De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), o Brasil tem um papel pioneiro e de liderança na proteção internacional de refugiados, tendo formulado uma das legislações mais modernas sobre o tema no mundo.

O Estatuto dos Refugiados de 1951[1]é o instrumento internacional de garantia do exercício mais amplo possível dos direitos humanos e liberdades fundamentais dos seres humanos em situação de refúgio. De maneira geral, é o próprio ACNUR que tem a incumbência de zelar pela aplicação das convenções internacionais que asseguram a proteção desses indivíduos. Mas, quem pode ser considerado refugiado? De acordo com o Art. 1° do Estatuto, o termo refugiado por ser requerido por qualquer pessoa

Que, em conseqüência dos acontecimentos ocorridos antes de 1° de janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em conseqüência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele (ESTATUTO, 1951).

No Brasil, o Estatuto foi implementado por meio da Lei 9.474/97[2], cujo item III do Art. 1º define que será reconhecido como refugiado todo indivíduo que “devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país”. Desta maneira, qualquer ser humano que se encaixe nesse requisito pode solicitar refúgio no Brasil, assim que estiver em território brasileiro, e buscar assistência junto ao governo durante o processo de tramitação deste pedido. É importante notar que, a partir do momento em que a requisição é feita junto aos órgãos responsáveis, o Brasil está proibido de recusar a solicitação ou impedir a entrada do indivíduo no país, como determina o § 1º do Art. 7 °, segundo o qual, “em hipótese alguma será efetuada sua deportação para fronteira de território em que sua vida ou liberdade esteja ameaçada, em virtude de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política”.

O Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) é o órgão de deliberação coletiva, no âmbito do Ministério da Justiça, que deve analisar os pedidos, caso a caso, reconhecendo ou não a condição de refugiado, segundo a aplicação correta da lei. Além disso, outras instâncias da sociedade civil também trabalham no sentido de orientar e coordenar as ações necessárias à eficácia da proteção, assistência e apoio jurídico aos refugiados.

Entretanto, esta não é a única legislação referente à aceitação de imigrantes no Brasil. Em 2009, o governo federal brasileiro promulgou os Decretos n° 6.964[3]e n° 6.975[4]que instituem os Acordos sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercosul e do Mercosul, Bolívia e Chile (Estados associados), respectivamente. De acordo com o Art. 1° do Decreto n° 6.964, “os nacionais de um Estado Parte que desejem residir no território de outro Estado Parte poderão obter residência legal neste último”. Inicialmente, imigrantes oriundos dos países-membros do Mercosul podem entrar com o pedido de residência temporária, por dois anos, junto à Polícia Federal. Com o fim deste prazo, o estrangeiro pode solicitar sua permanência no país.

Portanto, há duas maneiras pelas quais o fluxo migratório vindo da Venezuela, membro-pleno do Mercosul desde 2012, pode acessar o território brasileiro: o pedido imediato de refúgio ou de residência temporária via acordo Mercosul. Ambos os acordos garantem aos estrangeiros igualdade de direitos e liberdades civis, sociais, culturais e econômicas dos nacionais brasileiros, em particular o direito de trabalhar e exercer toda e qualquer atividade lícita.

Assim, o questionamento que suscita a análise acima é: quais os desafios da aceitação da imigração venezuelana que são enfrentados pelo Brasil? A estimativa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em agosto de 2018, é de que há cerca de 30,8 mil imigrantes oriundos do país vizinho no Brasil; sendo que, 10 mil deles, chegaram aqui no ano corrente. Em 2015, eram aproximadamente mil venezuelanos morando no país. Somente em 2017, no entanto, 17 mil atravessaram a fronteira para estabelecer refúgio em solo brasileiro.

O aumento exponencial da imigração advinda da Venezuela tem relação direta com o agravamento da crise política, econômica e social enfrentada pelo país desde a transição do governo de Nicolás Maduro, a partir de 2013, que atualmente sofre com alta inflação e desabastecimento. O maior contingente de imigrantes acessa o Brasil por via terrestre, atravessando a fronteira. O IBGE aponta que 99% do total desses imigrantes está em Roraima, na cidade fronteiriça de Pacaraima e, também, na capital Boa Vista. De acordo com a pesquisadora Izabel Merri, “para a população brasileira, é irrisória a população de imigrantes que entram no país e a forma como eles se espalham. Mas, para Roraima a gente teve que considerar a imigração venezuelana, por causa do contingente de pessoas daquele país buscando refúgio no Brasil”. A população do estado é estimada em 576,6 mil habitantes; a da capital em 375,4 mil. Isso significa que o número de venezuelanos vivendo em Roraima corresponde a mais de 8% do total de habitantes da capital[5].

O problema na fronteira se agravou, em agosto, quando um comerciante de Pacaraima foi assaltado por venezuelanos; levando a protestos violentos no dia seguinte. Na mesma semana, brasileiros agrediram e incendiaram acampamentos dos imigrantes. De acordo com um relatório deste ano da FGV/DAPP[6],“a sensação de sobrecarga estaria, portanto, menos ligada a uma piora dos serviços a partir do maior contingente de imigrantes e, sim, mais relacionada a um cenário em que a prefeitura, sem o apoio dos governos estadual e federal para atrair projetos de desenvolvimento econômico para a região, não consegue prover o necessário a uma população majoritariamente desempregada, ou inserida no mercado informal, e pouco instruída”.

Este cenário exige medidas paliativas por parte do governo estadual, que precisa abrigar de imediato famílias que chegam necessitando de assistência básica, como alimentação e moradia. Mas, também, há necessidade de formulação de estratégias de médio e longo prazo que envolvam a elaboração de políticas públicas de integração à população local, garantindo acesso aos sistemas públicos de saúde e educação, bem como a possibilidade de emprego. Para isso, torna-se imperativo o apoio do governo federal a todos os estados que recebem grandes contingentes de imigrantes, já que o Brasil recebe orientação e ajuda financeira das Nações Unidas, por meio do ACNUR, para esses casos.


REFERÊNCIAS
[1]A Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados foi adotada em 28 de julho de 1951 pela Conferência das Nações Unidas de Plenipotenciários sobre o Estatuto dos Refugiados e Apátridas. Entrou em vigor em 22 de abril de 1954 e está disponível em: <http://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf>. Acesso em: 25 set. 2018.
[2]A Lei N° 9.474, de 22 de julho de 1997, define os mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951 e determina outras providências. Está disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9474.htm>. Acesso em: 25 set. 2018.
[3]A Lei Nº 6.964, de 9 de dezembro de 1981, define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração, e dá outras providências. Está disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1980-1987/lei-6964-9-dezembro-1981-357121-publicacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em: 25 set. 2018.
[4]O Decreto N° 6.975, de 7 de outubro de 2009, promulga o Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercado Comum do Sul – Mercosul, Bolívia e Chile, assinado por ocasião da XXIII Reunião Conselho do Mercado Comum, realizada em Brasília, nos dias 5 e 6 de dezembro de 2002. Está disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6975.htm>. Acesso em: 25 de set. 2018.
[5]SILVEIRA, Daniel. Brasil tem cerca de 30, 8 mil imigrantes venezuelanos; somente em 2018 chegaram 10 mil, diz IBGE. G1 online.29 ago. 2018. Rio de Janeiro. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2018/08/29/brasil-tem-cerca-de-308-mil-imigrantes-venezuelanos-somente-em-2018-chegaram-10-mil-diz-ibge.ghtml>. Acesso em: 25 de set. 2018.
[6]ALVIM, Mariana. A cronologia da crise migratória em Pacaraima, na fronteira entre Brasil e Venezuela. BBC News Brasil, São Paulo, 21 ago. 2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45242682>. Acesso em: 27 set. 2018.

Escrito por

Ana Elisa Thomazella Gazzola

Professora de Relações Internacionais na UNIP. Doutoranda e mestra do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas - UNESP, UNICAMP e PUC-SP, desde 2015, com foco em processos de Integração Regional na América do Sul. Pesquisadora do Observatório de Regionalismo (ODR) e da Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (REPRI). Pós-graduada em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas (2013). Graduada em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2009).