Na última semana, a #tbt do Observatório relembrou o texto publicado em junho de 2017 acerca do declínio da efetividade da Organização dos Estados Americanos (OEA) frente a crises políticas no continente, especificamente a partir da questão Venezuelana e o pedido de saída do bloco. Na ocasião, abordamos algumas das medidas adotadas pela OEA com relação à democracia nos países membros e, no texto de hoje, daremos continuidade a esta temática, discutindo os mecanismos regionais para a proteção e promoção democrática.

Closa, Palestini e Ortiz (2016, p. 19, tradução nossa) definem como mecanismos para a proteção democrática as “regras e procedimentos formais, semiformais e informais pelos quais as organizações regionais podem intervir em caso de uma potencial crise democrática”. Tais regras e procedimentos, juntamente com outras iniciativas mais amplas, como por exemplo, as missões eleitorais e programas de capacitação, integrariam os mecanismos para a promoção da democracia que podem ser adotados pelas organizações regionais (CLOSA; PALESTINI; ORTIZ, 2016, p. 20).

A presença de tais previsões normativas pode ser justificada de diferentes maneiras, a depender do propósito da organização regional a que se vinculam: tanto podem estar presentes desde sua fundação por fazerem parte dos objetivos principais dos blocos, ou serem mencionadas como princípio da organização, ou ainda podem ter sido adicionadas ao longo dos anos, como forma de incluir tal missão, ou como necessidade de resposta a eventos políticos. Mesmo organizações regionais com objetivos econômicos podem apresentar mecanismos para a proteção e/ou promoção da democracia, devido à associação do conceito de democracia à ideia de estabilidade política, o que favorece o desenvolvimento dos países ao trazer maior segurança às negociações.

No caso das organizações regionais das quais os países da América do Sul participam, tanto a OEA, quanto os pares sub-regionais Mercosul, Comunidade Andina (CAN), Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e a finada UNASUL, ratificaram mecanismos para a promoção e/ou proteção da democracia (ver tabela abaixo). Também organizações europeias e africanas estão dotadas de instrumentos similares, como por exemplo o disposto no Tratado de Lisboa da União Europeia, ou a Carta Africana sobre Democracia, Eleições e Governação da União Africana.

 

Quadro 1- Organizações regionais e mecanismos de proteção democrática

Organização (ano de criação) Mecanismo de Proteção Democrática (ano de estabelecimento)
OEA (1948) Cartagena Convention (1985), Resolution 1080 (1991), Washington Protocol (1992), Inter-American Democratic Charter (2001)
CAN (1969) Additional Protocol to the Cartagena Agreement (1998)
MERCOSUR (1991) Presidential Declaration on Democratic Commitment (1996), Ushuaia Protocol (1998), Montevideo Protocol (2011)
UNASUR (2008) Additional Protocol to the Constitutive Treaty (2010)
CELAC (2010) Special Declaration about the Defence of Democracy and Constitutional Order in CELAC (2011)

Fonte: Adaptado de CLOSA, PALESTINI, ORTIZ, 2016.

 

Uma das formas mais comuns de apresentação formal destes mecanismos é a inclusão das chamadas cláusulas democráticas, na ordem jurídica internacional da organização, através da ratificação de tratados ou protocolos que declaram que os estados parte do bloco devem ser e devem permanecer democracias (CLOSA; PALESTINI; ORTIZ, 2016, p. 20, tradução nossa, grifos do autor). No Brasil, o assunto ganhou bastante notoriedade em 2012, quando o Paraguai foi suspenso do Mercosul em decorrência do impeachment do presidente Fernando Lugo. O bloco entendeu o ato como um golpe de estado e acionou a cláusula democrática para suspender a participação do país afetado até que se restaurassem as condições democráticas exigidas por sua normativa1)Alguns autores apontam que, na ocasião, estava implícito um interesse de através da suspensão do Paraguai, o único país que ainda não havia ratificado a adesão, aceitar a Venezuela como membro pleno do bloco. No entanto, Lugo foi o primeiro presidente não vinculado ao Partido Colorado em mais de 30 anos, e o único a sofrer um impeachment neste período. Assim, a questão tem nuances mais complexas do que a simples decisão de aplicar ou não a normativa.. O mesmo ocorreu com a Venezuela que se encontra suspensa da organização desde 2017.

O Mercosul baseia sua atuação em dois protocolos principais: o de Ushuaia, de 1998 e o de Montevidéu, de 2011, que também é chamado de Ushuaia II. Interessantemente, tais protocolos foram adicionados ao ordenamento após a criação do bloco, e adotados em decorrência de crises políticas concretas: a ocorrência de atentados de golpe de Estado no Paraguai em 1996 e 1999. Suas previsões incluem a aplicação de sanções como a suspensão no direito de participar das instituições da organização, bem como a suspensão de direitos e obrigações dela decorrentes.

As sanções para a proteção da democracia são medidas reativas, mas alguns blocos atuam também preventivamente, na promoção da democracia como mencionamos anteriormente. Um bom exemplo recente para ilustração vem deste último domingo, 18 de outubro, quando se realizaram as eleições presidenciais bolivianas. Na ocasião, a OEA esteve acompanhando o pleito através de uma missão de observação eleitoral, assim como faz regularmente em vários de seus países membros, e emitiu um comunicado reconhecendo a legitimidade da jornada eleitoral e felicitando o povo boliviano. A importância desse reconhecimento internacional se deve ao fato de que o mesmo não ocorreu há um ano atrás nas eleições de outubro de 2019, quando uma auditoria da OEA acusou a Bolívia de manipular dolosamente o pleito, em favor do então presidente, Evo Morales. Como resultado, em meio à instabilidade política, as eleições passadas foram anuladas e Morales terminou por renunciar.

Apesar de sua existência, a aplicação dos mecanismos para a proteção e promoção da democracia não é isenta de problemas, devido à complexidade das crises políticas que ocorrem na região. Mesmo entre as organizações regionais pode haver diferenças de interpretação e aplicação. No caso que mencionamos anteriormente, de suspensão do Paraguai no Mercosul em 2012, o Estado também é membro da OEA e, no entanto, a organização continental não entendeu o impeachment de Lugo como golpe, e não aplicou sanções. Ainda, conforme destacamos no artigo de 2017, a própria OEA teve sua atuação preterida durante os anos de funcionamento da UNASUL, em decorrência de críticas de ingerência por parte dos Estados Unidos na organização e nos países latino-americanos.

De todo modo, o presente artigo buscou apresentar o interesse estabelecido pelas organizações regionais no que se refere à manutenção e construção de instituições democráticas. Em certa medida, é possível questionar e refletir acerca dos interesses das organizações e Estados membros em fazer uso desses mecanismos e a discricionariedade de sua aplicação, conforme o presente texto transpareceu. Ainda assim, tais mecanismos se encontram à disposição dos Estados membros e, se bem utilizados, podem garantir maior segurança e estabilidade para as regiões nas quais se inserem, compartilhando com os blocos regionais a responsabilidade de promover e proteger a democracia.

 

Referências

CLOSA, C.; PALESTINI, S.; ORTIZ, P. Regional organisations and mechanisms for democracy protection in Latin America, the Caribbean, and the European Union. Hamburg: EU LAC Foundation, 2016.

Fonte imagética

Notas   [ + ]

1. Alguns autores apontam que, na ocasião, estava implícito um interesse de através da suspensão do Paraguai, o único país que ainda não havia ratificado a adesão, aceitar a Venezuela como membro pleno do bloco. No entanto, Lugo foi o primeiro presidente não vinculado ao Partido Colorado em mais de 30 anos, e o único a sofrer um impeachment neste período. Assim, a questão tem nuances mais complexas do que a simples decisão de aplicar ou não a normativa.

Escrito por

Clarissa Correa Neto Ribeiro

Doutora e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas - Unesp, Unicamp, PUC SP. Bolsista CAPES, foi pesquisadora visitante no German Institute of Global and Area Studies - GIGA Hamburg, pelo Programa Doutorado Sanduíche no Exterior (CAPES PDSE) e realizou pelo Programa de Escala de Pos Grado da AUGM mobilidade acadêmica de mestrado junto a Universidad de la Republica (Uruguai). Graduada em Ciências do Estado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foi bolsista de Iniciação Cientifica do CNPq. Membro da Rede de Pesquisa em Politica Externa e Regionalismo (REPRI) e do Observatório de Regionalismo (ODR). Interessada em pesquisas sobre regionalismo comparado, atualmente investiga as consequências da proliferação de instituições regionais na África e América do Sul.