De acordo com a edição 33 do jornal Le Monde Diplomatique, em janeiro de 2010, a Universidade de Nottingham, na Inglaterra, reuniu cerca de uma centena de pesquisadores para analisar o movimento político que ocorreu na América Latina, de 1998 a 2006, caracterizado pela ascensão ao poder, por meio de vitórias nas eleições presidenciais, da esquerda ou da centro-esquerda. O fenômeno, considerado relativamente novo na região, foi denominado “onda rosa” ou “guinada à esquerda”.

Quando a maioria dos governos sul-americanos se tornou de esquerda, reabriu-se um antigo debate acerca de estruturas, até então, consolidadas na América Latina, levantando-se questões como: o neoliberalismo falhou enquanto projeto de desenvolvimento latino-americano? Para mudar as “regras do jogo” é preciso tomar o poder? É possível transformar o status quo após à chegada ao poder?

O processo da chamada onda rosa se iniciou com a eleição, em 1998, de Hugo Chávez na Venezuela. Coincidentemente, sua reeleição, em 2006, fechou um ciclo de “triunfo da esquerda” na região, abrangendo Chile, Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia, Peru, Nicarágua e Equador. Além disso, nos anos que se seguiram, houve as vitórias presidenciais de Cristina Kirchner (2007-2015), na Argentina; José “Pepe” Mujica (2010-2015), no Uruguai; Rafael Correa (2007-2017), no Equador; Evo Morales (2006 a atual), na Bolívia; Dilma Rousseff (2011-2016), no Brasil; Ollanta Humala (2011-2016), no Peru; e Michelle Bachelet (2006 a atual), no Chile.

Segundo o jornal francês Libération, não foi “a esquerda” que conquistou a América Latina, e sim “as esquerdas”. Este processo mostrou que a onda rosa não significou necessariamente a construção de uma unidade entre os países. Representou “um movimento plural com diversas características semelhantes mas que, devido a especificidades locais, fica evidente que se trata de um fenômeno heterogêneo” (ARANTES, 2016, p. 64).

Segundo as análises provenientes da Universidade de Nottingham, para os pesquisadores argentinos Juan Grigera e Luciana Zorzoli, o desejo do ex-presidente Néstor Kirchner (2003-2007) era, sobretudo, restaurar a governabilidade; sem alterar, no entanto, o modelo econômico do país. Esta observação, em parte, responde negativamente à primeira indagação sobre a possibilidade de queda do paradigma neoliberal como dominante na região.

Para Sara Motta, em países como o Brasil, o Uruguai e o Chile, medidas de assistencialismo levaram ao que ela chamou de “naturalização da pobreza”, tendência a tratar das desigualdades como um fator intrínseco do sistema e, portanto, impossível de serem erradicadas[1]. Este pensamento leva a crer que, ao contrário da ideia de crise do modelo neoliberal, os países latino-americanos encontraram muito mais medidas de conformação, do que de combate, às suas características.

Motta ressaltou que o interesse de classes dominantes de que governos oriundos de forças populares cheguem ao poder é, justamente, enfraquecer sua capacidade de resistência. Dessa forma, a reflexão que nos cabe aqui é: até que ponto o apoio de um conjunto ideológico sólido é capaz de ajudar os governos de esquerda a resistirem aos fenômenos de cooptação das classes dominantes?

No que diz respeito à integração regional, os novos governos, tidos como progressistas, passaram a promover iniciativas regionais que marcaram um momento de inflexão na região. Dentre as três principais propostas, tem-se a Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América – Tratado de Comércio dos Povos (ALBA-TCP), a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). Da mesma forma, embora o Mercado Comum do Sul (Mercosul) tenha nascido em meio à hegemonia do pensamento neoliberal, o bloco também não ficou imune às mudanças provocadas pela ascensão de líderes progressistas, desenvolvendo seu viés social a partir da primeira década do século XXI.

Uma vez que as novas iniciativas não contavam com a participação dos Estados Unidos, uma ampla crítica ao paradigma liberal fez nascer um novo conceito de regionalismo, caracterizado como pós-hegemônico, “que inspirava não apenas as iniciativas de integração intra-regionais durante os anos 90, mas também grande parte da agenda doméstica de política econômica nos países da região” (MOTTA VEIGA; RIOS, 2007, p. 82).

O cenário político atual, entretanto, mostra o retorno de governos de centro-direita ao poder. O que teria causado, então, o desgaste precoce dos movimentos progressistas?

Para Visentini (2015), o principal fator explicativo foi a crise econômica internacional, iniciada nos EUA, em 2008, que reduziu a demanda e os preços das matérias-primas exportadas pela América do Sul, aumentando assim a concorrência global. Pressões monetárias, redução induzida do preço do petróleo, reações diplomáticas e intensa mobilização midiático-ideológica culminaram em elites e classes médias opositoras e ressentidas. Neste embate, emergiram contradições e debilidades dos projetos no poder.

Além disso, esses governos produziram contradições impressionantes, ao apoiar a construção de infraestruturas, agronegócio, mineração e energia; ao mesmo tempo em que empoderavam parcelas da sociedade civil contrárias a tais políticas.

Nos últimos dois anos, governos de direita e centro-direita começaram a resgatar o poder nos países latino-americanos. Ao contrário do que se pode afirmar, através de uma leitura simplista, recuperar o poder não garantirá que tudo volte a ser como antes. Enfrentamos um cenário de redução do consumo, explosão do dólar, erosão da governança e, especialmente no Brasil, questionamento de certos parâmetros jurídicos. O cenário é incerto. Se a onda rosa chegou ao fim ou não, ainda é difícil determinar quais os novos rumos que a América Latina seguirá.

[1]De acordo com Arantes (2016), para o pensador político Bobbio (1995), a esquerda entende que as desigualdades, sendo sociais, são passíveis de redução. Para a direita, as desigualdades são naturais e, portanto, não se pode eliminá-las.

ARANTES, P. C. V. M. Grandes transformações na América Latina? A onda rosa, a Bolívia e o contramovimento. Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais: Belo Horizonte, 2016.
LAMBERT, R.. A onda rosa. Le Monde Diplomatique. Ed. 33. Abril, 2010. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/a-onda-rosa>.
MOTTA VEIGA, P.; RÍOS, S. O regionalismo pós-liberal na América do Sul: origens, iniciativas e dilemas. CEPAL: Santiago, julho, 2007. 48 p.
‘ONDA rosa’ latino-americana não significa unidade regional, diz jornal. BBC Brasil.05 dez. 2006. Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/reporterbbc/story/2006/12/061205_pressreviewrw.shtml>.
VISENTINI, P. F. O declínio da “onda rosa” latino-americana.2015. Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2015/12/paulo-fagundes-visentini-o-declinio-da-onda-rosa-latino-americana-4928654.html>.

Escrito por

Ana Elisa Thomazella Gazzola

Professora de Relações Internacionais na UNIP. Doutoranda e mestra do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas - UNESP, UNICAMP e PUC-SP, desde 2015, com foco em processos de Integração Regional na América do Sul. Pesquisadora do Observatório de Regionalismo (ODR) e da Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (REPRI). Pós-graduada em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas (2013). Graduada em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2009).