Em tempo de Copa do Mundo, Brasil e México disputam pela possibilidade de avançar às Quartas de Final. Se o duelo em mundiais se repete pela quinta vez, com larga vantagem histórica da seleção “amarelinha”, a rivalidade entre os países- para alguns- tem ultrapassado, desde os anos 1990, os campos e passado para a arena política. Foi bastante circulado em artigos e livros a possibilidade de uma disputa hemisférica entre o Brasil e o México, tendo sofrido uma abrupta escalada com o crescimento do Brasil nos anos 2000, seu projeto de protagonismo regional e as diferenças ideológicas de governo, reflexo, em especial, da relação de ambos com os Estados Unidos. Esse receituário analítico forneceu os ingredientes perfeitos para que os mais afoitos pela conjuntura dispararem que havia indícios de uma corrida pela influência política latino-americana e que era marcada pelo antagonismo Canarinhos contra Águias[1].
Como toda análise de conjuntura, apesar do imediatismo por conclusões, a temática do embate político Brasil-México tem alguns respaldos pertinentes derivados da história recente desses países. A principal batalha entre esses dois países sem dúvida foi no campo da ALCA (Área de Livre-Comércio das Américas). O México representava-se, a partir da segunda metade da década de 1990, como o porta-voz latino-americano para uma integração econômica com os Estados Unidos. O projeto da ALCA, lançado em 1995, representava a expansão absoluta do neoliberalismo e da filosofia de livre-mercado na América Latina, criando uma rede de abertura comercial e queda de tarifas comerciais em todo o hemisfério americano.
No México, o projeto foi recebido inicialmente com certa desconfiança, em especial porque o país havia a pouco tempo entrado no TLCAN (Tratado de Livre-Comércio da América do Norte) e percebia que a extensão de suas vantagens tarifárias no mercado norte-americano para toda a região poderiam gerar uma concorrência indesejada para suas exportações. Essa visão foi principalmente modificada com a entrada da gestão Vicente Fox ao poder, em 2000, cuja interpretação da ALCA era mais amistosa, tendo o México o papel de hub de investimentos da América Latina para os Estados Unidos e vice-versa (CORONADO, 2005; GONZÁLEZ, 2008).
Já no Brasil, a visão do governo Fernando Henrique Cardoso era ainda mais reticente. Os organismos sindicais patronais da indústria apresentavam-se majoritariamente contra, enquanto o setor agrícola era favorável. Na soma da representatividade da política exterior desse governo, a gestão Fernando Henrique apostou na crítica e na adoção seletiva do que seria acordado, chegando até a formar blocos de influência para barrar o avanço das discussões da ALCA (BERRINGER, 2015). Esse embate, também transposto para o início do governo Lula, representou o primeiro ponto do antagonismo Norte-Sul no campo hemisférico e que, com o fim das discussões em 2005 e ascensão das esquerdas na América do Sul, apenas fortaleceu uma impressão de que se formavam duas Américas encrostadas numa nova Tordesilhas: a América Atlântica de esquerda e de projetos neo-desenvolvimentistas e a América Pacífica, vinculada ao projeto de um Estado liberal e à centro-direita.
A ampliação do alcance dos arautos do antagonismo latino-americano teve seu auge em 2011, com a criação da Aliança do Pacífico. Em meio ao “auge” da influência do Brasil nos BRICs e na UNASUL, México, Peru, Chile e Colômbia lançam esse novo projeto detentor de um caráter comercial e financeiro, evitando o enfoque mais político e social de temas como segurança, educação e saúde[2]. Aparentava um questionamento direto à liderança brasileira, um contrabalanceamento discursivo aos projetos brasileiros de integração, indo na contramão da construção política que a América do Sul vivia desde os anos 2000. Além disso, seria um indício da entrada do México diretamente em rota de colisão com o Brasil, utilizando-se do subterfúgio do livre-comércio para alcançar mercados e influência na região mais cara para o Brasil. A Aliança do Pacífico significaria, portanto, a reentrada do neoliberalismo na região em que o discurso e os projetos “pós-hegemônicos/pós-liberais” eram o caminho da integração regional e celeiro para o Brasil líder na América do Sul (NOLTE; WEHNER, 2013).
Entretanto, a história e o decorrer dos fatos são os carrascos das análises apressadas. Em primeiro lugar, acerca das interpretações dos anos 1990, há de se ter algumas questões em mente. A primeira é que o México, a partir de 1991, decidiu relegar a política para a América Latina uma questão secundária e, no máximo, identitária. A reformulação do Estado mexicano iniciado no governo De la Madrid (1982-1988) e consagrado no governo Salinas de Gortari (1988-1994) modificou o eixo estratégico do México da América Latina, para a América do Norte (SANTOS, 2007; CORONADO, 2005). Já o Brasil passou pela transição da identidade latino-americana para a sul-americana, em especial após a formação do MERCOSUL, com resquícios de projetos não vingados, como a ALCSA (Área de Livre Comércio Sul-Americana). A transição de uma busca de influência em uma região mais ampla para outra passa por importantes questões: a) o reconhecimento de limite em capacidade de atuação; b) melhor coordenação política e econômica em um entorno estratégico mais próximo (SPEKTOR, 2011).
A partir, então, desse período, há de se reconhecer que as rusgas entre os dois países são episódios esporádicos, mais circunstanciais que uma rivalidade anunciada- ou velada. Na ALCA, o duelo é derivado por uma medida de proteção ou ampliação de comércio em relação aos Estados Unidos, e não necessariamente entre uma disputa bilateral. Em relação à Aliança do Pacífico, se inicialmente houve uma desconfiança brasileira, posteriormente, com a queda do governo Dilma, as pautas passaram a ser mais convergentes que divergentes, passando até à possibilidade de entrada do Brasil no grupo ou acordo conjunto com o MERCOSUL.
Outro fator importante é a formação da CELAC (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribe), cuja ideia é mexicana e o apoio vem da Venezuela e do Brasil. A formação da CELAC tem um forte fator simbólico ao ser a primeira instituição que contava com todos os países latino-americanos (inclusive Cuba), sem contar com a presença dos Estados Unidos. Mesmo que os mais entusiastas a apontassem como a substituta da OEA (Organização dos Estados Americanos), a função estratégica da CELAC é fundamentalmente substituir o Grupo do Rio e ser um foro consultivo dos países latino-americanos para discutirem os problemas da região. Para o México, a CELAC significava a reinserção do país nos debates com seus pares latino-americanos e um reforço a sua identidade regional. Já para o Brasil, serviria como uma ampliação do raio diplomático e de influência para além da América do Sul, chegando a um diálogo mais qualificado com a América Central e Caribe (CORONADO; ALEJO, 2013).
É justamente essa aproximação do México a partir de 2009 na América Latina um dos principais combustíveis para a disseminação de discussões acerca da suposta rivalidade com o Brasil. Mesmo que essas mesmas análises reconhecessem a necessidade do México de diversificar seus mercados, esqueciam de um elemento fundamental para a efetividade e importância dos acordos: a burguesia. A burguesia mexicana é altamente vinculada à economia norte-americana como um todo, sendo uma das principais beneficiadas da criação do TLCAN (THACKER, 2000). Para além disso, parte das principais indústrias exportadoras do México, como a de eletrônicos e automotiva, são montadoras de empresas estadunidenses, cuja lógica é o uso de mão-de-obra e isenções no México para a revenda nos EUA. Tendo isso em vista, o México assinar mais tratados são de pouca significância quando a ação do governo não é respaldada pela própria ação da burguesia. É dizer, o México tem tratados de livre-comércio com mais de 40 países, incluindo União Europeia, e mantém mais de 80% de suas exportações para os Estados Unidos. A isso, soma-se que, ainda que tenha acordo com a Aliança do Pacífico, o país latino-americano mais relevante comercialmente é o seu suposto arquirrival: o Brasil[3].
Talvez pelas Relações Internacionais terem se desenvolvido no Ocidente em especial no período da Guerra Fria, ou pelo excesso de uma tradição realista nas academias, a necessidade de parte dos especialistas de identificar rivalidades e antagonismos ofusca a capacidade de leitura mais precisa daquilo que se propõem a analisar. A partir disso criam-se narrativas exageradas entre os países, sendo a América Latina dos anos 2000 um terreno fértil para tais interpretações. Não é incomum relembrarmos de textos que apontavam propensas rivalidades entre Argentina e Brasil (MALAMUD, 2011), Brasil e Venezuela (BURGES, 2007) e, por fim Brasil e México. Seja pelo contrapeso político no Cone Sul, seja pela hegemonia ideológica na América do Sul e nas esquerdas, seja pelo controle dos mercados, havia a recorrente necessidade de se explicar os percalços da ascensão brasileira a partir da formação de alguma animosidade, seja ela histórica, ideológica ou comercial. Talvez a mais exagerada tenha sido a de Randall Schweller (2011) em que apontava o Brasil como um spoiler das políticas estadunidenses no cenário internacional, ou seja, uma potencial ameaça.
O fato é que a rivalidade entre Brasil e México é mais fruto da velocidade dos analistas em enaltecer ocorrências conjunturais do que uma disputa política e econômica verdadeira. Mesmo com governos de matizes ideológicos distintos, houve a aproximação via CELAC, encontros diplomáticos e busca do diálogo. Sem dúvida, a relação é distante de uma amizade ou relação carnal e mantém suas distinções políticas. Enquanto nos anos 2000 o México aproximou-se cada vez mais diplomaticamente dos Estados Unidos e fez uma aposta a partir de 2009 na América Latina, o Brasil manteve alguns ruídos diplomáticos com os EUA, mais notoriamente na questão de soberania nacional e regional, e buscou fortalecer sua presença no Sul global. Assim, percebe-se que a verdadeira luta na América Latina é mais entre a resistência em relação aos ataques da Águia de Cabeça Branca do que entre Águias e Canarinhos.
Referências Bibliográficas:
BERRINGER, Tatiana. A burguesia brasileira e a política externa nos governos FHC e Lula. Appris Editora e Livraria Eireli-ME, 2015.
BURGES, Sean W. Building a global southern coalition: the competing approaches of Brazil’s Lula and Venezuela’s Chávez. Third World Quarterly, v. 28, n. 7, p. 1343-1358, 2007.
CORONADO, Jaime Preciado e ALEJO, Angel Florido. La Comunidad de Estados Latinoamericanos y Caribeños (CELAC); integración postneoliberal, neoliberal ortodoxa y contrahegemonica. In: FLORES, Consuelo Silva; MARTINS, Carlos Eduardo (Orgs). Nuevos escenarios para la integración en América Latina. Buenos Aires: Editorial Arcis, CLACSO, 2013.
CORONADO, Jaime Preciado. México Ante la Dinámica del Poder Global: Proyección Geopolítica Externa e Interna.In: AYERBE, LF et al, Integração. São Paulo, p. 153-198, 2005.
MALAMUD, Andrés. A leader without followers? The growing divergence between the regional and global performance of Brazilian foreign policy. Latin American Politics and Society, v. 53, n. 3, p. 1-24, 2011.
NOLTE, Detlef; WEHNER, Leslie. The pacific alliance casts its cloud over Latin America. GIGA Institute, 2013.
SANTOS, Marcelo. O México como aliado dos EUA no projeto de integração das Américas. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 50, n. 2, 2007.
SCHWELLER, Randall. Emerging powers in an age of disorder. Global governance, v. 17, n. 3, p. 285-297, 2011.
SPEKTOR, Matias. El regionalismo de Brasil. Brasil e América do Sul: Olhares cruzados. Río de Janeiro, Plataforma Democrática, 2011.
THACKER, Strom C. Big business, the state, and free trade: Constructing coalitions in Mexico. Cambridge University Press, 2000.
[1] O canarinho faz referência ao Brasil em relação às cores do uniforme da seleção de futebol nacional. A referência ao México em relação à águia é por conta de ela ser o símbolo do brasão de armas do Estado. A título de curiosidade, a seleção mexicana de futebol é conhecida como El Tri, uma alusão a sua bandeira tricolor.
[2] Há a presença de grupos de trabalho para a discussão dessas temáticas, mas como um foro secundário e com uma forte correção do efeito mercadológico desses setores mais do que necessariamente uma preocupação estritamente social.
[3] Apesar de ser o país latino-americano mais relevante na balança comercial mexicana, o Brasil conta apenas com 0,9% do total do valor de exportações do México e 1,3% do valor de importações. Soma-se a isso as recentes negociações de Acordo de Reconhecimento Mutuo aduaneiro no âmbito bilateral e, até, um acordo para o fortalecimento e proteção combinada no mercado global de seus produtos mais conhecidos (quiçá consumidos): a tequila e a cachaça. Dados no https://tradingeconomics.com/mexico/