Fonte das imagens: Parlamento do Mercosul (2012) e Carta Capital (2012)

Nos estudos sobre o Mercosul, grande parte da produção versa sobre o caráter intergovernamental do bloco, seja para descrevê-lo, ou para prever suas dinâmicas. Não importa o tema a ser tratado, o caráter intergovernamental é frequentemente citado como causa ou como consequência do fenômeno descrito. Juntamente a essa contextualização, é frequente encontrá-las acompanhadas de comparações com o processo decisório  supranacional, adotado pela União Europeia. Esses debates costumam argumentar o processo decisório intergovernamental  por vezes como favorável ao processo de integração do Mercosul (MALAMUD, 2003),  ou desfavorável ao processo de integração do Mercosul (FURLAN, 2010), além de questionarem se a possibilidade de adoção da supranacionalidade existe. No entanto, o que existe além dessa dualidade? Quais foram as tentativas concretas, no Mercosul, de se alterar o processo decisório e quais foram suas repercussões?

O presente artigo pretende trazer uma reflexão sobre as tentativas concretas de alteração de como o processo decisório ocorre no Mercosul, esquivando-se da dualidade “intergovernamental versus supranacional”. Para isso, são trazidas as experiências da Comissão dos Representantes Permanentes do Mercosul (CRPM), do Alto Representante Geral do Mercosul (ARGM), e do Grupo Ad Hoc de Alto Nível para a Reforma Institucional (GANRI). Na conclusão, são apontados os motivos pelos quais essas iniciativas foram abandonadas, mantendo o processo decisório no Mercosul imutável desde sua fundação até os dias de hoje. 

Na época de sua criação, a Argentina e o Brasil eram os principais defensores de um processo decisório intergovernamental. O Paraguai e o Uruguai, por outro lado, tinham um forte interesse de que o sistema de consenso fosse mantido, mesmo que fossem favoráveis à criação de instituições supranacionais, o que já refletia fortemente um impasse no processo decisório diretamente relacionado às assimetrias entre os membros do bloco (VIGEVANI; MARIANO; MENDES, 2002). 

Já o Paraguai e o Uruguai mostraram interesse, inerente às suas realidades, em manter o sistema decisório por consenso a fim de sustentar seu relativo poder de veto. Ao mesmo tempo, eram favoráveis à conformação de instituições supranacionais, pois supunham que isto seria benéfico nos casos de solução de controvérsias e conflitos de interesses governamentais, ao diminuir os impactos que os pesos argentino e brasileiro representam para eles. O resultado final foi a manutenção do sistema decisório por consenso e da estrutura institucional intergovernamental. Isso permite dizer que esses dois grupos de países acordaram em uma concessão mútua: enquanto os dois maiores países aceitaram manter a regra do consenso, os dois menores renunciaram a sua posição em torno de instituições com caráter supranacional. Dessa forma, a cooperação entre eles garantiu ganhos para todos e adiou a definição da conformação institucional do Mercado Comum (VIGEANI; MARIANO; MENDES, 2002:45)

Juntos, o Grupo e o Conselho constituem o processo decisório central do Mercosul, que tem se mantido com poucas mudanças ao longo do tempo. Esse processo decisório não é somente intergovernamental, tomado por consenso, mas é também altamente centralizado no executivo dos Estados membros, sendo por vezes chamado de intergovernamental-presidencialista1)As consequências e significados desse sistema intergovernamental presidencialista foram amplamente exploradas e estudadas por Malamud em sua tese de doutorado, Presidential Democracies and Regional Integration.  an Institutional Approach to Mercosur (2003).. No contexto de criação do Mercosul, esse método de decisão foi pensado como uma maneira de fazer com que as decisões fossem tomadas de maneira rápida e ágil. Assim, a aprovação dos presidentes seria o suficiente, ao invés de estabelecer uma longa burocracia e uma série de instituições para que a região pudesse logo evoluir para um Mercado Comum. “O argumento diplomático e dos governos (…) foi que a baixa institucionalização e o caráter intergovernamental do processo seriam fatores que garantiriam avanços rápidos, prescindindo de burocracias pesadas” (VIGEVANI et al, 2008:6). Além disso, a falha da ALALC e ALADI foi por vezes atribuída ao excesso de institucionalização formal (MALAMUD, 2003).

Apesar de pronunciamentos favoráveis à adoção de algum nível de supranacionalidade por basicamente todos seus membros, existe uma ausência de vontade política que se mova nessa direção. Como resultado, não só o sistema de processo decisório é mantido, assim como também seus órgãos principais, o Conselho e o Grupo2) Existe um terceiro órgão decisório, o CCM (Comissão de Comércio do Mercosul), que, por ter caráter técnico, não será tratado., quase não sofreram alterações. 

O primeiro sinal de intenção de superação dos interesses nacionais é mostrado com a DEC 11/03 (DEC significa Decisões, que são emitidas pelo Conselho. No caso do Grupo, são RES, Resoluções), que cria a Comissão dos Representantes Permanentes do Mercosul (CRPM), a destacando inclusive como resultado dos “efeitos do desenvolvimento da função de representação do Mercosul” (MERCOSUL, 2003:s.n.). Essa comissão é composta por um representante de cada país, além do Presidente (apontado pelo Conselho e que deve ser uma personalidade política de destaque de um dos Estados Membros). Eles são os primeiros atores que têm como função apresentar projetos e soluções que beneficiem o bem da região como um todo. Entre suas funções estão assistir o Grupo em todas suas reuniões e apresentar a ele iniciativas sobre matérias relativas ao processo de integração, negociações externas e conformações do mercado comum. Em suas relações com as outras instituições, devem fortalecer relações econômicas, sociais e parlamentares junto à Comissão Parlamentar Conjunta (CPC), Foro Consultivo Econômico Social (FCES) e Reuniões Especializadas. Com a DEC 33/09, o grupo é também encarregado de trabalhar a favor da maior e melhor projeção do Mercosul no cenário internacional.

Outro movimento nesse sentido foi a criação do Alto Representante Geral do Mercosul (ARGM), pela DEC 63/10. O Alto Representante seria uma personalidade política destacada, com ampla experiência em integração. Ele era designado pelo Conselho por um mandato de três anos, que pode ser renovado uma vez, obedecendo a ordem rotativa do Mercosul. Ele deve elaborar propostas para o bloco relacionadas a questões sociais, cidadania no Mercosul, promoção de uma identidade cultural interna e sua projeção externa, atração de investimentos externos, cooperação para o desenvolvimento, observação de missões eleitorais, impulsionar a divulgação do Mercosul dentro e fora do território do bloco, e manter diálogo com todas instituições. O primeiro nome a exercer o cargo foi o diplomata brasileiro Samuel Pinheiro Guimarães Neto, que renunciou ao cargo devido à falta de apoio político por parte dos líderes dos países aos projetos propostos, entre eles, uma crítica ao aporte financeiro do Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (FOCEM), que seria muito baixo (CARTA CAPITAL, 2012). O cargo foi exercido por outros dois brasileiros (Ivan Ramalho e Florisvaldo Fier, conhecido como Dr. Rosinha) até 2017, quando o cargo foi extinto devido à “sobreposição de funções” (EL PERIODICO, 2017). Importante ressaltar que o ARGM e a CRPM se destacaram por não seguirem o princípio da rotatividade. Por terem a permanência e estabilidade, tinham tempo para conhecer e serem reconhecidos como pontos de contato/referência do Mercosul. Isso implica em atividades de prazos maiores que o semestre da rotação alfabética (PESSOA, 2021).

Além da CRPM e do ARGM, criado para elaborar propostas e pensar projetos para o bloco como um todo, além dos interesses individuais de cada um dos Estados Membros, existem outras decisões que demonstram a insatisfação com o quadro institucional do Mercosul. Em 2006, foi criado o Grupo Ad Hoc de Alto Nível para a Reforma Institucional (GANRI), que deveria elaborar uma proposta final de reforma para o Conselho até o fim de 2007. Essa reforma deve constar, segundo a DEC 29/06, que criou o grupo, a “reestruturação dos órgãos decisórios e seus foros subordinados, incluindo suas competências e aprimoramento na incorporação normativa” (MERCOSUL, 2006:s.n.). Sem uma proposta, o prazo foi renovado para 2009. 

Como resultado do atraso na reforma institucional, tanto o Conselho como o Grupo passam por mudanças como forma de desengessar um pouco o funcionamento do Mercosul.  A DEC 14/08 fez algumas modificações no regimento interno do Conselho. As reuniões passam a ser divididas em 3 sessões, e além dos membros principais, participam Ministros de outras áreas (segunda sessão) e os presidentes dos Estados Membros (terceira sessão). Pela primeira vez, é permitida a presença de atores além dos Executivos nas reuniões: “o Conselho pode, em função dos temas e quando achar conveniente, convidar para assistí-las representantes de setores econômicos e sociais dos Estados Membros e representantes de organismos internacionais ou de grupos de países”.

A Reunião de Ministros passa a ganhar maior legitimidade: devem acontecer ao menos uma vez por semestre, e seus consensos são chamados de Propostas, que são encaminhados ao Conselho. Essas Propostas podem tomar forma de projetos de acordos internacionais, Decisões, Recomendações ou outros. Essas adequações são feitas, segundo as cláusulas preambulares, com o fim de aperfeiçoar o funcionamento e alcançar maior desenvolvimento institucional, reconhecer a importância da institucionalização das Reuniões de Ministros, e com isso, criar um intercâmbio ágil e direto de ideias e perspectivas. É criado então um canal forte de lobby por vias domésticas. 

Sem uma resposta sobre o GANRI em 2009, em 2010, com a DEC 06/10, é estabelecida a Reunião de Alto Nível para Análise Institucional, que, através de análises, deve ajudar o Grupo a elaborar uma proposta de reforma institucional. Entre as matérias da reforma, a mudança no processo decisório do Conselho e do Grupo não é mais incluída. 

Já o regimento interno do Grupo é atualizado pela DEC 45/15. O Grupo pode intervir na resolução de controvérsias e nas reclamações que são recebidas pela Comissão de Comércio do Mercosul (CCM) e fiscalizar a qualidade do FOCEM. Como outra tentativa de melhorar o funcionamento do Mercosul, manter as atividades da integração e reduzir a burocracia ociosa, os SGT’s (Subgrupos de Trabalho) e RE’s (Reuniões Especializadas) passam, segundo a DEC 08/18, a ter que elaborar programas de trabalho a serem submetidos ao Grupo, tendo que se reunir pelo menos uma vez por semestre, e enviando convocatórias e agenda. Como resultado, pode ser considerado também que o processo decisório no Mercosul é dividido entre duas fases: uma preparatória, da qual participam os SGT’s e RE’s na formulação de propostas, e uma decisória (nesse artigo chamado de processo decisório central), em que essas propostas são encaminhadas para o processo decisório centralizado, exclusivo aos representantes dos Estados (VELASCO, 2013). 

Frente ao não avanço em matérias de reforma institucional, em 2019, o Conselho aprova a DEC 09/19, que afirma a necessidade de revisar órgãos do Mercosul, unificar órgãos que apresentam superposição de temas da agenda, e fazer mudanças na estrutura institucional do bloco. A fim de garantir agilidade na integração, decide por fazer diversas mudanças em questão de fusão e exclusão de órgãos que “cumpriram seu mandato ou objetivo”.

Na DEC 19/19, a reforma institucional é retomada, e é aprovado um plano conduzido pelo Grupo de revisão da estrutura institucional entre 2020 e 2021. Nas cláusulas preambulares, é reconhecida a necessidade de que “não se ramifique excessivamente, o que gera fragmentação e cria obstáculos ao acompanhamento dos trabalhos dos foros dependentes dos órgãos decisórios do bloco”. O Grupo passa a ser assessorado pelo Grupo de Assuntos Jurídicos e Institucionais do Mercosul (GAIM) sobre quais órgãos serão extintos, tendo como principal critério a frequência de atividades. Nessa decisão, são diminuídos o status e as atividades do FCCR (Foro Consultivo de Cidades e Regiões), e é instituída a eliminação de órgãos que estejam inativos por dois anos. Segundo as decisões de 2019, o Grupo deixa de somente ter o poder de “criar, modificar e excluir órgãos”, e passa a assumir o papel de ser o condutor e responsável pelas reformas institucionais do bloco, principalmente se considerarmos que o GANRI tinha um caráter de maior exclusividade e protagonismo. 

Como resultado, podemos afirmar que poucas foram as mudanças observadas ao longo do tempo no chamado processo decisório central do Mercosul. Esses órgãos foram resultado das dinâmicas e necessidades presentes e observadas no contexto de criação, e atenderam bem ao propósito pelo qual foram escolhidas, que era aprofundar o processo de integração. Levando em conta os custos e consequências dessas escolhas, o que tínhamos já no início dos anos 2000 era uma integração mais complexa: incorporação de novas agendas, uma integração que supera o âmbito comercial, e um arranjo institucional muito mais ramificado e abrangente. Por um lado, podemos afirmar que a missão inicial pensada ao adotar esse processo decisório como estratégia para a agilizar a integração pode ter sido suficientemente bem sucedida. Por outro, pode-se argumentar que existe um determinado nível de independência nas atuação desses atores, ou ambição na amplitude de suas tarefas com o qual os Estados Membros no Mercosul não estavam dispostos a arcar (tanto em uma questão orçamentária quanto política), ou que ainda o bloco não dispunha das ferramentas conciliatórias institucionais devidas a fim de não perceber, nas tentativas implantadas, ameaças à soberania ou interesse nacionais.  

 

CARTA CAPITAL. Brasileiro deixa cargo de Alto Representante Geral do Mercosul. Carta Capital, São Paulo, 28 Jun. 2012. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/mundo/brasileiro-deixa-cargo-de-alto-representante-geral-do-mercosul/>.  Acesso em 15 Mar. 2022.

EL PERIODICO. El Mercosur decide suprimir la figura de su Alto Representante General . El Periodico, Espanha, 06 Jun. 2017. Disponível em: < https://www.elperiodico.com/es/ internacional/20170606/el-mercosur-decide-suprimir-la-figura-de-su-alto-representante-general-6085870>.  Acesso em 15 Mar. 2022.

FURLAN, Fernando de Magalhães. A supranacionalidade no Mercosul. In: Revista Brasileira de Direito Constitucional – No. 15, p. 91-124, jan./jun. 2010.

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MAINWARING, Scott. Presidentialism, Multipartism and Democracy: The Difficult Combination. Comparative Political Studies, vol. 26, nº 2, pp. 198-228. 1993.

MALAMUD, Andrés. Presidential Democracies and Regional Integration: An Institutional Approach to Mercosur (1985-2000). 2003. 262 p. European University Institute, Florence, 2003. 

MALAMUD, Andrés. Presidentialism and Mercosur: A Hidden Cause for a Sucessful Experience. 2003. In: Comparative Regional Integration: Theoretical Perspectives, p 53-73. Aldershot: Ashgate, 2003.

MERCOSUL. DEC 06/10 (Diretrizes para a Reforma Institucional no Mercosul) Disponível em: < https://normas.mercosur.int/simfiles/normativas/21167_RES_006-2010_PT_RANAIM.pdf>. Acesso em 13 Mar. 2022.

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MERCOSUL. DEC 33/09 (Comissão de Representantes Permanentes do Mercosul) Disponível em: <https://normas.mercosur.int/simfiles/normativas/15767_DEC_033-2009_PT_CRPM.pdf>. Acesso em 22 Mar. 2022.

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PESSOA, Luan Olliveira. O Alto Representante Geral do Mercosul: Origens, Cariz e Extinção. In: Conjuntura Global, vol 10, n3, 2021 pp 32-51. Disponível em: <https://revistas.ufpr.br/conjgloblal/article/view/81904/45409>. Acesso em 02 Mai. 2022. https://doi.org/10.5380/cg.v10i3.81904.

VALENZUELA, Arturo. The failure of presidential democracy: The case of Latin America. Vol. 2. pp. 3- 87. Baltimore: Johns Hopkins. University Press. 1994.

 

Notas   [ + ]

1. As consequências e significados desse sistema intergovernamental presidencialista foram amplamente exploradas e estudadas por Malamud em sua tese de doutorado, Presidential Democracies and Regional Integration.  an Institutional Approach to Mercosur (2003).
2. Existe um terceiro órgão decisório, o CCM (Comissão de Comércio do Mercosul), que, por ter caráter técnico, não será tratado.

Escrito por

Tainá Siman

Mestra em Relações Internacionais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) com bolsa CAPES, com dissertação intitulada "Governança Multinível no Mercosul: uma análise a partir do processo observado na União Europeia". Bacharel em Relações Internacionais pela PUC Minas, com período de intercâmbio acadêmico na Universitat Autónoma de Barcelona (UAB). Durante a graduação, foi também bolsista de iniciação científica da FAPEMIG, com o projeto “Zona Tripartida Livre Comércio – A União Faz a força? Uma análise político-econômica sobre o potencial da integração africana para o desenvolvimento”, sobre o acordo Tripartite COMESA-SADC-EAC. Também foi bolsista do projeto de extensão MINIONU. Participou do primeiro curso de verão do United Nations University Institute on Comparative Regional Integration Studies (UNU-CRIS) com bolsa em excelência acadêmica, e realizou estágio de curto período no Instituto Social do Mercosul.
Linhas de pesquisa principais incluem: Integração Regional, Governança, Descentralização, Regionalismo Comparado, Mercosul, e Design Institucional.
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