A recente ênfase do Brasil no regionalismo hemisférico ganhou novos – e importantes – componentes que sugerem ainda mais a fratura da autonomia enquanto ideia-força regional. A condução do estadunidense Mauricio Claver-Carone à presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), no último dia 12, tanto rompe com uma tradição sexagenária de lideranças latino-americanas no posto quanto reforça as recentes investidas da política externa do governo Jair Bolsonaro (PSL) na busca por aproximação com o governo de Donald Trump. Para endossar apoio ao indicado trumpista no BID, em plena campanha eleitoral à presidência dos Estados Unidos (EUA), o Brasil recuou de uma candidatura própria e endossou a polarização que se instalou no organismo desde o anúncio de Claver-Carone ao pleito, em junho de 2020. 

Neste texto, busco argumentar dois aspectos acerca dessas eleições do BID: que estas refletem mudanças de postura no tocante a espaços regionais e um alinhamento nada recíproco aos Estados Unidos por parte do governo brasileiro; e que a virada ‘pan-americanista’ do governo Trump deve ser entendida sob o pano de fundo do avanço chinês na região e, sobretudo, o ambiente de campanha presidencial estadunidense, cujas eleições estão previstas para ocorrerem no início de novembro. Ambos os fatores, por seu turno, evocam um questionamento fundamental sobre qual deve ser o lugar ocupado pela América Latina no cenário geopolítico atual. Assim sendo, cabe analisar certos aspectos do regionalismo corrente para uma compreensão mais ampliada desse cenário.

Alinhamento brasileiro e o avanço das relações hemisféricas

Em termos sintéticos, o regionalismo hemisférico pode ser entendido como uma escala de atuação regional, de tipo norte-sul, que inclui os EUA e a influência que Washington exerce sobre o escopo, as diretrizes e a agenda dos processos regionais. A Organização dos Estados Americanos (OEA) e o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), simbólicos dessa perspectiva hemisférica, têm sido instrumentos revitalizados nos dois últimos anos pela diplomacia brasileira.  Durante a primeira quinzena do século XXI, contudo, a busca por identidade e autonomia regionais foi expressa em termos práticos por dois componentes principais que convergiam com a atuação exterior do Brasil: (1) a construção da potencialidade regional sul-americana mediante a ampliação e diversificação das áreas de cooperação entre esses Estados e (2) a ênfase na governança regional sul-americana em detrimento do regionalismo hemisférico, considerado obsoleto e pouco concatenado com os anseios dos governos latino-americanos desse período. 

Decorre desse traço que a indicação de latino-americanos a postos estratégicos em instituições regionais (e também globais), em outros momentos, era visto não só como elemento de reforço de uma identidade regional como também um caminho para tornar esses espaços mais representativos das demandas desses países. Além disso, a escolha da presidência do BID correspondeu até então a um ‘acordo tácito’ com o objetivo de balancear o poder de influência em relação a duas instituições de Bretton Woods: as chefias do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional são geralmente reservadas a norte-americanos e europeus, respectivamente, ao passo que o posto máximo do BID é tradicionalmente ocupado por latino-americanos. Por tais motivos, a perspectiva da vitória de Claver-Carone incitou amplas reações internas e externa. Uma petição subscrita por mais de 22 ex-presidentes da América Latina, Europa e Ásia solicitou adiamento das votações por conta do atual cenário de pandemia e as turbulências das eleições presidenciais estadunidenses. Além de liderar essa reação, a Argentina estimulou um movimento de abstenções para o dia da votação.

Ocorre que, ao colaborar com a candidatura estadunidense ao BID, o governo Bolsonaro recuou da indicação do economista Rodrigo Xavier, sugerido pelo ministro da Economia Paulo Guedes, e dispensou a oportunidade de patrocinar um nome latino-americano, no que poderia ser visto como fundamental gesto de aproximação com o entorno regional. Sabe-se que Buenos Aires costuma lançar candidaturas próprias, tal qual ocorrido nos pleitos de 2005 e 2020. Além disso, há precedentes recentes na história diplomática brasileira em que, mesmo em momentos adversos e de improváveis chances de sucesso, como no caso da candidatura do ex-ministro do Planejamento João Sayad à presidência do BID, em 2005, o Brasil optou por marcar presença.

Já os atuais articuladores das relações exteriores do Brasil estão convencidos de que a aproximação incondicional da Casa Branca trumpista, em detrimento de uma atuação mais autônoma, acarretará maiores benefícios ao país. Dados atuais confrontam tal convicção. Do ponto de vista econômico, a afinidade entre ambos os governos não resultou no avanço do comércio bilateral, além de que o saldo da balança comercial do primeiro semestre de 2020 é desfavorável ao Brasil, com queda de mais de 30% nas exportações destinadas aos EUA, o seu segundo maior parceiro comercial (Correio Braziliense, 2020). Além disso, em 2019, o governo Bolsonaro ancorou-se nos ganhos políticos que seriam alcançados por um apoio direto dos EUA à entrada do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Planalto sofreu reiterados reveses nesse suporte por parte do governo Trump, que optou preferencialmente por Argentina e Romênia. Além disso, o presidente Bolsonaro decretou unilateralmente a dispensa da exigência de visto de entrada, no Brasil, a cidadãos de Estados Unidos, Austrália, Canadá e Japão, e cedeu à solicitação do presidente Trump ao abrir mão de tratamento especial e diferenciado na Organização Mundial do Comércio (OMC), que conferia ao Brasil um maior poder de barganha nas negociações comerciais. 

O saldo diplomático desigual para o Brasil figuraria como espécie de infortúnio típico das tratativas bilaterais, não fosse o fato de o Itamaraty sugestionar, por reiteradas vezes, ter participação ativa na promoção dos interesses estadunidenses sobre os nacionais e, muitas vezes, expressar seu contentamento por isto. No último mês, como resultado do que foi considerado pelo presidente Trump um “diálogo construtivo” com o chanceler Ernesto Araújo, os EUA anunciaram um corte de mais de 80% na importação do aço brasileiro nos próximos meses, ao passo que o Brasil aprovou uma renovação exclusiva da isenção tarifária para importação do etanol estadunidense, o qual corresponde a 90% da quantidade anual que aporta no Brasil.

Em meio à corrida pela reeleição presidencial nos EUA, evidencia-se a lógica eleitoral assente nessas tratativas do etanol estadunidense, uma vez que o candidato republicano tem buscado ampliar sua base de apoio nas chamadas corn belts, regiões especializadas na produção de milho, utilizado no combustível em questão. A mesma lógica que explica, em grande parte, a breve passagem por Boa Vista, Roraima, do secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, na última semana. O evento na região de fronteira com a Venezuela causou imediata reação do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM), e de senadores e ex-chanceleres brasileiros, que avaliaram o acontecido como afronta à soberania nacional e, consequentemente, uma violação constitucional

Rumo ao novo pan-americanismo?

O BID, atuante desde 1959, sagrou-se o principal banco regional de financiamento e assistência técnica da América Latina e Caribe, sendo responsável por gerir um montante de mais de 100 bilhões de dólares, com ofertas de créditos anuais de 12 bilhões a iniciativas que visam o desenvolvimento econômico nos países da região. Embora sexagenário, o organismo foi dirigido por apenas 2 mandatários em pouco mais de três décadas.

A gestão do uruguaio Enrique Iglesias (1988-2005) transcorreu em um período crucial de transição para a ordem internacional neoliberal e foi marcada pela missão de integrar a região ao mercado mundial. Por seu turno, os anos iniciais da gestão Luis Alberto Moreno (2005-2020) são marcados por razoável período de estabilidade: a região enfrentou a crise econômica de 2008 de modo relativamente satisfatório (graças ao crescimento econômico e à expansão da renda nos anos 2000 e a adoção de medidas anticíclicas), aproveitou os benefícios da alta de preços das commodities, alinhados com uma agenda de redução da pobreza e incentivos à estabilização política, cujas ações foram mais perceptíveis do que na conjuntura atual. Em 2010, esses fatores fizeram com que Moreno declarasse que os anos vindouros seriam “a década da América Latina e Caribe”.

O cenário atual pouco tem a ver com a excessiva positividade em relação aos rumos do panorama político e social latino-americano do início da década. A nova gestão do BID se inicia em uma conjuntura de convergência de crises (econômica, política, social e sanitária) e da mais aguda recessão econômica da região.

Diante dessa paisagem, o flanco aberto pela candidatura de latino-americanos não deve resvalar em argumento de base nacionalista, que defende a predileção de uma nação sobre a outra, com base em um típico essencialismo da origem do candidato. Fato notório (e pouco lembrado) é que até mesmo o então presidente do BID entre 2005 e 2020, o colombiano Alberto Moreno, recebeu apoio da Casa Branca ao cargo enquanto o mesmo ainda exercia função de embaixador da Colômbia em Washington, fato que ressalta que a miríade de interesses e afinidades compartilhada por esses atores é um elemento um pouco mais complexo.

A questão crucial desse recentíssimo pleito, portanto, pouco tem a ver com as dinâmicas próprias de apoio a candidaturas entre Estados, mas com o fato de que, pela primeira vez na história do BID, o mais alto posto da instituição será ocupado por um assessor direto e conselheiro da presidência, da administração Trump, com o qual nutre estreita afinidade partidária e ideológica sobre assuntos que extrapolam a agenda técnico-comercial e atingem a nebulosa área onde se confundem interesses da instituição regional com os departamento de Estado dos EUA. Entre outros pontos, Claver-Carone coaduna com a ideia de um posicionamento mais incisivo em relação a Cuba e Venezuela, e admite a intenção de Trump de influir nos espaços que a China vem ocupando na América Latina. Ou seja, o que está em jogo na polêmica eleição de Claver-Carone é o fato de que, para além da influência estrutural dos EUA no BID, considerando que seu poder de voto é de 30% enquanto aos demais cabe percentagens muito menores – Argentina e Brasil possuem pouco mais de 10%, ao passo que Chile e Colômbia, aproximadamente 3% de poder de voto -, as possibilidades de regulação de processos por parte dos países restantes são ainda mais improváveis nesse cenário.

Ademais, o novo chefe do BID afirmou sua intenção de promover um novo ‘pan-americanismo’ através de sua gestão. Por razões óbvias, o termo histórico refuta a concepção libertária do bolivarianismo, destinada à união dos latino-americanos frente à dominação estrangeira do século XIX, e assume a conotação próxima ao do monroísmo, cunhada na perspectiva estadunidense de tornar o subcontinente uma zona sob influência direta dos EUA.

Por fim, as opções governamentais atuais e a crise do regionalismo na América Latina distanciam o Brasil de um viés autonomista, ou seja, a ideia de que os Estados se valem do regionalismo e das relações associativas de modo geral com a finalidade de maximizar seu poder decisório em meio a um sistema internacional marcado pela concorrência assimétrica centro-periferia. Na contramão desse pressuposto, o saldo da política externa do governo Bolsonaro vem colocando o país em posição de um alinhamento quase incondicional a Washington (Menezes, 2019). Assim sendo, se o reforço do viés ‘pan-americanista’ representado pela vitória presidencial do BID converge com as atuais afinidades de governo entre o Planalto e a Casa Branca, o benefícios potenciais para o Brasil, sob o ponto de vista dos interesses de Estado no médio e longo prazo, são amplamente questionáveis. 

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Referências

CORREIO BRAZILIENSE, ‘Alinhamento do Brasil aos EUA não favoreceu balança comercial brasileira’, 20/07/2020.

MENEZES, Roberto Goulart. Governo Bolsonaro: a busca de ‘relações carnais’ com os Estados Unidos de Trump?. Boletim Lua Nova, São Paulo, p. 1 – 5, 03 abr. 2019.

 

Escrito por

Lucas Eduardo Silveira de Souza

Bacharel em Relações Internacionais (Unesp) e Mestre em Relações Internacionais (UnB). Área de interesse: América do Sul, regionalismo sul-americano, Unasul, integração regional e política externa brasileira.