Ao longo do governo Rousseff, foi amplamente repercutido pela oposição e mídia a ideia de que o Brasil perdia as oportunidades de comércio internacional por estar atrelado à “ideologia protecionista” do Mercosul e que, portanto, era necessário flexibilizar o bloco para que o país pudesse entrar nos fluxos comerciais. A partir do governo Temer e a respectiva convergência ideológica com o governo Macri, na Argentina, a ideia de flexibilizá-lo ganhou mais força, como visto nos discursos do Itamaraty sobre integração regional[1].

A flexibilização do Mercosul é entendida como o retrocesso de uma União Aduaneira para uma Zona de Livre Comércio: nos estudos sobre integração regional, a primeira significa que os países daquele bloco negociam acordos e se relacionam com terceiros em conjunto através da Tarifa Externa Comum (TEC); já a segunda, existe mais “liberdade” (ou menos coordenação) entre as partes para o mesmo objetivo devido  à inexistência da TEC. As consequências dessa mudança podem ser positivas ou negativas dependendo dos interesses dos atores domésticos envolvidos nesse debate.

Mas será mesmo possível que o bloco deixe de ser uma União Aduaneira? O discurso de flexibilização sairá do papel?

Existem fortes indícios que nos levam a acreditar nisso: os objetivos do governo Temer para o Mercosul, expressos no documento Mensagem ao Congresso Nacional de 2017; os discursos dos ministros de Relações Exteriores, José Serra e Aloysio Nunes (ambos do PSDB e cujas propostas estão de acordo com os programas de governo daquele partido nas eleições de 2010 e 2014[2]); a primazia do comércio exterior na agenda de política externa[3]; e maior aproximação e sinalização de convergência com a Aliança do Pacífico (bloco regional pautado no estabelecimento indiscriminado de tratados de livre-comércio), o que indica para um redirecionamento da política externa para a região sob o modelo de regionalismo aberto[4].

Ao mesmo tempo em que o atual governo brasileiro expressa essa intenção, não se verificam ações concretas para revogar a Decisão 32/00, a qual determina, segundo o Artigo 2º, que a partir de 30 de junho de 2001, os Estados Partes não poderão assinar novos acordos preferenciais ou acordar novas preferências comerciais em acordos vigentes no marco da ALADI, que não tenham sido negociados pelo MERCOSUL”[5]. Mesmo as entidades empresariais, com destaque para a FIESP, que se demonstram mais favoráveis às medidas do atual governo, reconhecem que o Mercosul tem grande relevância às empresas devido à exportação de produtos manufaturados para os países vizinhos – principal pauta exportadora brasileira.

Então, por que se fala tanto em flexibilização – ou melhor, qual o significado por trás do termo “flexibilização”?

Recentemente, representantes do governo (Paulo Estivallet, MRE), da FIESP (Thomas Zanotto) e de think tanks (Rubens Barbosa/IRICE) estiveram presentes na III Conferência Anual de Comércio Internacional (CACI), organizado pela FGV-EESP, onde debateram sobre o futuro do Brasil e do Mercosul na integração regional, e também sobre a relação com a Aliança do Pacífico. De modo geral, o discurso de cada um foi no sentido de valorizar a integração regional e o Mercosul de modo a integrar o Brasil nos principais acordos de comércio internacional.

Um aspecto importante presente nas falas é a ênfase que se dá às ações do país atualmente em contraste ao que foi feito nas gestões anteriores, a fim de enfatizar que o país está trabalhando no sentido de romper com a “paralisia” e os atrasos comerciais do Mercosul desde os anos 2000. No entanto, verifica-se que no período 2000 – 2014 o aspecto comercial seguiu sendo de igual importância no Mercosul: de 2000 a 2014 são finalizados os Acordos de Complementação Econômica com o Peru (2005), Colômbia (2005), Venezuela (2005), México (2002 e 2005) Cuba (2007); o Acordo de Preferências Tarifárias com a Índia (2009); Acordos de livre-comércio com o Egito (2004), Israel (2010), Palestina (2011); Memorando de Entendimento para o Comércio com a Coreia do Sul (2009) e Líbano (2014); Acordo-quadro de comércio com o Marrocos (2004), Paquistão (2006), Jordânia (2008) – em andamento – e com a Tunísia (2014); Acordo-quadro para área de livre-comércio com a África do Sul (2000) e a Turquia (2008) – em andamento; Acordo de comércio preferencial com a Southern African Costums Union (2008) – em andamento; Acordo-quadro de cooperação econômica e o Conselho de Cooperação dos Estados Árabes do Golfo (2005) – em andamento[6]. Sendo assim, quando mencionam “atrasos” no discurso, a que isso se refere?

Quanto à relação entre Brasil e Aliança do Pacífico, sendo esta última repercutida como alternativa ao Mercosul, o discurso apresentado em relação ao impacto do bloco na região durante o evento se assemelha bastante ao discurso dos governos Rousseff quanto à questão: naquele período, Rubens Barbosa, que foi presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, chegou a escrever algumas vezes no jornal O Estado de S. Paulo[7] que a Aliança do Pacífico era uma estratégia mais ativa e moderna enquanto o Mercosul se encontrava em situação de quase total isolamento. Durante o evento, o mesmo ressaltou que o impacto da Aliança do Pacífico para o Brasil foi limitado pois já existiam acordos com os países do bloco, assim como o Mercosul também possuía esses acordos no âmbito da Associação Latino Americana De Integração (ALADI); discurso que muito se assemelha ao do ex-ministro de Relações Exteriores, Antônio Patriota, quando, em contraposição à Aliança do Pacífico, afirmou que o Mercosul era o projeto de integração mais avançado da região devido à existência de acordos de livre-comércio entre o Brasil e os demais países da América do Sul por meio da ALADI e que, portanto, a Aliança do Pacífico não era inovadora[8].

Ainda nesse assunto, foi destacado a existência de uma agenda possível entre o Mercosul e a Aliança do Pacífico e chamaram a atenção para a importância do andamento das negociações entre esses dois blocos. No entanto, destaca-se mais uma vez que o Brasil já vinha trabalhando por uma aproximação com a Aliança do Pacífico desde 2014 no sentido de acelerar o cronograma de desgravação tarifária com o Peru, Colômbia e Chile para o final daquele ano – o qual originalmente estava previsto para 2019[9]. Ou seja, a intenção do Brasil de se aproximar com a Aliança do Pacífico não é recente.

Desta forma, uma vez que o fim da União Aduaneira não é algo desejado por nenhuma das partes, o discurso de flexibilização parece, nesse sentido, se afirmar mais como um discurso de oposição ao rumo que o Mercosul vinha tomando sob as gestões petistas. Na visão desses atores, o comércio exterior não foi tratado adequadamente nas gestões anteriores principalmente porque a necessidade de negociação em bloco, como previsto na Decisão 32/00, impedia o Brasil de firmar tratados mais ambiciosos. A “flexibilização do Mercosul” assume, então, um entendimento de avançar em áreas em que a negociação em bloco não é tão necessária, mas ainda mantendo o mercado já conquistado pela Decisão 32/00[10].

[1] Disponível em: http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2016/05/19/mercosul-precisa-ser-fortalecido-diz-serra.htmhttp://www.psdb.org.br/acompanhe/noticias/em-audiencia-na-camara-ministro-aloysio-nunes-apresenta-prioridades-da-politica-externa-brasileira/. Acesso em: 08 ago. 2017.

[2] Disponível em: http://contee.org.br/contee/wp-content/uploads/2014/10/Plano-de-governo_aecio1.pdf; http://www.psdb.org.br/storage/2010/10/Programa-de-Governo-Jose-Serra.pdf. Acesso em: 08 ago. 2017.

[3] MENEZES, Roberto; BANZATTO, Arthur. Brasil e Aliança do Pacífico: resistência, aproximação e acomodação. Anuario de la Integracion Regional de América Latina y el Caribe. Coordinadora Regional de Investigaciones Económicas y Sociales: Buenos Aires, n. 13, 2016.

[4] MENEZES, Roberto; MARIANO, Karina. O Brasil e a trajetória recente da integração sul-americana 2008 – 2015: liderança, competição e novos rumos. In: 10º ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CIÊNCIA POLÍTICA. 2016, BELO HORIZONTE. Disponível em: https://cienciapolitica.org.br/system/files/documentos/eventos/2017/04/brasil-e-trajetoria-recente-integracao-sul-americana-2008.pdf. Acesso em: 08 ago. 2017.

[5] Disponível em: http://www.sice.oas.org/Trade/MRCSRS/Decisions/dec3200p.asp. Acesso em: 08 ago. 2017.

[6] RODRIGUES, Bernardo. Mercosul: 25 ano de avanços e desafios. NEIBA, v. 5, 2016.

[7] Disponível em: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,o-brasil-e-os-novos-blocos-imp-,1128993 ; http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,revolucao-no-comercio-internacional-imp-,996091 ; http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,novos-rumos-para-a-integracao-regional-imp-,977505. Acesso em: 08 ago. 2017.

[8] Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-imprensa/3478-apresentacao-do-ministro-antonio-de-aguiar-patriota-em-audiencia-na-comissao-de-relacoes-exteriores-e-defesa-nacional-do-senado-federal. Acesso em: 08 ago. 2017.

[9] Disponível em: http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-quer-acordo-com-alianca-do-pacifico-imp-,1533190. Acesso em: 08 ago. 2017.

[10] Agradeço ao Prof. Dr. Roberto Menezes pela conversa sobre o tema em questão durante o evento FÓRUM San Tiago Dantas ocorrido no mês de abril deste ano.

Escrito por

Julia de Souza Borba Gonçalves

Doutoranda em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB). Mestra em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e graduada em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", campus de Franca. Integra, desde 2014, a Rede de Pesquisa sobre Regionalismo e Política Externa (REPRI) e, desde 2019, a Rede Colombiana de Relações Internacionais (RedIntercol).