Ao longo de sua história de 25 anos, o Mercosul – fundado por 4 membros (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) – passou por um processo de alargamento que atualmente inclui todos os países da América do Sul como Estados-parte ou Estados-associados. Entretanto, desde 1991, houve uma única adesão como membro pleno, a venezuelana, iniciada em 2006 e concretizada em 2012. O ingresso da Bolívia ainda tramita, desde o ano passado, nos parlamentos nacionais dos membros, característica intergovernamental do bloco.
Usualmente, o debate acerca da sul-americanização da Venezuela, sob a presidência de Hugo Chávez (1999-2013), enfatiza as vontades políticas dos governos ideologicamente afins – no âmbito da chamada “Onda Rosa” –, como a Argentina, a Bolívia, o Brasil e o Equador, entre outros que, apesar da heterogeneidade de modelos político-econômicos, apostaram no regionalismo sul-americano. Paralelamente, cabe discutir os entraves pelos quais passou, porque o ingresso de Caracas foi criticado e adiado por diversas razões, que se utilizaram do discurso da ruptura da democracia como instrumento para isso.
Considerando que o Mercosul possui, entre outras normas sobre o assunto, o Protocolo de Ushuaia, assinado em 1998, sobre o compromisso com a democracia, todos os ingressantes devem respeitar os “valores democráticos” que são indicados – mas não definidos – no Protocolo. Foi utilizado em dois episódios de instabilidade no Paraguai, no ano de 1999, e em seguida, por ocasião do golpe contra o presidente Lugo, que culminou com a suspensão ímpar deste país do bloco, entre 2012 e 2013. Após o afastamento do presidente Lugo, de centro-esquerda (Frente Guazú), seguiu-se um governo de centro (Partido Liberal Radical Auténtico). Os demais membros mercosulinos possuíam semelhantes governos de centro-esquerda: Argentina (Frente para la Victoria), Brasil (Partido dos Trabalhadores) e Uruguai (Frente Amplio).
Nessa conjuntura, a Venezuela – com o governo de esquerda do Partido Socialista Unido de Venezuela – pode ingressar, porque apenas o Congresso do Paraguai ainda não havia ratificado seu Protocolo de Adesão, e a suspensão do país eliminou essa necessidade. Pode-se considerar que certos estímulos na cooperação regional se dão entre governos afins, assim como ocorreu na década de 1990 em que 4 governos neoliberais fundaram o Mercosul. No caso da adesão venezuelana, a aceitação do alargamento do Mercosul foi favorecido pela conjunção de governos de centro-esquerda. A mesma lógica pode se aplicar à pequena reação das organizações regionais – ainda que respostas bilaterais tenham sido divulgadas – ao processo de afastamento da presidenta Dilma em 2016.
Houve alguns momentos nos quais determinados setores políticos questionaram a ordem democrática em Caracas: em 2007, pela não-renovação da concessão à Radio Caracas de Televisión, então maior canal privado e de oposição ao governo central; em 2014, devido às mortes em conflitos entre opositores e apoiadores ao presidente Nicolás Maduro; e em 2015, devido às manifestações contrárias à missão de senadores oposicionistas brasileiros à Caracas para verificar a prisão de políticos acusados de tentativa de golpe.
Mais recentemente, as mudanças políticas à direita na Argentina, no Brasil e no Paraguai, somadas ao cenário instável politica e economicamente no âmbito doméstico da Venezuela, indicam alterações nos rumos dados ao Mercosul. A esse cenário, se soma o isolamento da Venezuela, no âmbito mais amplo das políticas dos Estados Unidos para a América Latina, incluindo as relações com Cuba – a ilha é um dos principais parceiros econômicos e políticos da Venezuela. Nesse sentido, o futuro próximo do bloco pode passar por uma reorientação econômica e também política, como se manifesta nas reações de alguns membros à Venezuela.
O atual presidente argentino, Mauricio Macri, assumiu o cargo com a proposta de invocar a cláusula democrática para suspender Caracas, mas recuou na Cúpula de Chefes de Estado, no final de 2015. O governo paraguaio opõe-se à conjuntura do ingresso venezuelano, pois estava suspenso e aprovou a medida a posteriori e, no atual cenário, indica ser contrário à presidência de Caracas no bloco. Já o presidente interino do Brasil, Michel Temer, manifestou relutância em participar da próxima Cúpula, na qual a presidência pro-tempore (rotatória e semestral) deve ser transferida do Uruguai para a Venezuela, seguindo a ordem alfabética. As fontes mais recentes indicam que a Cúpula de Chefes de Estado, em julho, deve ser substituída por uma Cúpula de Ministros de Relações Exteriores. Desse modo, essa alteração no rito diminui a legitimidade da presidência de Nicolás Maduro, além de demonstrar a conjuntura geopolítica atual na região.
Ao passo que, segundo afirmação do chanceler uruguaio, Rodolfo Nin Novoa, o Uruguai se compromete em manter as normas do bloco em funcionamento, transmitindo a cadeira da Presidência Pro Tempore para a Venezuela, paralelamente, parece haver uma articulação entre os governos de Assunção, Brasília e Buenos Aires para decidir alguma medida contra Caracas, reiterando o papel dos governos nacionais – principalmente os Executivos – nesse arranjo regional. Além da veiculação da possibilidade de se evitar a posse venezuelana, a indefinição sobre a Cúpula de Chefes de Estado também pode indicar o aguardo de novos acontecimentos – a Unasul e a OEA estão com medidas em curso para mediar o confronto entre as forças políticas na Venezuela – que possam influenciar a situação em curto prazo no Mercosul.
Recentemente, altas autoridades desses três governos – inclusive os presidentes Macri e Horacio Cartes (Paraguai) – também receberam o governador Henrique Capriles, um dos principais líderes de oposição à gestão de Maduro e que defende o apoio internacional da região a decisões referentes à política interna, como o referendo revogatório do mandato presidencial e a revisão da prisão de políticos acusados como golpistas. Para Capriles, um possível agravamento da crise, sem as intervenções nos moldes demandados, afetaria a estabilidade da região sul-americana, condição que foi defendida por suas instituições como o Mercosul e a Unasul no século XXI. No entanto, permanece a dubiedade de qual estabilidade e qual democracia é defendida por essas organizações. Considerando a característica intergovernamental do bloco e sua dependência dos esforços colocados pelos Executivos, esses conceitos podem ser instrumentalizados de distintos modos em distintos contextos.
Quanto às relações externas do Mercosul, com Caracas na presidência do bloco, os outros Estados-membros se preocupam com o ritmo do avanço nas negociações comerciais entre Mercosul e a União Europeia. O chanceler Nin Novoa, no entanto, procurou tranquilizar os grupos de interesse, afirmando que o Uruguai continuará à frente da agenda externa do Mercosul, coordenando as negociações com a UE. Neste momento, o Uruguai, presidido por Tabaré Vázquez (Frente Amplio), parece procurar mediar o contexto de crise pelo qual passa o bloco, tanto mantendo a transferência de presidência, ainda que de maneira não usual, como procurando se manter a frente de importantes negociações do Mercosul.
Em suma, o que se percebe do contexto atual é uma possível reconfiguração política na América do Sul. Uma vez que o Mercosul é constituído sob a égide intergovernamental, na medida em que crises e mudanças políticas ocorrem em seus membros, o próprio bloco acaba por ser afetado, bem como o próprio processo de integração. O caso venezuelano é exemplo factual disto. No entanto, enquanto a Cláusula Democrática se concretizou juridicamente no Protocolo de Ushuaia, sua utilização permanece polêmica, seja no recente caso paraguaio em 2012, seja na atual possibilidade de sua utilização com a Venezuela e a não aplicação no Brasil. Ao final, as perguntas que pautam o regionalismo sul-americano nas últimas décadas são: o que define a democracia? Quem define a democracia? Quais interesses definem a democracia? A democracia auxilia na promoção do regionalismo? A cláusula democrática do Mercosul é instrumento a critério dos poderes Executivos?
Para mais informação (Referência):
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