Texto por Cairo Junqueira e Bárbara C. Neves.

 

A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) foi criada em 1948 através da resolução 106 (IV) do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC). Desde sua criação, teve importantes aportes para o desenvolvimento regional da América Latina e do Caribe, principalmente no que se refere ao pensamento integracionista no continente. No seu marco de 70 anos de existência, o presente texto objetiva tratar brevemente sobre o histórico cepalino no seu pensar e em sua atuação face aos movimentos e ondas regionalistas latino-americanas.

Inicialmente, a Comissão se desenvolveu como uma escola para formação de um pensamento político regional ao analisar as tendências econômicas e sociais presentes em cada momento histórico, elaborando ao longo de seu funcionamento outras formas de atuar e corroborar para o desenvolvimento da região, como consultorias e parcerias técnicas com órgãos nacionais, incentivo à ampliação de programas de financiamentos e elaboração de planos de ação regional (CEPAL, 2018).

A metodologia de trabalho da Comissão é denominada de histórico-estrutural ou estruturalista, a qual analisa as instituições produtivas resultantes dos processos colonizadores e como estas condicionam a dinâmica econômica dos países latino-americanos classificados como países em vias de desenvolvimento ou emergentes. Desde o primeiro momento, o intuito da CEPAL era verificar como processos e variáveis externas condicionavam o patamar subdesenvolvimentista da região. Historiadores e estudiosos da própria organização apresentam sete etapas da evolução econômica dos países latino-americanos: 1) 1950 – enfoque centro periferia; 2) 1960 – reformas estruturais para desobstruir a industrialização; 3) 1970 – reorientação dos modelos desenvolvimentistas para a homogeneização social e a diversificação pró-exportadora; 4) 1980 – a “década perdida”, superação do endividamento externo mediante o ajuste com crescimento; 5) 1990 – transformação produtiva com “equidade”; 6) 2000 – desenvolvimento em prol da assimetria, globalização e as questões sociais.; 7) Agenda para 2030 – igualdade e desenvolvimento sustentável (BIELSCHOWSKY, 1998, CEPAL, 2018).

A cooperação técnica configura a principal ferramenta de atuação da Comissão, tendo sua sede central em Santiago no Chile. Tal mecanismo regional visa contribuir para o desenvolvimento da América Latina e o Caribe coordenando as ações dos países, assim como buscando reforçar a relação intra e extrarregional do continente. Dessa maneira, em seu fim a CEPAL sempre propagou a necessidade e importância de se criar um Mercado Comum regional para que fosse possível consolidar o desenvolvimento industrial, elaborando estudos sobre a região, com o discurso de direcionar escolhas e tomadas de decisão que resultassem na melhor inserção da região latino-americana e caribenha no cenário econômico internacional.

Uma das principais contribuições da CEPAL foi marcada pelos estudos críticos de Raul Prebisch na crença de que a Comissão deveria servir como um centro de investigação e elaboração de políticas para o desenvolvimento regional com foco nos problemas dos países envolvidos. Dessa maneira, ela combina diferentes elementos de avaliação e, de certa forma normativos, para os países latino-americanos e caribenhos se desenvolverem economicamente a partir de suas dinâmicas e necessidades, das quais se destacam: o papel que as economias da região tem no cenário internacional, o nível de intercâmbio tecnológico dos países centrais para as periferias e a relação de equidade existente entre os países que abarcam a CEPAL e o sistema econômico internacional.

Na década de 1950, as avaliações da CEPAL apontavam para a crescente desvalorização industrial uma vez que se ampliava nos países centrais as capacidades técnicas e tecnológicas de produção, valorizando os produtos destes em detrimento à periferia, onde, por não haver tais avanços concomitantes, gerava-se um maior ingresso de capital inicial aos produtores, que no largo prazo acabou por aumentar o preço dos produtos latino-americanos e caribenhos por não haver ampliação da capacidade produtiva com os meios técnicos. Sendo assim, descrevia-se um cenário de fortalecimento dos Estados Unidos, no qual, através do encarecimento da produção dos países periféricos do continente, ademais de o governo americano segurar seus empréstimos e reservas, houve um forte momento de escassez de dólares aos países para pagarem seus compromissos internacionais.

Nesse contexto que se remetia à crise econômica de 1929, países periféricos apresentavam mais vulnerabilidade perante os países centrais, sendo inevitável pensar em uma transformação que elevasse aquelas a uma categoria “não periférica”. Uma vez que tal mudança não era viável, tanto por questões domésticas, como pela detenção de bens materiais e financeiros do sistema internacional, a CEPAL apresentou em ideias as ações anti-cíclicas que poderiam ser praticadas pelos países do continente (PREBISCH, 1948).

Em 1963, ao verificar que ainda havia grandes dificuldades para o crescimento dos países avaliados pela Comissão, apontou-se para um outro fator que deveria ser assumido pelos países como foco a ser combatido, a deterioração dos termos de troca, deixando de lado a manutenção dos estudos econômicos e estratégicos norte-americanos e europeus, já que estes mantinham a ordem internacional ao manterem os países periféricos subjugados. Sendo assim, fora proposto que se investisse cada vez mais nas investigações nacionais dos fenômenos latino-americanos, focados na própria realidade da região, não atuando mais com base nas teorias econômicas elaboradas nos grandes centros que implicavam uma “falsa pretensión de universalidad” (PREBISCH, 1963, p.XVI). Foi a partir dessa década, portanto, que se lançou o primeiro conceito de regionalismo na América latina pela própria Comissão, assumindo ser necessário encontrar soluções próprias e projetar uma imagem de região latino-americana.

A estratégia regional pioneira foi resultante da primeira onda de regionalismo latino-americano, denominada “regionalismo fechado”. Tal estratégia representou a tentativa de aproximar os países entre si, “fechados” pela tentativa de diminuir a influência dos centros em suas relações, buscando criar uma base regional fortalecida que pudesse modificar seus posicionamentos na dinâmica das relações internacionais. Sendo assim, o regionalismo fechado surgiria “como solução para o entrave desenvolvimentista no continente. Urgia-se fomentar o intercâmbio regional com o fim de incrementar as plantas industriais locais, preparando seus Estados membros para a acirrada competitividade do comércio global” (MENDONÇA JR., 2014, p. 02).

Assim, os estudos da CEPAL da década de 1960 influenciaram o pensamento integracionista na reunião, resultando no lançamento da Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC) em 18 de fevereiro de 1960. Entretanto, ainda que a CEPAL tivesse direcionado e apontado caminhos à região para a aplicação de estratégias econômicas de reformas estruturais para o desenvolvimento, com o método de substituição de importação, predominante nos países do centro, aprofunda-se o protecionismo regional,, assim como as assimetrias já existentes. Ou seja, ainda que se tenha proposto uma aproximação latino-americana, os estudos focados na relação centro-periferia desconsideraram a existência das disparidades específicas dos contextos nacionais de cada país, principalmente no que se referia à ausência de complementaridade produtiva, se apresentando naquele momento como um entrave para o avanço de mecanismos alternativos aos processos econômicos cíclicos gerados pelos países centrais (MENDONÇA JR., 2014).

Nas décadas seguintes, os estudos da Comissão tiveram sua continuidade, acompanhando as mudanças conjunturais que se apresentavam. Porém, ainda que outros mecanismos de cooperação e convergência regional tenham surgido entre 1960 e 1980, como a Associação Latino Americana de Integração (ALADI) e a Comunidade Andina de Nações (CAN) em 1969, neste período, a ocorrência de golpes militares no continente, assim como a instauração de ditaduras, contribuíram para o distanciamento político na região dando forma a um novo arranjo regional a partir do final da década de 1980.

Passados os anos oitenta, a chamada década perdida na América Latina, e com o processo de redemocratização no continente, abriu-se espaço para que a influência dos estudos econômicos e de projeção de um cenário integracionista regional voltasse a atuar através da CEPAL. Assim, a década de 1990 inaugurou um novo caminho da instituição no modo de se pensar a integração latino-americana, o qual ficou conhecido como “Nova CEPAL” (HAFFNER,  2002).

Nesse período houve uma mudança de ótica sobre a integração regional. De maneira contrária ao estímulo do desenvolvimentismo característico do “regionalismo fechado”, entrou em cena o “regionalismo aberto” significando uma política de inserção regional à globalização (BERNAL-MEZA, 1999) através de uma economia de mercado mais dinâmica com objetivo de construir maiores laços com terceiras partes, além de defender os regimes democráticos ocidentais (SARAIVA, 2012). Tais iniciativas começaram a convergir com políticas neoliberais bastante visíveis em países como Argentina, Brasil, Uruguai, Paraguai, Chile, Bolívia, Equador, Venezuela e Colômbia através de privatizações de empresas estatais, desregulamentação econômica e liberalização unilateral do comércio exterior (MONIZ BANDEIRA, 2002).

A “Nova CEPAL” via o processo de globalização como algo irreversível com o qual os países da região deveriam lidar. Contudo, propôs a “Transformação produtiva com equidade” como uma alternativa às medidas neoliberais de inserção no mercado internacional (HAFFNER, 2002) procurando alternativas de fortalecimento do setor de produção regional em concordância a políticas sociais mais equitativas.

Nos anos 2000 a agenda cepalina continuou com preocupações similares à década anterior, quais sejam questões sobre desenvolvimento, globalização e cidadania. Entretanto,  em comunhão ao novo processo político regional sul-americano aqui denominado de “onda rosa” (MENEZES; MARIANO, 2016), a organização voltou seus olhos à temática de inclusão social, a exemplo da proposta de trabalho “La hora de la igualdad: brechas por cerrar, caminos por abrir” em 2010, reafirmando o papel primordial que o Estado deveria ter nesse processo.

Na atualidade, a CEPAL vem trabalhando com o lema “Por um Desenvolvimento Sustentável com Igualdade” sustentado no empenho da Organização das Nações Unidas (ONU) em promover e articular os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) lançados em 2015 como um atualização dos prévios Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). Necessariamente estando atrelada à uma agenda global, o pensamento cepalino viu como viável continuar pensando o desenvolvimento latino-americano e caribenho, mas desta vez atrelado à dinâmica da “Agenda 2030” de impulso às políticas ambientais e climáticas.

O estruturalismo da CEPAL marca, por excelência, todo seu trabalho tanto científico quanto político de atuação na América Latina e no Caribe desde seu início no final dos anos quarenta. Por mudanças históricas que vão desde visões desenvolvimentistas atreladas a governos ditatoriais e democráticos, regionalismos mais nacionalistas ou até mesmo liberais e câmbios de agendas e pautas globais, a Comissão ateve-se a cada momento buscando atualizações sem perder sua essência de ser uma organização da região voltada a entender seus próprios problemas. Se, conforme disse o pintor uruguaio Torres García, “Nosso norte é o sul”, a CEPAL pode ser considerada o emblema desse pensamento. Ou seja, refletir sobre a ótica “centro-periferia” desde a própria margem do sistema.

Referências

BERNAL-MEZA, Raúl. Políticas Exteriores Comparadas de Brasil e Argentina rumo ao Mercosul. RBPI, 42 (2), 1999, pp. 40-51.

BIELSCHOWSKY, Ricardo. Evolución de las ideas de la CEPAL. Revista Cepal, número extraordinário, Santiago, Chile, 1998, pp. 21-46.

CEPAL. La CEPAL: Un Patrimonio de América Latina y el Caribe: setenta años apoyando el desarrollo sostenible con igualdad. Revista Cepal. Santiago, Ed. especial 70 años, 2018. Disponível em: <http://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/43308/4/CEPALpatrimonio2018_es.pdf> Acesso em 02 mar. 2018.

HAFFNER, Jacqueline Hernández. A CEPAL e a integração regional latino-americana. Análise Econômica. Porto Alegre, v. 20, n. 37, mar. 2002.

MENDONÇA JR., Wilson. O regionalismo Pós Liberal na América do Sul. Conjuntura Internacional. Belo Horizonte, v. 11, n. 1, p. 18-24, 1º sem. 2014.

MENEZES, Roberto Goulart; MARIANO, Karina Lilia Pasquariello. O Brasil e a trajetória recente da integração sul-americana 2008-2015: liderança, competição e novos rumos. Anais do 10º Encontro da ABCP, Belo Horizonte, MG, 2016.

MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. As políticas neoliberais e a crise na América do Sul. RBPI, 45 (2), 2002, pp. 135-146.

PREBISCH, Raul. El desarrollo económico de la América Latina y algunos de sus principales problemas. Santiago: CEPAL, 1948.

PREBISCH, Raul. Hacia Una Dinámica del Desarrollo Latinoamericano: Con un apéndice sobre el falso dilema entre desarrollo económico y estabilidad monetaria. Ciudad de Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1963.

SARAIVA, Miriam Gomes. Encontros e Desencontros. O lugar da Argentina na política externa brasileira. Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2012.

Escrito por

Cairo Junqueira

Professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe (DRI/UFS). Doutor em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Mestre em Relações Internacionais, com ênfase em Política Internacional e Comparada, pela Universidade de Brasília - Instituto de Relações Internacionais (UnB/IREL). Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca (UNESP/FCHS). Foi Pesquisador Visitante junto à Facultad de Ciencias Sociales de la Universidad de Buenos Aires (UBA) - PPCP/Mercosul/CAPES. Atualmente é membro do Observatório de Regionalismo (ODR) vinculado à Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (REPRI) e do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPPs), além de ser colaborador do Projeto de Extensão "Internacionalização Descentralizada em Foco" (IDeF). Por fim, é coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Política Internacional e Sul-Americana (GP-SUL) com as seguintes linhas de interesse: Instituições Internacionais, Integração Regional e Paradiplomacia.