Foto: Presidente uruguaio Luis Alberto Lacalle Pou tira foto com apoiador. Fonte: Wikimedia Commons

Como defende o historiador Gerardo Caetano (Espectador, 2023), o Uruguai é um país tomador de regras. Seu tamanho bastante modesto e seu peso econômico e político regional são condições que o deixam em tal posição. Suas figuras políticas historicamente não negam tal condição e atuam baseados nela, a despeito de sua ideologia ou partido. 

Cientes dessas limitações, tanto presidentes do Partido Colorado e do Partido Nacional (popularmente conhecido como “blanco”), atuaram para que o país participasse das iniciativas de integração regional nascentes, sobretudo, com os dois gigantes vizinhos, Brasil e Argentina. Julio Maria Sanguinetti (1985-1990), presidente colorado, observou atentamente a aproximação entre a Argentina de Raúl Alfonsín (1983-1989) e o Brasil de José Sarney (1985-1990), predispondo-se a participar futuramente de futuras iniciativas no mesmo sentido. Com a integração regional no Cone Sul tomando contornos mais práticos e efetivos a partir da conformação da Ata de Buenos Aires (1990), sob a batuta dos presidentes Fernando Collor de Mello (1990-1992) e Carlos Menem (1989-1999) no Brasil e na Argentina, respectivamente, Luís Alberto Lacalle Herrera (1990-1995), presidente “blanco”, soube encaixar o Uruguai dentro da dinâmica e impulsionar a criação do Mercosul –  junto dos demais e do Paraguai de Andrés Rodriguez.

É a Lacalle Herrera que se atribui uma frase que sintetiza não só a posição do Uruguai  enquanto país tomador de regras mas também a importância de aproveitar-se do tamanho de seus dois vizinhos: “Rodeado por estos dos grandotes, el Uruguay debe ser como perro chico: cusco y ladrador” (em português: rodeado por esses dois grandalhões, o Uruguai tem de ser como cachorro pequeno: sem pedigree e “latidor”).

Mais recentemente, a condição de pequeno e tomador de regras, no entanto, face à resistência dos dois gigantes a negociações com sócios extrarregionais, vem para justificar o projeto de flexibilizar o Mercosul e poder integrar-se a acordos de comércio com gigantes mundiais, em especial, a China. Dentro do país da banda oriental, com o fim de tirar o máximo proveito de suas vantagens comparativas no mercado mundial, tem crescido os debates sobre a possibilidade da conformação de um acordo de comércio preferencial (ACP) com o gigante asiático em detrimento do bloco comercial do Cone Sul – e de sua tarifa externa comum – desde o início do mandato de Luis Lacalle Pou (2019-atualmente).

 Tendo em vista as eleições que ocorrem no país em outubro de 2024, o debate sobre a que polo comercial vincular-se preferencialmente – ao regional ou chinês – tem sido um tema constante. Mas, afinal, quais são as propostas e os posicionamentos das forças políticas que disputam a presidência do país? Ademais, quais são as possibilidades reais de que o país venha a tomar medidas claras em direção a uma flexibilização da relação com o Mercosul?

Comecemos pelos candidatos da coalizão oficialista. O atual governo de Lacalle Pou é formado por uma coalizão conservadora, que tem os tradicionais partidos Colorado e Nacional e o recém-criado Cabildo Abierto (CA) –  partido fundado pelo ex-comandante das Forças Armadas, Guido Manini-Rios, e apontado como de direita radical (Caetano, 2023) ou extrema-direita (Larrouquet 2020) –  e o Partido Independiente.

Como a reeleição está vedada pela legislação eleitoral uruguaia, o Partido Nacional, do presidente Lacalle Pou, teve de selecionar um sucessor por meio de eleições internas, já bastante consolidadas no Uruguai. A candidata batida nas internas, a economista Laura Raffo, se pronunciou a favor do “downgrade” no âmbito do Mercosur, propondo uma transformação do país em  mero membro-associado ao bloco para não estar sujeito à sua política comercial comum, com menções no tratado de Assunção (1991) e no protocolo de Ouro Preto (1994) e consolidado na resolução 32/00 de 2000. Vencedor das internas com apoio do atual presidente, o ex-secretario da presidência da república Àlvaro Delgado é claro em seu programa de campanha ao dizer que em sua possível gestão “buscar-se-á avançar negociações com o objetivo de concluir uma Aliança de Comércio Livre” (Delgado, 2024, p.45) bilateralmente com a China. Ademais, embora também insista que é necessário avançar com o Mercosul em sua agenda de negociações externa, em especial, UE, EFTA, Japón, Canadá, Vietnam, Indonesia (Delgado, 2024), afirma categoricamente que o bloco é  “uma zona de livre comércio”  – e não uma União Aduaneira que de fato é desde o estabelecimento em 1995 da Tarifa Externa Comum –e o seu país está sim em condições de “negociar com terceiros e, por conseguinte, continuar a procurar acordos comerciais” (Delgado, 2024, p.49).

O outro partido que compõe a coalizão com chances de atrair maior quantidade de votos à coalizão multicolor no segundo turno é o Partido Colorado. Sua candidatura é capitaneada pelo advogado e ex-vereador de Montevideo Andrés Ojeda. Em seu programa, defende-se claramente: “Um novo Mercosul que nos abra ao mundo: Propor um Mercosul sincero e uma flexibilização das regras para que o nosso país possa recuperar a sua soberania comercial e negociar com base nos seus interesses comerciais fundamentais para o desenvolvimento económico. O nosso objetivo é assinar o maior número possível de acordos comerciais vantajosos para abrir o comércio, através da integração em novos blocos, de acordos bilaterais e da redução das taxas aduaneiras para os nossos produtos e serviços” (Ojeda, 2024). Tal flexibilização teria evidentemente um alvo em concreto, dentro os quais se cita, ademais da União Europeia, Estados Unidos – e claro – China.

Do lado da oposição, o candidato da centro-esquerda, o frente-amplista e governador do departamento de Canelones Yamandú Orsi já afirmou que um acordo com o gigante asiático só seria possível dentro do marco do Mercosul – fazendo eco a posição histórica do partido (Burián e Miguez, 2021). Afirmou ainda que, embora também queira aproveitar das vantagens comparativas do seu país no setor agropecuário, não deseja entrar no meio de “uma guerra comercial” entre Estados Unidos e China, querendo ver ambos como possibilidades de aliança político-econômica. Nesse sentido, declara que é necessário continuar mantendo o vínculo com seus vizinhos regionais, mas também aberto às potências globais. Ele mesmo sintetiza: “O Uruguai não tem muitas oportunidades para além de continuar a vender as suas matérias-primas, de continuar fortemente ligado ao Brasil e à China. A possibilidade de os Estados Unidos olharem um pouco mais para o Rio da Prata poderia ser outra via para nós, porque no mundo de hoje, se nos fecharmos numa ou duas opções, podemos ficar presos numa armadilha.” (Ambito Financiero, 2024).  

Sabendo dos posicionamentos dos atores políticos principais nessa disputa presidências, ainda nos resta a pergunta: qual a possibilidade de que o Uruguai consiga pressionar de modo exitoso à flexibilização do Mercosul? A resposta a semelhante questão passa por duas dimensões.

A primeira é a eleitoral. Isto é, quais são as chances de que os atores mais proclives à posição liberalizante ganhem? No momento, a disputa presidencial está favorável ao Frente Amplo, que goza de uma vantagem de cincos porcentuais frente à porcentagem de votos da coalizão multicolor – 45% contra 40% (El Observador, 2024). De todo modo, nada está decidido e muito ainda pode mudar até o cenário de outubro.

Assim, caso haja de fato o provável cenário de segundo turno entre Delgado e Orsi e o primeiro saia vitorioso, nos cabe ir à segunda dimensão necessária para responder nossa pergunta. Isto é, qual é o real poder do Uruguai para promover uma flexibilização unilateral das normas do Mercosul e ir em direção a um ACP com a China?

A verdade é que país platino tem pouca margem de manobra nesse sentido. Como definem Caetano e Pose (2024, p.14), a razão é bastante simples: “Mercosul ainda importa”. Analisando dados de comércio de 2023[1], o Brasil voltou a ultrapassar a China como maior sócio comercial do Uruguai. O país asiático havia superado o Brasil em 2015 e, desde então, foi o maior sócio comercial uruguaio até o ano passado. Em 2023, o Brasil comprou USD 1.8 bilhões em bens do Uruguai, enquanto o parceiro asiático chegou a marca de USD 1.5 bilhões. Se somarmos o valor dos bens uruguaios exportados a Brasil e Argentina em 2023, chegamos a marca de USD 2.6 bilhões. Ademais, como apontam Caetano e Pose (2022), enquanto o comércio com a China está concentrado somente em 5 produtos (cerca de 84% do comércio) e em 10 empresas (que detém entre 45 e 47% das importações à China), o comércio com o Mercosul é muito mais diversificado tanto em termos de produtos quanto em termos de firmas. Para alcançar, por exemplo 84% das exportações uruguaias ao bloco do Cone Sul, seriam necessários 56 produtos, segundo os mesmos autores.

Ao fim e a cabo, como também observam Caetano e Pose (2024), o debate sobre a flexibilização do Mercosul e o ACP com a China segue vivo por sua atratividade em termos de economia política. Por um lado, o grande e poderoso setor agropecuário, interessado em aumentar suas exportações ao seu maior comprador, a China, o mantém vivo com ajuda de seus apoiadores mais vocais na centro-direita. Simultaneamente, ele também tenta pontes com a centro-esquerda, que por sua vez, ao final, resigna-se a buscar o cenário mais favorável político e comercialmente ao país da banda oriental: buscar um tratado com a China, mas evitando retaliações dos seus igualmente importante sócios regionais e buscando a negociação via Mercosul. Por outro, a modesta indústria uruguaia não se opõe formalmente a qualquer tipo de tratativa com a potência asiática. Deste modo, o Uruguai se encontra na curiosa posição em que o falatório em relação a um ACP unilateral com China é certo, mas a possibilidade de avançar nessa direção é extremamente pequena – e quase nula, no curto e médio prazo.

Bibliografia

Ámbito. (2023, outubro 21). Orsi quiere de aliados a Estados Unidos y a China, sin entrar en la guerra fría comercial. Ámbito. https://www.ambito.com/uruguay/orsi-quiere-aliados-estados-unidos-y-china-entrar-la-guerra-fria-comercial-n5851942

Burián, C. L & Miguez, M. C. (2021). “Uruguay como estado pequeño en el Mercosur (1991-2020): una lectura desde la autonomía regional”. Em: Lua Nova, São Paulo, 112: 181-216

Caetano, G. (2023). Novedades y radicalidad de las «derechas alternativas» en el Uruguay reciente: El caso de Cabildo Abierto. Estudios-Centro de Estudios Avanzados. Universidad Nacional de Córdoba, (49), 29-54.

Caetano, G. & Pose. N (2024). “La búsqueda de la flexibilización de Mercosur: impulsos y límites de la demanda uruguaya”. Em: Civitas 24: 1-14, jan.-dez.

El observador (29 de julho de 2024). Monitor de encuestas de las elecciones 2024 en Uruguay: qué dicen las primeras mediciones de Cifra y Opción después de las internas. Disponível em: https://www.elobservador.com.uy/nacional/monitor-encuestas-las-elecciones-2024-uruguay-conoce-una-una-las-principales-mediciones-n5945989

Entrevista a Gerardo Caetano: La crisis de 2002 hay que narrarla mucho más, es un relato en disputa. (2023, agosto 7). Espectador. https://espectador.com/mastemprano/entrevista/la-crisis-de-2002-hay-que-narrarla-mucho-mas-es-un-relato-en-disputa

Larrouqué, D. (2020). Elecciones en Uruguay: derrota del Frente Amplio y autonomización de la extrema-derecha. Les Études du CERI, (245-246), 80-82.

[1] Consultados a partir dos dados da ferramenta Trade Map do Internacional Trade Center (ITC). Disponíveis em: https://www.trademap.org/

Escrito por

José Victor Ferro

Graduado e licenciado em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo(USP). Mestrando em Estudos Latino-americanos e bolsista da União Europeia do programa LAGLOBE (Latin America and Europe in a Global World), formado pela Universidad de Salamanca (USAL), Stockholm University e a Université Paris 3-Sorbonne-Nouvelle. Atualmente, escreve na Universidade de Estocolmo sua tese de mestrado sobre modelos de desenvolvimento e política externa de Brasil e Argentina vis-à-vis o acordo de associação Mercosul-UE. Tem experiência profissional em instituições diplomáticas (Embajada de Uruguay para Suecia, Dinamarca, Noruega e Islandia) e multilaterais (Fundación EU-LAC).