O debate em torno do regionalismo sul-americano, segundo Pía Riggirozzi (2018, p. 3-4), busca explicar como os projetos regionais atuais evoluem, levando-se em conta três dimensões. A primeira define o regionalismo como uma progressão liberal do capitalismo global em que é parte da convergência ou divergência em relação à globalização neoliberal. A segunda o apresenta como uma resposta geopolítica e econômica à hegemonia regional, tendo na defesa da autonomia o motor de políticas que movem a coordenação regional. A terceira e última dimensão trata o regionalismo como integração através de projetos intergovernamentais e institucionalizados segundo as reflexões acerca do desenvolvimento da União Europeia (UE).

Em relação à primeira dimensão, é importante lembrar que os processos de integração regional, durante os anos de 1990, passaram a ser instrumentos através dos quais os países em busca de desenvolvimento lutariam pela reforma de uma ordem internacional desigual e contra os efeitos nocivos da globalização.

O governo brasileiro acelerou a criação do Mercado Comum do Sul (Mercosul), atribuindo-lhe o papel estratégico de preparar o país para a acirrada competição da economia global, bem como de aumentar o poder de barganha nas negociações, inicialmente sobre o comércio hemisférico com os Estados Unidos (CRUZ, 2010, p. 52); e, depois, no nível multilateral, fortalecendo a imagem do Brasil dentro da Organização Mundial do Comércio (OMC). O multilateralismo era o instrumento pelo qual os países em desenvolvimento resolveriam seus conflitos, especialmente em relação aos EUA e à União Europeia, tomando decisões internacionalmente com pragmatismo. Ao atenuar o unilateralismo, por meio do fortalecimento de relações bilaterais e multilaterais, o Brasil aumentaria o peso do país nas negociações políticas e econômicas internacionais. O G-20 produziria uma resposta intermediária entre o liberalismo incentivado pelos EUA e o protecionismo europeu na questão agrícola, buscando o equilíbrio com grandes produtores do agronegócio, como a Argentina e o Brasil; e países com foco na agricultura de subsistência, como a China e a Índia (RAMANZINI JÚNIOR, 2012).

Além disso, o objetivo de materializar estas diretrizes refletiu o princípio de solidariedade da cooperação Sul-Sul, a partir do fomento de negociações comerciais internacionais e de coordenação política com países em desenvolvimento e emergentes, com destaque para Índia, África do Sul, China e Rússia.

Quanto à segunda dimensão, a relação brasileira com os EUA se constituiu, desde o século XIX, como predominantemente cooperativa. As diferenças mais importantes entre eles, durante os anos 1990, tinham como foco a pretensão norte-americana de criar um espaço econômico homogêneo no hemisfério, sob sua liderança. Em 1994, o projeto da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) é lançado, de forma a gerar reações negativas no Brasil que usaria o Mercosul como instrumento de fortalecimento de sua posição na América do Sul e contenção do avanço dos EUA por toda a América.

É importante lembrar que, durante quase trinta anos, a diplomacia brasileira construíra um modelo de atuação e um discurso cujo princípio regulador era a noção de autonomia, entendida como a condição necessária para a plena realização do projeto nacional de desenvolvimento (CRUZ, 2010, p. 55).

No que se refere à terceira dimensão, a consolidação institucional do Mercosul e a criação da União das Nações Sul-americanas (Unasul) podem ser consideradas as maiores expressões do regionalismo enquanto integração através de projetos intergovernamentais institucionalizados, envolvendo o Brasil. Segundo discurso do ex-presidente Lula (2007), “fizemos do entorno sul-americano o centro de nossa política externa. O Brasil associa seu destino econômico, político e social ao do continente, ao Mercosul e à Comunidade Sul-Americana de Nações”.

Quando se trata de contextualizar estas três dimensões de acordo com a condução externa do Brasil, pode-se assumir que a primeira ação diplomática da gestão de José Serra, durante o governo Temer, foi no âmbito regional sul-americano, com a criação de um mecanismo de coordenação política entre Brasil e Argentina, a fim de conferir maior formalidade e regularidade às reuniões entre as chancelarias. De modo geral, a priorização do acordo entre o Mercosul e a União Europeia, a retomada do viés comercial, o isolamento diplomático da Venezuela e a baixa participação do Brasil nos fóruns multilaterais marcam o novo horizonte da política exterior brasileira.

As negociações com a União Europeia não são recentes na história do Mercosul. Entretanto, desde 2012, não havia uma rodada plena de negociações entre os blocos, que acabou por se realizar em outubro de 2016. Segundo o Itamaraty,

Os negociadores discutiram todos os textos e regras objeto da negociação. Também houve intercâmbio de pontos de vista sobre como progredir em temas de acesso a mercado. De maneira geral, os negociadores-chefes expressaram sua satisfação com os resultados de um encontro produtivo e construtivo, que resultou em progresso numa série ampla de áreas (ITAMARATY, 2016).

Apesar do tom otimista do comunicado, é possível interpretar que a imprecisão das informações já demonstra os poucos avanços alcançados. Ao mesmo tempo em que, neste último dia 23, o ministro interino da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, Marcos Jorge, tenha afirmado que há chances de o acordo ser anunciado na próxima reunião de ministros dos dois blocos, em março; o ministro francês da transição ecológica, Nicolas Hulot, declarou que o tratado de livre comércio entre eles é inaceitável. O forte protecionismo europeu e o recente escândalo envolvendo 21 frigoríficos brasileiros que pagavam propinas a inspetores são alguns dos elementos atuais que travam as negociações.

Nota-se que o Brasil iniciou uma série de reuniões com países europeus, como Países Baixos, Suíça, Finlândia e Dinamarca, com a intenção de avançar nas negociações do acordo entre os blocos. Da mesma forma, buscou o Reino Unido com o objetivo de repassar temas econômicos, comerciais e financeiros da agenda bilateral. Em dezembro de 2016, foi realizada em Davos uma reunião entre os países da Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA) e o Mercosul, para negociar um acordo de livre comércio. Estas negociações bilaterais paralelas também apontam os rumos da nova política externa do governo Temer, com caráter marcadamente mais comercial.

No que se refere ao relacionamento do Brasil com os EUA, ainda durante sua campanha, o presidente norte-americano Donald Trump citou o Brasil entre países que, segundo ele, tiram vantagens da nação americana por meio de práticas comerciais injustas; ainda que a balança comercial entre eles seja favorável ao país norte-americano. Para Cristina Pecequilo (BBC, 2016), de modo geral, a nova agenda mostra tendências de distanciamento aos temas ligados à América Latina. Mesmo que a gestão do republicano se apresente como um elemento de imprevisibilidade, o Brasil deve perder relevância na visão dos Estados Unidos dado o seu conturbado cenário interno atual.

Em relação ao entorno regional sul-americano, a busca pelo isolamento diplomático da Venezuela dentro do Mercosul tem marcado a tônica da política externa brasileira. Além de comunicados conjuntos lamentando os atos de violência registrados no país, bem como o desrespeito à democracia; os quatro membros fundadores do Mercosul aprovaram, em 2016, a “Declaração Relativa ao Funcionamento do Mercosul e ao Protocolo de Adesão da República Bolivariana da Venezuela”, impedindo este país de assumir a Presidência Pro Tempore do bloco, enquanto não se adequar às normas e acordos vigentes em seus tratados.

Segundo o Itamaraty (2016), entre as normas e acordos que ainda não foram incorporados ao ordenamento jurídico da Venezuela, estão: a) o Acordo de Complementação Econômica nº 18, de 1991, que convenciona um programa de liberalização comercial conjunta; b) o Protocolo de Assunção sobre Compromisso com a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos do Mercosul, de 2005, que estabelece que nos países do bloco deve haver “a plena vigência das instituições democráticas e o respeito dos direitos humanos e das liberdades fundamentais”; e, por fim, c) o Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercosul, de 2002, que estabelece que os habitantes de um Estado-membro podem obter residência legal em outro país membro do bloco.

É importante notar que essa crise política enfrentada pelo bloco, e que se estende até os dias de hoje, também é um fator que dificulta as negociações conjuntas do Mercosul com a UE.

Já no que concerne à União de Nações Sul-Americanas (Unasul), durante o governo Temer, a crise da política brasileira atual tem seus reflexos mais claros. O secretário-geral da organização, Ernesto Samper, fez duras críticas ao processo de impeachment de Dilma Rousseff e, mesmo reiterando o trabalho conjunto com o governo interino, assinou em janeiro de 2018, um manifesto em defesa da candidatura do ex-presidente Lula às eleições gerais que ocorrerão neste ano no Brasil.

Quanto ao impedimento da ex-presidente, Samper advertiu que o julgamento do processo contra Rousseff poderia representar uma ruptura e expunha o Brasil à aplicação da cláusula democrática da Unasul, que contempla sanções aos países que se afastam da ordem constitucional. Apesar do caráter especulativo, é relevante também o fato de que, no mural de fotos dos chefes de Estado, na sede da Unasul, o lugar reservado ao Executivo brasileiro foi ocupado por uma bandeira do país, logo após Temer assumir o governo interino.

De acordo com Riggirozzi (2018, p. 4-5), as principais motivações do regionalismo sul-americano se concentram, por um lado, na gestão das tensões entre a autonomia política e econômica frente às influências externas; e, por outro, na busca de cooperação para o desenvolvimento econômico e social. De maneira geral, isto se confirmou no caso brasileiro, enquanto, durante o governo Lula, buscou-se administrar suas relações com os países desenvolvidos, sem perder de vista sua autonomia; ao mesmo tempo em que se estabeleciam as bases de cooperação com o Sul do hemisfério com a finalidade de alcançar maior desenvolvimento econômico e social. Entretanto, a atuação internacional menos ativa do governo Rousseff, que se estendeu ao governo Temer, bem como a instabilidade política pela qual passa o Brasil hoje têm criado incertezas quanto ao equilíbrio brasileiro com os países e organizações na região.

Para Riggirozzi (2018, p. 3), o regionalismo na América do Sul não se concebeu como uma restrição à autonomia nacional, se não como um conjunto de instituições que potencializam ao invés de limitar as decisões nacionais. Será que isso vai se confirmar nos próximos anos?

Referências Bibliográficas
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Escrito por

Ana Elisa Thomazella Gazzola

Professora de Relações Internacionais na UNIP. Doutoranda e mestra do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas - UNESP, UNICAMP e PUC-SP, desde 2015, com foco em processos de Integração Regional na América do Sul. Pesquisadora do Observatório de Regionalismo (ODR) e da Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (REPRI). Pós-graduada em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas (2013). Graduada em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2009).