Na semana que marca a abertura do ciclo de publicações semanais de 2019, o Observatório de Regionalismo traz um artigo do pesquisador convidado Guilherme Frizzera, Mestre em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo (PROLAM/USP) e Doutorando em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (IREL/UnB). O ODR Convida é um espaço em que se busca diversificar e ampliar o escopo de nossas observações, a partir da colaboração de pesquisadores convidados.


O corpo do libertador e general Simón Bolívar[i] já não era o mesmo de antes. Pálido, muito magro e fraco, não se parecia mais com a figura que por anos lutou pela independência das colônias hispânicas na América do Sul. Ao chegar em Santa Marta, onde seria o seu túmulo, passou os seus últimos dias em vida praticamente prostrado em sua cama, esperando pelo dia do juízo final. A luta de Bolívar e dos demais Libertadores da América tinha por princípio, claro, a emancipação política dos vice-reinados espanhóis. Esta luta de libertação não ficou restrita somente em buscar o fim de séculos de submissão à metrópole, mas também buscar a construção de uma nação. Esta “nação” não simbolizava a construção de um único Estado, mas a confederação de países, integrados e compartilhando um conjunto de regras, normas e valores. Um modelo muito parecido com os Estados Unidos pós-independência[ii]. Mas o mais importante era garantir que esta união pudesse encontrar uma forma de defesa da América do Sul.
Dentre as principais preocupações por parte de Simón Bolívar estava de garantir a existência de um exército forte, capaz de frear qualquer tentativa de reconquista por parte da Espanha ou do expansionismo territorial perpetrado pelos Estados Unidos. Ao longo da história da América do Sul, esta preocupação com países estrangeiros que pudessem representar um risco à soberania ou a sobrevivências dos Estados representa um dos marcos identitários da região, sobrevivendo ao longo de 200 anos de história. O que não significa, todavia, que os países sul-americanos sempre tiveram um ordenamento conjunto sobre esta questão e uma ausência de conflitos. Mas o ideal, sim, sempre existiu no regionalismo da América do Sul. Esta importância na questão da defesa da soberania levou a dois movimentos: a importância da constituição de exércitos nacionais e a unidade da região.
Bolívar dizia que era mais importante, quando dos processos de independência, constituir um exército nacional forte e unificado do que construir uma nação. A relação era de causa e efeito: uma nação apenas poderia se constituir, se manter e progredir a partir do momento que tivesse homens capazes de garantir a sua sobrevivência e soberania. Isso demandaria disciplina, treinamento, hierarquia e inclusão de nacionais, deixando de lado a ajuda de mercenários estrangeiros. Esta foi uma dificuldade encontrada por Bolívar e pelos demais libertadores, como Francisco de Miranda e San Martín, pela ausência de preparo dos criollos nas forças armadas, tanto de estratégia de combate quanto no seu preparo intelectual. Em outras palavras, os homens não estavam preparados para combater e nem por lutar pelo ideal de independência e união. Nesta época, foram firmadas importantes alianças militares tanto com potências estrangeiras, principalmente com a Grã-Bretanha, quanto com países recém libertos como o Haiti. Grande parte dos exércitos eram constituídos por veteranos das guerras napoleônicas e, numa certa fase do processo revolucionário de Bolívar, sem o apoio e suporte material do Haiti, a vitória contra a Espanha seria praticamente impossível. Portanto, ao mesmo tempo em que afirmava da necessidade em contar com um exército nacional forte para garantir a emancipação política das antigas colônias espanholas, o uso de material bélico e humano exterior foi fundamental para a independência da América do Sul.
Vale ressaltar que, apesar de uma forma completamente diferente de como conseguiu a sua independência, o Brasil também compartilhava deste medo de reconquista por parte de potências europeias. Porém, devido a um processo de ruptura mais brando e menos traumático, além do formato de organização política imperial, a constituição de seu exército e a ideia de necessidade de proteção a sua soberania foram mais bem-sucedida à princípio.
Vamos dar um salto temporal. Duzentos anos depois dos acontecimentos sumarizados acima, experimentamos um novo debate entre soberania, reconquista e presença militar de uma nação estrangeira. Sendo claro, a recente repercussão sobre a intenção por parte dos integrantes do atual governo de Jair Bolsonaro em cooperar com os Estados Unidos para a implantação de uma base militar em território brasileiro[iii].
A suposta identificação ideológica entre a cúpula política do Brasil com a administração do presidente Donald Trump seria um facilitador para a entrada de militares dos EUA. Há uma divergência sobre os termos, se seria um acordo que garantiria o acesso à base de lançamento de foguetes de Alcântara ou se uma instalação de uma base militar plena. Mas, independentemente do que seja, a notícia causou abalos sísmicos entre militares, políticos e nos formadores de opinião. Afinal, estaria o Brasil cedendo sua soberania? Não é bem assim.
Se considerarmos que as organizações importam e que suas construções institucionais, normas, regras e objetivos refletem os interesses dos Estados, não deveríamos, em um primeiro momento, entrar em histeria. Desde 2008, com a criação do Conselho de Defesa Sul-Americano da UNASUL (CDS), os seus objetivos são cristalinos em relação da necessidade da região se integrar e pensar a defesa de maneira original, própria, sem se submeter necessariamente a uma agenda de defesa externa e imposta. Dado os desafios que a América do Sul viria a enfrentar nos próximos anos, a necessidade de criar estratégias de defesa, indústrias bélicas, realização de exercícios conjuntos, criação de escolas de estudos de defesa que integrasse os militares e acadêmicos sul-americanos e dentre outras propostas, teve como um espectro uma possível “ameaça externa”. Esta ameaça estaria de olho nos recursos naturais abundantes da América do Sul e as guerras do futuro seriam marcadas por acesso à recursos escassos como grãos, água, biodiversidade e recursos energéticos[iv]. Por fim, o estabelecimento do CDS representou uma diminuição da pauta da “agenda hemisférica de segurança” da Organização dos Estados Americanos e um foco exclusivo na e da América do Sul.
A participação dos militares e do Ministério da Defesa do Brasil foi fundamental para a construção e elaboração dos objetivos do CDS. A participação direta dos militares é a peça fundamental para o sucesso da implantação de um organismo voltado exclusivamente para a defesa. Acrescenta-se que nas administrações Lula da Silva, Rousseff e Temer, a participação do Ministério da Defesa na agenda internacional do Brasil foi de um protagonismo crescente, principalmente em seu entorno regional.  Não somente, o CDS é um dos poucos que produz resultados[v]. Apesar da aparente falta de mobilidade da UNASUL e a autossuspensão da participação de alguns países, dentre eles o Brasil, dificilmente os valores que motivaram a construção deste organismo teriam uma mudança radical de rumos. Em outras palavras, se o que motivou a criação do CDS foi a necessidade de criar um mecanismo de integração em assuntos de defesa visando, dentre os objetivos, uma ameaça externa aos países da América do Sul, como que estes mesmos militares estariam dispostos a colaborar com a implantação de uma base dos EUA em território brasileiro?
Há duas rotas em evidente contraste: o núcleo político do governo Bolsonaro, que pretende se alinhar automaticamente aos desígnios dos EUA, seja pela ideologia ao qual alguns de seus integrantes acreditam ou por um interesse estratégico em curto prazo; e os militares, que ao longo da história mostram-se céticos a qualquer alinhamento automático. O núcleo militar deixa claro que certas idiossincrasias daquele grupo não passam de mera verborragia sem chances de sucesso. Contrariaria valores e visões intrincados aos militares brasileiros, principalmente aos dedicados ao árduo esforço de estudar e se preparar intelectualmente, de que nada é mais sagrado do que garantir a soberania brasileira e lutar contra quaisquer interferências estrangeiras em território nacional. Estes valores tão caros se transformaram inclusive em algo maior como o Conselho de Defesa Sul-Americano, demonstrando a importância do regional, sem exclusão de nenhum país sul-americano, para garantir a não interferência externa. Ademais, apesar da configuração política da região pender a balança para direita, não significa que os nossos vizinhos compartilham do mesmo espírito de alinhamento automático com os EUA e, muito menos, com a instalação de uma base militar. Uma atitude assertiva como essa não passaria sem agitar as águas do Rio da Prata.
Depois de muita luta para garantir a emancipação política da América do Sul, Bolívar já não tinha certeza se o seu ideal de união obteria sucesso. Muitas brigas internas, principalmente entre os grupos políticos, a ausência de exército nacional forte e a interferência de potências externas nas políticas domésticas contribuíam para um cenário de incertezas. O General se via em um labirinto e dele não via saída. Isto levaria ao seu fim, como magnificamente romanceado por Gabriel García Márquez[vi]. A ideia do governo Bolsonaro de colocar uma base militar dos EUA no Brasil dificilmente se concretizaria. A cooperação para utilização da Base de Alcântara, talvez possa ter alguma chance de acontecer, principalmente devido a cooperação técnica e desenvolvimento tecnológico. Mas dificilmente os militares permitiriam a instalação de uma base militar estrangeira em território brasileiro. Seria contra os seus valores, doutrina e histórico. Uma movimentação que atente contra esse conjunto descrito colocaria o Capitão em risco de encontrar o seu próprio labirinto. Com um possível rompimento entre as alas política e militar, isto podendo dar fim à institucionalização conjunta entre as forças militares da América do Sul que a uma década tem contribuído, mesmo que timidamente, para a integração da região. Por fim, perderíamos a possibilidade de construção de um pensamento próprio de defesa, nos tornando importadores de uma agenda definida externamente.

[i] Para conhecer a biografia de Simón Bolívar e referência para a construção do argumento deste texto: ARANA, Marie. Bolívar: o Libertador da América. São Paulo: Três Estrelas, 2015.
[ii] HARVEY, Robert. Liberators: Latin America’s Struggle for Independence. Woodstock: The Overlook Press, 2000.
[iii]Sobre esta questão: https://istoe.com.br/bolsonaro-aceita-discutir-no-futuro-base-militar-dos-eua-no-brasil/ Acesso: 31/01/2019
[iv] MEDEIROS FILHO, Oscar. A Construção de uma identidade regional de Defesa para a América do Sul: Agendas e Desafios. Lua Nova, São Paulo, 101: 203-220, 2017.
[v] FUCCILLE, Alexandre. Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS): balanço e perspectivas. IX Encontro ABCP, 2014. Disponível em: https://cienciapolitica.org.br/system/files/documentos/eventos/2017/04/conselho-defesa-sul-americano-cds-balanco-e-perspectivas-714.pdf Acesso: 31/01/2019.
[vi] Sobre a obra mencionada e inspiração para este texto:  MÁRQUEZ, Gabriel García. O General em seu labirinto. Rio de Janeiro: Editora Record, 1989.

Escrito por

Observatório de Regionalismo

O ODR (Observatório de Regionalismo) realiza entrevistas com autoridades em suas áreas de conhecimento e/ou atuação, lançando mão de diversas mídias à divulgação do material elaborado.