Imagem: Diana Mondino em visita ao Brasil em abril de 2024, com Mauro Vieira no Palácio do Itamaraty. Fonte: Cancillería Argentina.

Desde a campanha presidencial de 2023, Javier Milei tem gerado atritos com o presidente brasileiro, Lula da Silva, ao sugerir a saída da Argentina do Mercosul e fazer declarações polêmicas sobre Lula (Steil, 2024). Apesar dos recuos de Milei após eleito, com uma postura mais conciliatória representada pelo Ministério Exterior e sua chanceler, Diana Mondino, a tensão na relação bilateral persiste, sem perspectivas imediatas de superação. A deterioração do relacionamento entre os governos não é um fenômeno dos últimos dois anos; as dificuldades políticas começaram em 2019, durante os mandatos de Jair Bolsonaro e Alberto Fernández. Como evidência dessa ruptura, Bolsonaro e Milei, durante seus respectivos governos, foram os únicos presidentes que se ausentaram das reuniões do conselho do Mercosul (Barbosa, 2024a). Assim, tornam-se relevantes reflexões sobre o impacto dessas tensões na relação bilateral e no futuro do bloco.

Brasil e Argentina, desde a criação do Mercosul em 1991, independentemente das variações ideológicas de seus governos ao longo do tempo, mantiveram um compromisso mínimo com a manutenção do bloco e com a boa relação bilateral. Porém, as eleições de Bolsonaro e Fernández romperam essa dinâmica, colocando em risco o aprofundamento da integração no Mercosul. Além das rusgas entre os dois por posicionamentos ideológicos e ações concretas, como a visita de Fernández a Lula, preso neste período por corrupção, possuíam visões divergentes quanto ao regionalismo sul-americano. Enquanto Bolsonaro rompia no Brasil com a estratégia de cooperação sul-sul, predominante durante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT), e tomava por aliados estratégicos os Estados Unidos, Israel e Itália, Fernández, eleito na Argentina por uma aliança heterogênea, buscava equilibrar, em prol da governabilidade, interesses divergentes: o protecionismo industrial e o aprofundamento do Mercosul (Pires; Conssul, 2021).

Bolsonaro mantinha um discurso anti-globalista e anti-regionalista, baseado na ideia de que a globalização e o regionalismo eram projetos da esquerda internacional. Como candidato, ele defendeu que o desenvolvimento nacional dependia de uma reestruturação da identidade internacional do Brasil, com foco na aproximação aos países ocidentais para comércio e transferência tecnológica, rejeitando a estratégia de aproximação sul-sul (Casarões, 2019). Bolsonaro, ainda como deputado federal, era averso ao projeto do Mercosul, posicionando que o Brasil deveria abandonar o princípio de negociação em bloco e partir para uma abordagem bilateral em relação a seus parceiros extrazona (Bolsonaro, 2017). No segundo turno das eleições presidenciais do Brasil em 2018, já como favorito a vencer, ele iniciou uma concertação regional paralela, baseada em afinidades políticas com governos de direita liberal. Contatou os presidentes Mauricio Macri da Argentina, Mario Abdo Benítez do Paraguai, e abriu caminho para uma aproximação com Sebastián Piñera do Chile, construindo assim o embrião do Foro para o Progresso da América do Sul (Prosul), lançado em 2019 com o objetivo de promover o diálogo e viabilizar transações econômicas regionais mais eficientes, pensado para reestruturar a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) (Casarões, 2019).

O único grande avanço do governo Bolsonaro quanto ao Mercosul foi a conclusão do acordo com a União Europeia – mais tarde paralisado pela proposta europeia de protocolo adicional sobre meio ambiente. A partir desse sucesso econômico inicial, passou a trabalhar por uma flexibilização do bloco quanto a acordos bilaterais (Pires; Conssul, 2021). No primeiro turno das eleições argentinas de 2019, Bolsonaro descreveu a expressiva votação de Fernández como um possível retorno de “bandidos de esquerda” (Gullino; Soares, 2019). A situação foi amenizada pelo Itamaraty e pelo vice-presidente, Hamilton Mourão, dando centralidade à aliança estratégica, acima de disputas ideológicas. Contudo, com a vitória de Fernández, o líder brasileiro tornou a fazer duras críticas. Formaram-se duas alas no governo brasileiro quanto ao futuro do Mercosul: uma ligada à presidência da República, defendeu a reversão da participação brasileira no bloco, enquanto a outra, mais pragmática, representada por alguns diplomatas e militares, observava os ganhos estratégicos, políticos e comerciais da permanência brasileira. Desta forma, houve pouco espaço para um regionalismo multifuncional, além da agenda econômica-comercial (Pires; Conssul, 2021).

A plataforma para política externa do governo Fernández compreendeu uma agenda progressista, orientada para a autonomia nacional e regional, bem como a revitalização do Mercosul. Mesmo com os atritos com Bolsonaro, o presidente argentino, em seu discurso de posse, ressaltou a necessidade de construção de uma agenda ambiciosa, criativa e inovadora com o Brasil. A postura argentina quanto ao Mercosul era ambígua, buscando por conciliação de grupos da base de apoio do governo: ao mesmo tempo que buscava proteção da indústria nacional, pretendia promover o fortalecimento do Mercosul (Dominguez, 2020). Como parte da solução encontrada, esteve a defesa de flexibilização de regras comerciais, além de evidenciar a dimensão social do Mercosul. Essa tentativa de trazer um aspecto mais político, incluiu o apoio de adesão à Bolívia, que possuía governo ideologicamente mais próximo ao seu. No âmbito externo, buscou-se também abordagem conciliatória em equilibrar os anseios comerciais de Brasil, Paraguai e Uruguai, com as medidas protetivas argentinas. Conciliatória também no âmbito político, pois os três parceiros experimentavam governos liberais, e antagonizar com o Brasil seria uma iniciativa desnecessária para um país já economicamente fragilizado (Pires; Conssul, 2021).

Com a posse de Lula em 2023, Brasil e Argentina retomaram ideologicamente a mesma página e com isso houve fortalecimento do diálogo, apesar de se manterem divergências, como em relação ao Acordo Mercosul-União Europeia (Yazbek, 2023). Porém, no mesmo ano se sucederam atritos entre Lula e Milei, que assumiu a presidência argentina em dezembro de 2023. Em novembro, Diana Mondino esteve no Brasil para encontro com Mauro Vieira, Ministro das Relações Exteriores, buscando aproximação ao Brasil, apesar das fortes críticas de Milei à Lula ainda na campanha. Como sintoma da fragilização da relação, Lula não participou da posse do líder argentino, tendo enviado Vieira, rompendo uma tradição estabelecida desde a redemocratização com José Sarney e Raúl Alfonsín. Logo nas primeiras semanas de governo, ficou evidente que Milei recuaria quanto à saída argentina do Mercosul, já que não teria apoio do Congresso e geraria custos sobre a indústria automobilística nacional, que se beneficia do mercado brasileiro. Por outro lado, manteve a promessa de campanha de que a Argentina recuaria quanto à adesão ao Brics, agrupamento que tem assumido, sobretudo após a recente expansão, posição antiocidental; perspectiva contraposta às atuais pretensões da política externa argentina (Ferreira, 2024).

Em abril de 2024, Milei fez uma tentativa de reaproximação diplomática, enviando a Lula uma carta em que defendia a necessidade de uma boa relação com o Brasil, mas não surtiu mudança da situação (Taddeo, 2024). Em junho de 2024, Lula afirmou que Milei deveria pedir desculpas por declarações anteriores, e em resposta, Milei disse que não o faria e reiterou as acusações, indicando que não teria mentido sobre o passado de corrupção do PT. No mês seguinte, a Casa Rosada anunciou a participação de Milei na Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC), evento conservador no Brasil com a presença de Bolsonaro. Dessa forma, não esteve presente na Reunião Ordinária e Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul, no Paraguai, enviando Mondino, que na ocasião, ressaltou a necessidade de maior cooperação para o desenvolvimento entre os países membros, promoção e facilitação do comércio, além de medidas para combate ao tráfico de drogas. O governo argentino negou que a ausência de Milei na Reunião do Mercosul tenha ligação com os atritos com Lula, justificando-a como um conflito de agenda. Negaram também apoio do Itamaraty na estadia no Brasil para o CPAC, afirmando que se tratava de viagem privada e não de caráter oficial (Ferreira, 2024).

Nos meses seguintes, manteve-se o clima de tensão na relação bilateral. Em setembro de 2024, Milei repostou em rede social mensagens que classificam Lula como um ditador, pelo bloqueio do Supremo Tribunal Federal ao X (antigo Twitter) em território nacional. No entanto, as tensões internas da Venezuela relativas ao processo eleitoral abriram um novo capítulo na relação entre Brasil e Argentina. Em março de 2024, a Venezuela emitiu ordens de prisão contra seis opositores do presidente Maduro, que buscaram asilo na embaixada argentina. Em 29 de julho, Maduro declarou vitória nas eleições, contestada por Milei, que o acusou de fraude pelas múltiplas restrições impostas à oposição e retenção dos boletins de urna. Na sequência, o governo venezuelano expulsou diplomatas de países que questionaram a eleição, incluindo a Argentina, que pediu ao Brasil para representar seus interesses na Venezuela. A resposta do Itamaraty foi positiva, assim, em 1º de agosto de 2024 o Brasil oficialmente assumiu funções diplomáticas da Argentina na Venezuela, situação que tem por único precedente a representação dos interesses argentinos no Reino Unido durante a Guerra das Malvinas de 1983. Em setembro, o governo venezuelano cercou a embaixada com militares, cortou o fornecimento de energia e revogou a custódia brasileira, medidas tomadas em descumprimento às Convenções de Viena sobre Relações Diplomáticas e sobre Relações Consulares (Barbosa, 2024b). Em poucos dias foi retirado o cerco, o que abriu margem para uma mediação da situação pelo Brasil. Esta não foi a primeira vez que a diplomacia brasileira interveio em favor da Argentina em 2024, tendo atendido pedido de ajuda em maio, agilizando carregamento de gás natural da Petrobras, para evitar colapso energético no país vizinho.

Em nova tentativa de apaziguação das tensões, Milei enviou carta a Lula em 18 de setembro, indicando que aceita convite para participar da reunião do G-20 em novembro no Rio de Janeiro (Taddeo, 2024).  O evento representa uma aposta de Lula em reforçar a liderança regional brasileira e a oportunidade de anunciar uma resolução das negociações com a União Europeia. Além da situação na relação bilateral dos seus principais países, o Mercosul enfrenta outros sinais de fragilização. Pode-se citar: o distanciamento do Uruguai ao não assinar comunicados finais dos encontros de presidentes e ao divergir sobre a flexibilização para acordos bilaterais, defendida por ele, mas rejeitada por Brasil e Argentina, que preferem preservar as negociações em bloco; a adesão da Bolívia ao Mercosul, que exige ajustes internos em quatro anos, também gera incertezas, pois não há indicações de que o país cumprirá essas obrigações, apesar de seguir participando dos encontros; por fim, a política externa de Lula, acrítica à falta de democracia e aos agravos aos direitos humanos na Venezuela, além da defesa do retorno de Caracas ao bloco, em descumprimento ao Tratado de Ushuaia, que explicita contradição entre a ideologização e a partidarização da diplomacia brasileira e os interesses nacionais (Barbosa, 2023).

As aproximações entre Brasil e Argentina, irregulares até os anos 1970, intensificaram-se e se mantiveram constantes desde a década seguinte, independentemente do regime político ou da situação econômica, indicando uma mudança de relação conjuntural para estrutural (Candeas, 2005). Os enfrentamentos desde 2019 no eixo bilateral, ainda durante a campanha de Fernández, representam um abalo conjuntural relevante, que não deve ser menosprezado, mas possivelmente sem grandes custos em nível estrutural, tanto pela relevância comercial de um para o outro em diferentes setores estratégicos, quanto pelas diferentes sinalizações políticas recentes, como a mediação brasileira na crise com a Venezuela. Neste cenário, a visita de Milei ao Brasil em novembro, junto ao tom mais conciliador da chancelaria argentina, consiste numa oportunidade de superar a tensão, mesmo com a manutenção de múltiplas divergências. Esses enfrentamentos têm repercutido no Mercosul como fragilização e imobilismo do bloco, mas, considerando os recentes avanços mencionados, tendem a representar, ao longo da história, de forma análoga à teoria de Puig (1984) sobre os movimentos pendulares da política externa argentina, um período de incongruência epidérmica, e não uma ruptura da coerência estrutural na relação bilateral e seus desdobramentos na integração regional.


Referências

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Escrito por

José Paulo Silva Ferreira

Mestrando em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Federal de Goiás (UFG), na linha de Política Internacional, com bolsa CAPES. Pesquisador Assistente do Núcleo de Estudos Globais da UFG e do Observatório de Regionalismo (ODR). Atua nas áreas de Integração Regional, História da Política Externa Brasileira e Economia Política Internacional. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1208938060850174.