças distintas no espectro político, assumiram posturas diametralmente opostas referentes ao processo de integração. A despeito da ascensão do nacionalismo em ambos casos, variáveis comunitárias se mostraram decisivas no processo político.
Nas eleições gerais (realizadas em Dezembro no Reino Unido e em Abril e Novembro na Espanha) os eleitorados referendaram a permanência, respectivamente, dos conservadores e socialistas no poder, legitimando o status quo. A manutenção dos governos em curso, entretanto, não resultou de um processo linear. A passagem de bastão de Theresa May a Boris Johnson no Reino Unido e a formação de um governo de coalizão na Espanha foram mudanças qualitativas, marcadas pelas relações entre os estados-membros e a União Europeia.
A conformação dos parlamentos operou segundo a lógica do nacionalismo. Enquanto Johnson obtinha cartada decisiva para o Brexit, os nacionalistas escoceses obtinham 86% dos escanhos do legislativo local em Holyrood3 e prometiam a realização de nova consulta popular. Se Pedro Sánchez obteve o maior número de cadeiras no plano nacional, os independentistas catalães mantinham o controle da comunidade autonômica ao obter maioria na Generalitat4, logo após a condenação, pelas Cortes espanholas, da liderança do referendo de 2017. Ao longo de 2019, os Tories5 se tornaram um “partido do Brexit”. Já o espanhol PSOE mostrou um compromisso inquebrantável com a União Europeia. A integração regional parece uma variável insuficiente para explicar a fragmentação das democracias liberais em linhas nacionalistas. Entretanto, seus impactos são relevantes para analisar deslocamentos dos governos nacionais no decorrer das suas interações. No curso das eleições nacionais na Europa, a atuação das instituições comunitárias cresceu de vulto. O endosso da Comissão Europeia ao plano do Brexit de Johnson contribuiu para a permanência dos Conservadores em Downing St6. Em chave similar, a sentença do Tribunal de Justiça Europeu em Luxemburgo, ao assegurar a imunidade dos eurodeputados catalães7, viabilizou a posse de Carles Puigdemont (asilado em Bruxelas desde 2017) e manteve acesas as esperanças de autonomia catalã.
A sobreposição de diferentes níveis de atividade social no espaço da Europa tornou o continente um tabuleiro complexo8. Mecanismos de governança transversal contribuem para a estabilização regional. Ao incidir sobre variáveis domésticas, instituições comunitárias oferecem – ainda que de modo contingente, efêmero e contestável – oportunidades para essa governança se estabelecer.
A contribuição das instituições europeias se mostraria decisiva para o desfecho das urnas. A postura hostil de Donald Tusk e negociadores enfraqueceu May, pavimentando a ascensão do Hard Brexit9. Nigel Farage e seu Brexit Party foram grandes vencedores das eleições para o Parlamento Europeu. Sob Boris Johnson, os conservadores cerraram fileiras para “get Brexit done”. Apesar da Suprema Corte britânica ter impedido a prorrogação do Parlamento local almejada pelo Primeiro-Ministro (o que conferiria carta branca nas negociações com a UE), o endosso de Bruxelas ao acordo proposto em Novembro foi referendado pelos eleitores em Dezembro, dando vitória histórica aos Tories. O tratado foi assinado pelos líderes da Comissão Europeia e do Conselho Europeu em 24 de Janeiro10.
Na Península Ibérica, o Primeiro Ministro socialista Sánchez se viu em maus lençóis, diante da recusa das instituições europeias em tratar os líderes do referendo de 2017 como criminosos. A decisão favorável a Oriol Junqueras (preso na Espanha) e Puigdemont – emitida pouco após a sentença do “procés” haver desencadeado uma onda de desobediência civil na Catalunha – levou PSOE e Unidas-Podemos à mesa de negociação com os partidos independentistas, para assegurar a investidura de novo governo após as eleições de Novembro11. O gabinete de coalizão empossado em Janeiro elevou o perfil das relações entre La Moncloa12 e as comunidades autônomas na agenda política13.
Também em Janeiro, Farage recepcionou Puigdemont em seu debut no Parlamento Europeu14.
O paroxismo da situação fez convergir extremos do espectro político sob uma mesma constatação: tanto o crescimento do nacionalismo quanto impactos das instituições europeias são coordenadas interpretativas fundamentais para o entendimento da Europa nas primeiras décadas do século 21.
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NOTAS
1 Gama, C. F. P. S. (2019). “Uma Espanha dividida vai às urnas europeias”. Observatório de Regionalismo. Disponível em: https://observatorio.repri.org/artigos/odr-convida-uma-espanha-dividida-vai-as-urnas-europeias-por-carlos-frederico-pereira-da-silva-gama/. Acesso em: 11 de Junho de 2019.
2 Keohane, R. O. (2002). Power and Governance in a Partially Globalized World. Routledge: New York.
3 Sede do Parlamento Escocês, em Edimburgo. Até 1707 (ano da união real das coroas inglesa e escocesa), era a sede do governo soberano da Escócia.
4 Parlamento da comunidade autônoma da Catalunha, inspirado nas cortes medievais do Principado da Catalunha, surgidas no século XIII.
5 Apelido dos membros do Partido Conservador, originado de grupos políticos dos séculos XVIII e XIX que antecederam a atual formação.
6 Residência do Primeiro-Ministro britânico, em Westminster, Londres.
7 Court of Justice of the European Union (2019). “A person elected to the European Parliament acquires the status of Member of that institution at the time of the official declaration of the results and enjoys, from that time, the immunities attached to that status”. Press Release No 161/19. Disponível em: https://curia.europa.eu/jcms/upload/docs/application/pdf/2019-12/cp190161en.pdf. Acesso em: 19 de Dezembro de 2019.
8 Nye Jr, J. (2003). The Paradox of American Power: Why the World’s Only Superpower Can’t Go It Alone. Oxford: Oxford University Press.
9 Gama, C. F. P. S. (2019). “A Window Upon Constraints: Three Years After Popular Vote, the UK Still Requests Further Brexit Delays”. CERES. Disponível em: https://ceresri.wordpress.com/2019/04/25/a-window-upon-constraints-three-years-after-popular-vote-the-uk-still-requests-further-brexit-delays/. Acesso em: 25 de Abril de 2019.
10 BBC (2020). “Brexit: EU leaders sign UK withdrawal deal”. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-europe-51234625. Acesso em: 24 de Janeiro de 2020.
11 Gama, C. F. P. S. (2019). “A Espanha na Encruzilhada de Crises: Incerteza e Memória nas Democracias do Século XXI”. CERES. Disponível em: https://ceresri.wordpress.com/2019/12/06/a-espanha-na-encruzilhada-de-crises-incerteza-e-memoria-nas-democracias-do-seculo-xxi/. Acesso em: 6 de Dezembro de 2019.
12 Palácio em Madrid e sede do governo espanhol
13 Casqueiro, J. & Pérez, F. J. (2020). Pedro Sánchez logra la investidura y formará el primer Gobierno de coalición de la democracia. El País. Disponível em: https://elpais.com/politica/2020/01/07/actualidad/1578382922_404144.html. Acesso em: 8 de Janeiro de 2020.
14 Sánchez, A. (2020). “Puigdemont pisa Estrasburgo entre besos y abrazos del séquito independentista”. El País. Disponível em: https://elpais.com/politica/2020/01/13/actualidad/1578923819_985504.html?ssm=TW_CM_ESP. Acesso em: 13 de Janeiro de 2020.