Imagem Consulado México SP Jun/2025 (embamex.sre.gob.mx/brasil/index.php/otras-representaciones/sao-paulo)

O dia 02 de junho de 2025 ficará marcado na história do México, tendo sido realizado o primeiro pleito eleitoral para cargos do Poder Judiciário no país. Trata-se do maior experimento do tipo já realizado.

Alguns exemplos dos poucos países que realizam eleições diretas para os membros do Judiciário são a Bolívia, na qual há a eleição somente para alguns postos e, ainda assim, mediada pelo Poder Legislativo, e os Estados Unidos da América (EUA), no qual, à altura deste artigo, 38 dos 50 estados realizam algum tipo de eleição para ao menos parcela de seus juízes, com regras variando entre as localidades.

Todavia, a experiência mexicana é a mais emblemática dada a abrangência nacional das eleições, o peso demográfico de mais de 98 milhões de eleitores aptos a votar, bem como o escopo alargado, com a eleição de membros para todas as instâncias judiciais, incluindo os 9 juízes da Suprema Corte de Justiça da Nação.

Foram mais de 11.000 inscrições, a partir das quais cerca de 4.000 candidaturas foram autorizadas. As regras para a realização de campanhas por parte dos candidatos envolveram, entre outros aspectos, a vedação ao financiamento público ou privado.

As eleições judiciais mexicanas fazem parte da etapa que foi tratada como “quarta transformação” por parte do ex-presidente Andrés Manuel López Obrador (AMLO) e seus correligionários do MORENA (Movimento Regeneração Nacional). A proposta de realização deste tipo de pleito foi encampada por AMLO, que não obteve o apoio parlamentar necessário para sua aprovação. Todavia a iniciativa foi levada a cabo e a aprovada após a assunção do novo governo de Claudia Sheinbaum.

Após a realização do pleito a atual presidenta afirmou que “o México é o país mais democrático do mundo” (AFP, 2025), dada a possibilidade de participação política da população para a eleição de membros dos três poderes. 

Delineado este quadro, cabe apontar se os objetivos inicialmente traçados de democratização do Judiciário e aproximação deste quanto ao controle e os anseios populares tendem a se materializar. Por certo que uma análise completa quanto às eleições judiciais, seus impactos e consequências ainda se mostra inviável e somente poderá ocorrer com o avançar do tempo. Entretanto, alguns apontamentos iniciais já podem ser trazidos buscando traçar as perspectivas a partir deste experimento único.

O primeiro ponto a se ponderar diz respeito justamente à participação do eleitorado; se no escrutínio presidencial de 2024 mais de 70 milhões de eleitores foram às urnas, desta vez o número ficou em menos de 13 milhões, algo em torno de 13% do eleitorado. Este número relativamente diminuto pode indicar um baixo engajamento popular, atenção aos apelos de boicote às eleições ou mesmo desinformação quanto ao que se estava decidindo, às propostas trazidas ou aos candidatos. No mais, a baixa adesão do eleitorado pode representar um obstáculo à legitimidade das eleições judiciais, dado o relativo baixo suporte popular conferido.

Já quanto à própria disputa, as regras de vedação ao financiamento de candidaturas levaram a que as campanhas focassem em determinadas bases geográficas e também acabassem migrando, em grande medida, para os espaços digitais, por meio de páginas na internet e redes sociais. Isto também pode representar uma problemática.

Estima-se que 25 milhões de mexicanos não possuem acesso à internet móvel, o que obstaculiza ou mesmo inviabiliza o acesso às informações sobre os candidatos e suas linhas de pensamento (TELETIME, 2025). Inobstante, as campanhas virtuais podem levar ao direcionamento do agir político do eleitorado. Isto porque as tecnologias de suporte não são neutras e há a possibilidade de implementação de instrumentos antidemocráticos de condução eleitoral, como bolhas informativas, direcionamento de conteúdos, psicogramas, efeito manada, entre outros. Ademais, há a possibilidade de impulsionamento pago de candidaturas no âmbito digital, o que poderia favorecer candidaturas de maior poder econômico.

Inobstante, a impossibilidade de financiamento eleitoral oficial poderia abrir margem a que candidaturas fossem cooptadas e financiadas por grupos ilícitos. No caso mexicano este aspecto toma contornos ainda mais severos, dada a questão de segurança pública que a décadas assola o país por conta da forte presença de carteis e grupos criminosos, sobretudo ligados ao narcotráfico. O risco de haver “narcojuízes” financiados por estas organizações criminosas não deve ser menosprezado e pode representar um risco a lisura do processo eleitoral ao Judiciário. Essa infiltração do narcopoder no Judiciário não apenas corromperia o processo eleitoral, mas comprometeria a própria função dos tribunais como garantes de direitos e da segurança pública.

Noutro plano, há, ainda que se pontuar a possibilidade de “juízes candidatos” encamparem ideias que destoem da tecnicidade esperada dos pensamentos jurídicos. Cuida-se de uma possível confusão entre pensamento jurídico e plataforma política, o que poderia afetar os pleitos eleitorais e também gerar suspeição e crise de credibilidade quanto às decisões judiciais. Por certo que não se espera que o Judiciário atue de forma neutra ou asséptica, fechando os olhos aos aspectos sócio-políticos de dada circunstância; entretanto, as decisões judiciais não devem ser parciais ou se confundir com decisões políticas em sentido estrito, defendendo determinados projetos de governo e ideologias ao sabor do solipsismo jurídico daquele que decide.

Nesta esteira, há que se cuidar para que os membros do Judiciário eleitos não sejam meras extensões dos pensamentos e propostas dos atores políticos que circunstancialmente exercem o poder. Isto poderia levar à cooptação do Judiciário por outros poderes, numa espécie de “court packing sufragado”, ou seja, a captura da corte por meio do voto, torna-se uma ameaça real quando a legitimidade dos eleitos é tão frágil.

Veja-se que o Judiciário deve manter sua independência e sua função no sistema de freios e contrapesos jurídico-políticos. Se, por um lado, a eleição de juízes parece aprofundar o princípio democrático ao submeter todos os poderes ao escrutínio popular, por outro, desafia o papel clássico do Judiciário como um poder contramajoritário. Este papel é essencial para a salvaguarda de direitos fundamentais e de minorias contra eventuais excessos da maioria, funcionando como pilar do sistema de freios e contrapesos. 

Os apontamentos trazidos buscam apenas refletir sobre as eleições judiciais de caráter único realizadas de forma arrojada pelo México, verificando, de início, se podem apontar a uma maior democratização da sociedade mexicana e mesmo servir de exemplo a outros países da região e do mundo. 

A este respeito, vale frisar que a democracia não se confunde ou limita aos processos eleitorais. Pelo contrário; este tipo de pensamento pode, inclusive, levar à circunscrição da própria democracia.

A democracia diz respeito, sobretudo, a um regime de conquistas e defesa de garantias, o que pressupõe uma ação defensiva por parte de cidadãos e instituições. Logo, requer-se Poderes competentes e independentes. Um Judiciário independente não significa um Poder alheio à realidade social, ensimesmado e encastelado por seus brocados em latim. Pelo contrário, o próprio princípio democrático demanda do Judiciário uma presença maior junto à sociedade, compreendendo suas demandas, valorando juridicamente as situações e circunstâncias sociais.

De se notar que, independentemente da realização de pleitos eleitorais, por certo que o Poder Judiciário pode e deve democratizar-se, sobretudo quanto ao acesso a cargos, participação popular, observância da realidade social, interação com os demais poderes, acessibilidade da justiça e garantia da efetividade de direitos.

Os impactos jurídico-políticos e sociais das eleições judiciais mexicanas ainda serão vistos ao longo do tempo e será importante acompanhar os desdobramentos deste experimento, seus impactos na materialidade democrática do Judiciário e as possibilidades de sua aplicação noutros contextos.

Referências

AFP. México terá Suprema Corte alinhada ao governo. Carta Capital. 2025. Disponível em https://www.cartacapital.com.br/mundo/mexico-tera-suprema-corte-alinhada-ao-governo/. Acesso em 15 jun 2025.

CONCI, Luiz Guirlherme Ancaro. Democracia constitucional e populismos na América Latina. São Paulo: Contracorrente, 2023.

TELETIME.150 milhões de pessoas não têm internet móvel na América Latina. Disponível em https://teletime.com.br/05/06/2024/250-milhoes-de-pessoas-nao-tem-internet-movel-na-america-latina/. Acesso em 15 jun 2025.

Escrito por

Renan Melo

Graduado em Direito pela PUC/SP e pela Universidade do Porto | Pós-graduado em Direito Civil (PUC/SP) e Direito Internacional (Escola Paulista de Direito) | Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP | Professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie | Advogado | Pesquisador | Escritor | Membro do Observatório de Regionalismo | Foi pesquisador do Lisbon Public Law Research Centre (LPL) da Universidade de Lisboa | Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP | Membro da Comissão Especial de Ação Social e Cidadania da OAB/SP | Membro da Comissão de Direito Aeronáutico da OAB/SP