Imagem por Aljazeera.

Nos últimos anos, Myanmar, conhecido também como ”Birmânia”, passou a receber atenção midiática e acadêmica, diante da intensificação, em 2012, da limpeza étnica do povo muçulmano Rohingya localizado, em sua maioria, no Estado birmanês de Rahkhine. Diante da atuação militar e de atos xenofóbicos por parte da maioria populacional budista, somados à inação do governo eleito democraticamente em 2015 e à administração da Conselheira de Estado Aung San Suu Kyi1) Em 2016, após a vitória do partido Liga Nacional pela Democracia nas eleições livres de 2015, o cargo de Conselheira de Estado foi criado para que Aung San Suu Kyi, maior símbolo do partido, pudesse atuar no governo. Essa decisão foi vista como uma alternativa necessária à restrição da Constituição de Myanmar de 2008 que impediu Aung San Suu Kyi de concorrer ao cargo de presidente por ser casada com um estrangeiro., estima-se que 900.000 Rohingyas estejam vivendo em campos de refugiados em Bangladesh. Todavia, em meio à pandemia do Covid-19, os holofotes para Myanmar seriam direcionados para o golpe militar efetivado no dia primeiro de fevereiro de 2021. Diante disso, os objetivos deste artigo são depreender os efeitos do golpe militar de 2021 em Myanmar e analisar sua repercussão no regionalismo asiático, considerando as atuações da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), China e Japão frente à instabilidade democrática birmanesa.

Como um primeiro passo, vale fazer uma rápida introdução de Myanmar, país localizado no Sudeste Asiático e lar de mais de 130 etnias diferentes (Imagem 1). Desde 1948, Myanmar conquistou sua independência da Grã-Bretanha e manteve-se como uma república até 1962. No entanto, com a instauração da ditadura birmanesa em 1962, membros do Tatmadaw – Exército Nacional – foram os detentores do poder político até 2011. Somente em 2011 iniciaram-se processos para uma transição democrática no país e eleições livres foram realizadas em 2015. Dessa maneira, são muito recentes os vestígios do passado militar em Myanmar, assim como o processo de fortalecer as estruturas democráticas no país.

Imagem 1: Localização de Myanmar. Disponível em Britannica.

Em novembro de 2020, eleições nacionais foram sediadas em Myanmar. Como resultado do voto popular, constatou-se a grande vitória do partido civil Liga Nacional pela Democracia que angariou 83% dos assentos disponíveis a civis no Parlamento2)Conforme a Constituição de Mianmar de 2008, 25% dos assentos do Parlamento são reservados aos militares. Dessa maneira, em 2020, dentro das 75% de vagas restantes, o partido Liga Nacional pela Democracia conquistou 83% do total de vagas destinadas aos políticos civis., além de eleger como representantes nacionais Aung San Suu Kyi, conhecida como a “Dama” e símbolo da luta pela democracia do país, ao cargo de Conselheira de Estado e U Win Myint ao posto de presidente. No entanto, em diversos momentos, os militares passaram a contestar a legitimidade das eleições, inclusive advertindo, em janeiro de 2021, realizar um golpe de Estado, embora a comissão eleitoral nacional tenha certificado que não houve fraudes arbitrárias substantivas.

Cumprindo sua ameaça, no dia primeiro de fevereiro de 2021, o Tatmadaw empreendeu um golpe militar ao ocupar o Parlamento birmanês com o intuito de impedir a oficialização da posse dos novos integrantes do governo e prender a ganhadora do Nobel da Paz de 1991, Aung San Suu Kyi, e U Win Myint. Ademais, também foram apanhados membros do gabinete, chefes ministeriais, ativistas, escritores e atores políticos da ala oposicionista ao exército. A partir disso, o Tatmadaw estabeleceu um Estado de Emergência comandado pelo governo militar com duração prevista de um ano. Essa atuação foi justificada juridicamente pelo artigo 417 da Constituição de 2008 (MYANMAR, 2008), escrita pelos próprios militares, que determina a necessidade de um Estado de Emergência caso a soberania nacional esteja em risco, permitindo, em conformidade ao artigo 418.a, que as forças armadas administrem a nação. A frágil relação político democrática entre Aung San Suu Kyi e Min Aung Hlaing, líder dos militares e do novo governo temporário, enfim se arrebentou.

Inicialmente, Tatmadaw determinou o fechamento de aeroportos internacionais e de rotas terrestres para a capital, Naypyidaw, além de restringir de forma abrupta e intensa o acesso à internet e o funcionamento de redes de telecomunicações. Em contrapartida, a população birmanesa se manifestou de diversas maneiras, demandando o retorno de Aung San Suu Kyi, carinhosamente chamada por muitos de “Mãe Kyi”, ao poder e a restauração da democracia. As mobilizações se caracterizaram desde movimentos pacíficos marcados pela greve de funcionários do governo em áreas estratégicas, tais como de transporte e serviços médicos e, também, por manifestações nacionais com grande participação popular, até atuações mais conflituosas como a união de guerrilhas de diferentes grupos nacionais contrárias ao golpe. Porém, até mesmo as manifestações pacíficas foram suprimidas pelo exército.

A escalada de conflitos entre manifestantes e militares resultou em circunstâncias nefastas com derramamento de sangue. Até maio de 2021, além de milhares de feridos, foram reportadas cerca de 818 mortes, prisão de mais de 5.000 indivíduos, dentre eles muitos ativistas, e a condenação à morte de 20 pessoas. Nesse mesmo período ocorreu um fluxo migratório de 2.300 refugiados em direção à Tailândia e, entre 4.000 e 6.000 pessoas em busca de refúgio na Índia; e, por fim, houve o deslocamento irregular, diante de tamanha violência, de cerca de 250.000 cidadãos em território nacional. Ademais, suprimindo a liberdade de expressão, o Código Penal foi expandido para considerar como crime, críticas à Junta Militar, permitindo prisões de cidadãos sem a obrigatoriedade de um mandado, ao passo que a Lei de Transações Eletrônicas censurou e criminalizou a divulgação de manifestações virtuais contrárias ao golpe.   

Imagem 2: Resistência da população birmanesa. Disponível em United States Institute of Peace.

Perante tamanha instabilidade, o regionalismo asiático atuou de diversas maneiras, mas nenhuma de forma rápida e incisiva que possibilitasse o fim dos conflitos domésticos birmaneses. Entre os 10 integrantes da ASEAN, organização internacional que Myanmar faz parte desde 1997, apenas Singapura, Malásia, Indonésia e Filipinas condenaram a onda de violência causada após o ato militar. Ademais, Singapura não reconheceu o Tatmadaw como governo oficial birmanês. Por outro lado, membros como Tailândia, Vietnã e Laos participaram oficialmente da parada realizada por Min Aung Hlaing em comemoração ao “Dia de Tatmadaw” em 27 de março. Enquanto Brunei optou pela neutralidade por estar residindo o cargo rotativo de presidente da ASEAN, Camboja aproveitou de forma estratégica o foco internacional em Myanmar ao não tomar uma posição oficial, haja vista a tentativa de implementação pelo primeiro-ministro Hun Sen de um Estado de Emergência cambojano em 2020 para a acumulação de seus poderes3)No dia 31 de março de 2020, devido ao aumento de infecções por Covid-19, o primeiro-ministro cambojano Hun Sen declarou planos em declarar um Estado de Emergência. Sua proposta foi aprovada já em abril pela Assembleia Nacional e pelo Senado. Todavia, mediante críticas nacionais e internacionais somadas ao controle da pandemia no país, no segundo semestre de 2020 decidiu-se não ser necessária a implementação dessa normativa. A insegurança reside na dúvida de quais medidas serão realizadas, caso a pandemia se intensifique no país.. Nesse espectro de posturas estatais divergentes, a ASEAN, cujas medidas só são efetuadas mediante consenso, tardou em agir na questão birmanesa.

Em virtude da contínua hostilidade de Tatmadaw contra a população birmanesa, a inação da ASEAN estava custando à sua reputação internacional e influência regional, assim como à legitimidade dos seus princípios democráticos e de defesa dos direitos humanos. Consequentemente, no dia 24 de abril de 2021, em Jakarta, os representantes dos países membros da organização, incluindo o líder militar Min Aung Hlaing, se reuniram para deliberar sobre Myanmar. Como resultado, a ASEAN aprovou um documento com 5 pontos de consenso, sendo eles: 1) o fim imediato da violência em Myanmar por parte de todos os atores nacionais; 2) a necessidade da promoção do diálogo em busca de uma solução pacífica; 3) a contribuição do secretário-geral e de um enviado do presidente da ASEAN para o processo de diálogo; 4) o encaminhamento de assistência humanitária pela organização;  e 5) o envio de um funcionário especial e uma delegação até Myanmar para se encontrar com os atores interessados na questão.  

Em sua abrangência, o acordo possui pontos fracos que não encaminham à resolução, ou até mesmo interrupção, das revoltas em Myanmar. Dentre eles, podemos listar a inexistência de um prazo limite e de pressões institucionais para que os pontos de consenso sejam aplicados; a falta de deliberações sobre os ativistas e políticos mantidos em cárcere, assim como a libertação de Aung San Suu Kyi e U Wim Myint que estão em prisão domiciliar; nenhum representante popular ter participado das negociações; e, também, a inexistência de prerrogativas que determinem o retorno da democracia e posse oficial dos políticos eleitos. 

Diante do “ASEAN Way”, processo de tomada de decisão baseado no consenso e na não interferência em assuntos domésticos, a organização limita sua capacidade em coordenar uma gama de normativas regionais mais incisivas que poderiam ser efetivas na resolução de conflitos (TOBING, 2018). Apesar do esforço do bloco, a repressão militar continua presente em Myanmar.

Similarmente à ASEAN, a maior potência regional asiática, a China, preza por não intervir na soberania doméstica de outras nações. Dessa maneira, após a subida de Min Aung Hlaing ao poder, Wang Wenbin, porta voz do Ministério das Relações Exteriores da China, ressaltou que ambas nações são aliadas e que a instabilidade birmanesa deveria ser resolvida através do diálogo entre os diferentes grupos de Myanmar com respeito ao aparato legal do próprio país. Além disso, um grande exemplo do pragmatismo diplomático chinês foi a declaração do dia 15 de fevereiro, na qual o embaixador chinês em Myanmar destacou que tanto a Liga Nacional pela Democracia quanto o Tatmadaw possuem relações amigáveis com a China. De fato, semanas antes da atuação militar birmanesa, Aung San Suu Kyi e Min Aung Hlaing receberam, individualmente, visitas oficiais do ministro das Relações Exteriores, Wang Yi. Até o momento, a China não reconheceu a ação do Tatmadaw como golpe de Estado.

Parte dos esforços chineses em manter laços com ambos os grupos birmaneses e, após fevereiro de 2021, reafirmar a coexistência pacífica bilateral foram reflexo do caráter estratégico de Myanmar na grande aposta chinesa conhecida como Belt and Road Initiative, ou Nova Rota da Seda. Nesse sentido, vale destacar que a China possui projetos de infraestrutura de alto investimento em Myanmar, tais como a zona econômica especial Kyaukphyu, estrada de ferro Muse-Mandalay, três áreas de cooperação econômica fronteiriça, construção de hidrelétrica e o desenvolvimento da capital Yangon com parques industriais e esquema de planejamento urbano. Independente de seu peso econômico como principal parceira econômica de Myanmar, a tendência é que a China se adapte à nova conjuntura birmanesa marcada pela crise política, mas, também, pelo interesse do Tatmadaw em continuar a cooperação bilateral.

Desde a Ásia Oriental, outra importante nação para o regionalismo asiático assumiu posição perante o cenário birmanês, o Japão. A relação nipô-birmanesa remete às décadas de 1980 e 1990, período em que o Japão se constituiu como principal investidor internacional de Myanmar, dinamizando a economia birmanesa, enquanto desejava afastar esse país da influência chinesa (SUDO, 2002). Perante o ato de Tatmadaw no início de fevereiro, no mesmo dia, o ministro das Relações Exteriores, Toshimitsu Motegi, divulgou em nota oficial a preocupação japonesa com o desmantelamento democrático birmanês, demandando a soltura de todos os presos políticos, incluindo Aung San Suu Kyi, e, após ressaltar o suporte nipônico ao processo de democratização birmanês, o retorno do sistema democrático de Myanmar. Dois dias depois, o Japão acompanhou o posicionamento do G7, considerando a atuação militar um golpe de Estado e requerendo o fim imediato do Estado de Emergência.

Entretanto, medidas mais robustas tardaram a ser empregadas, tendo em vista o receio japonês de que suas pressões, ou possíveis sanções, direcionassem Myanmar para a esfera de influência chinesa. Ademais, diversas empresas manufatureiras japonesas, que permitiram também a implementação de um novo mercado japonês, se instalaram no território birmanês. A suposição de afastamento nipô-birmanês colocaria em cheque anos de esforços econômicos, geopolíticos e diplomáticos. Somente em abril, o Japão, segundo maior investidor asiático de Myanmar, determinou o cancelamento de um pacote de assistência econômica ao redor de US$ 930.000, porém sem declarar se o envio seria suspenso por um período de tempo ou permanentemente.

Em face do exposto, detectou-se que as ações adotadas pela ASEAN, China e Japão no âmbito do regionalismo asiático não contribuíram, até então, de maneira efetiva para a resolução da questão de Myanmar, embora esses atores tenham grande peso na região. Diante de limitações institucionais próprias, a ASEAN carece de normativas que permitam à organização maior efetividade em assuntos domésticos de direitos humanos e desmantelamento democrático, mesmo que em níveis latentes. Assim como ocorreu durante a limpeza étnica do grupo Rohingya por Myanmar, as deliberações da organização não estão sendo capazes de atenuar o confronto doméstico birmanês, nem alcançar as demandas da população birmanesa contrária ao Estado de Emergência. 

Ante a atuação da China, destacou-se o alto pragmatismo e a reafirmação das relações amigáveis sino-birmanesas, independentemente de quem esteja no poder em Myanmar. O interesse chinês é que a antiga Birmânia consiga se estabilizar para que os projetos infraestruturais não sejam afetados negativamente. Caso o sejam, a China pode tomar uma posição mais firme, mas sempre respeitando seu princípio de não intervenção doméstica. Por fim, constatou-se que o Japão foi rápido em reconhecer o movimento de Tatmadaw como golpe de Estado e demandar o retorno da democracia ao país. No entanto, até final de abril, a sua prontidão se ausentou de medidas mais rígidas conforme a instabilidade birmanesa foi crescendo. Às custas de todas as decisões apresentadas, o regionalismo asiático pode não conseguir salvar Myanmar de se tornar país instável e fragmentado marcado pela perpetuação de conflitos, inclusive com mortes, entre Tatmadaw e a população birmanesa.

Referências Bibliográficas

MYANMAR. Myanmar´s Constitution of 2008. 2008. Disponível em: https://www.constituteproject.org/constitution/Myanmar_2008.pdf?lang=en. Acesso em: 24 maio 2021.

SUDO, Sueo. The international relations of Japan and South East Asia: forging a new regionalism. Londres: Routledge, 2002.

TOBING, Dio Herdiawan. The Limits and Possibilities of the ASEAN Way: The Case of Rohingya as Humanitarian Issue in Southeast Asia.The 1st International Conference on South East Asia Studies, 2016, p.148-174, 2018.

Notas   [ + ]

1. Em 2016, após a vitória do partido Liga Nacional pela Democracia nas eleições livres de 2015, o cargo de Conselheira de Estado foi criado para que Aung San Suu Kyi, maior símbolo do partido, pudesse atuar no governo. Essa decisão foi vista como uma alternativa necessária à restrição da Constituição de Myanmar de 2008 que impediu Aung San Suu Kyi de concorrer ao cargo de presidente por ser casada com um estrangeiro.
2. Conforme a Constituição de Mianmar de 2008, 25% dos assentos do Parlamento são reservados aos militares. Dessa maneira, em 2020, dentro das 75% de vagas restantes, o partido Liga Nacional pela Democracia conquistou 83% do total de vagas destinadas aos políticos civis.
3. No dia 31 de março de 2020, devido ao aumento de infecções por Covid-19, o primeiro-ministro cambojano Hun Sen declarou planos em declarar um Estado de Emergência. Sua proposta foi aprovada já em abril pela Assembleia Nacional e pelo Senado. Todavia, mediante críticas nacionais e internacionais somadas ao controle da pandemia no país, no segundo semestre de 2020 decidiu-se não ser necessária a implementação dessa normativa. A insegurança reside na dúvida de quais medidas serão realizadas, caso a pandemia se intensifique no país.

Escrito por

Mauricio Dias

Mestre pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP - UNICAMP - PUC-SP) em Relações Internacionais e bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) com período de mobilidade acadêmica na Universidad de San Buenaventura, Colômbia. Foi estagiário docente na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) em 2021. Na área da pesquisa, é membro do Grupo de Estudos de Índia e Ásia Oriental - GesIAO desde 2016, do Observatório de Regionalismo (ODR) a partir de 2020, assim como, desde 2021, da Curadoria de Assuntos do Japão e do Observatório de Conflitos. Possui como agenda de interesse: política externa do Japão e da Coreia do Sul, xintoísmo, construção de identidade nacional, política de memória, regionalismo e meio ambiente. No Japão, representou o Brasil no programa intercultural do governo japonês denominado como Ship for World Youth (SWY) em 2020 e atualmente é Secretário-Geral da SWYAA Brasil.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4060044353605116
Academia.edu: https://unicamp.academia.edu/Maur%C3%ADcioDias