Sobre o Tratado de Cooperação Amazônica e a Organização Multilateral

A ideia de reunir os países que compartilham o espaço amazônico sob a forma de uma organização política autônoma e com um parlamento próprio parece ter ganhado novo impulso na pauta regional.

Uma das principais iniciativas parte do Grupo Parlamentar da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica. Atualmente presidido pelo senador Nelsinho Trad (PSD-MS), o grupo atua no apoio das atividades de desenvolvimento do Parlamento Amazônico (Parlamaz) em parceria com parlamentares de outros países afetos, representantes da Organização do Tratado de Cooperação da Amazônia (OTCA), do Ministério das Relações Exteriores e de instituições parceiras (AGÊNCIA SENADO, 2024).

No último dia 5 de junho de 2024, dia mundial do meio ambiente, o Parlamaz, depois de quase quatro anos reativado após um período de dez anos sem atividade, retomou seus trabalhos, em Lima (Peru).

O Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) foi celebrado em 1978, contando com a adesão dos oito países sul-americanos que integram o espaço amazônico: Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela.

Cuida-se de instrumento jurídico de Direito Internacional que tem por objeto a promoção do desenvolvimento harmonioso e integrado da bacia amazônica, com base em um modelo de complementação econômica regional sustentável.

O TCA prevê a colaboração entre os países membros para promover a utilização racional dos recursos naturais; a liberdade e a proteção da navegação nos rios amazônicos; a preservação do património cultural; os cuidados com a saúde; a criação e a operação de centros de pesquisa; o estabelecimento de uma adequada infra – estrutura de transportes e comunicações; o incremento do turismo e o comércio fronteiriço (OEA, 1992).

Vale ressaltar que a versão final do TCA abrangeu os países da chamada Amazônia Continental ou Pan-Amazônia, não tendo havido a inclusão da Guiana Francesa como estado-membro. Inobstante parte do bioma se encontre na Guiana-Francesa, trata-se de um território ultramarino francês e não de um país soberano, sendo vedada sua presença no Tratado.

Na sequência da 5ª Reunião de Ministros das Relações Exteriores dos Estados Amazônicos, em dezembro de 1998, foi celebrado, em Caracas (Venezuela), o Protocolo de Emenda ao TCA que estabeleceu a estrutura organizacional do que coordenaria os esforços dos países integrantes do Tratado. Teve lugar, assim, a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), dotada de personalidade jurídica, podendo atuar no cumprimento do TCA junto aos países-parte e também a terceiros países e organizações internacionais.

Já o chamado Parlamento Amazônico (Parlamaz) corresponde a um colegiado de parlamentares dos países integrantes da OTCA. Entretanto sua atuação é ainda precária, não havendo disposições claras quanto à sua composição, competência e atuação. No mais, o Parlamaz “não conta ainda com reconhecimento formal da diplomacia internacional” (AGÊNCIA SENADO, 2023).

Instrumentos de cooperação

No âmbito do TCA está prevista a cooperação mediante ações bilaterais ou multilaterais, visando a promoção do desenvolvimento harmonioso dos respectivos territórios.

No cumprimento da Agenda Estratégica de Cooperação Amazônica, estão em execução diversos projetos, mormente nas áreas do meio ambiente, assuntos indígenas, recursos hídricos, ciência e tecnologia, saúde, turismo e inclusão social. Vale ressaltar o Projeto Monitoramento da Cobertura Florestal na Região Amazônica, que tem como objetivo o desenvolvimento regional da capacidade de monitoramento do desmatamento da Floresta Amazônica, com a instalação de salas de observação nos países-membros e de capacitação e intercâmbio de experiências em sistemas de monitoramento. Outra iniciativa de destaque é o projeto Ação Regional na Área de Recursos Hídricos (“Projeto Amazonas”), coordenado pela Agência Nacional de Águas do Brasil (ANA), o qual trata da gestão conjunta de recursos hídricos na bacia amazônica (MRE, 2022).

Diversas são as ações bilaterais conduzidas pelos países integrantes do TCA. Especificamente no que tange ao Brasil, vale destacar a implementação do Programa de Desenvolvimento Integrado para as Comunidades Fronteiriças Peru-Brasil e do Plano Modelo Colômbia-Brasil para o Desenvolvimento Integrado das Comunidades Fronteiriças do Eixo Tabatinga – Apaporis.

A OTCA conta, ainda, com o Observatório Regional Amazônico, que monitora questões relacionadas ao Comércio Internacional das Espécies Silvestres Ameaçadas de Extinção, biodiversidade, florestas, recursos hídricos, povos indígenas e mudanças climáticas (ORA, 2024).

Parlamaz e integração da Amazônia

A importância do espaço amazônico é patente, dos pontos de vista ambiental, social e econômico. Com população de cerca de 40 milhões de pessoas, a Amazônia ocupa 40% do território sul-americano e abriga a maior floresta megadiversa do mundo, habitat de 20% de todas as espécies de fauna e flora existentes. No mais, a Bacia Amazônica contém cerca de 20% da água doce da superfície do planeta (MRE, 2022).

A ideia que subjaz a OTCA é uma cogestão da Amazônia, de forma a coordenar esforços, integrar países, proteger o meio ambiente e os povos locais, além de criar estratégias conjuntas para o desenvolvimento sustentável da região.

Entretanto muitos ainda são os desafios encontrados nesta empreitada. O Parlamaz reuniria de forma efetiva e estruturada membros do Legislativo dos países-membros da OTCA com o objetivo de conferir representatividade aos habitantes da região, traçar metas, estabelecer regramentos para as ações a serem executadas no espaço amazônico, aprovar orçamento para atuação da Organização e fiscalizar os projetos em execução.

A ideia parece ambiciosa. De início tem-se a atuação de parlamentares para tratar exclusivamente de temas conexos à região amazônica no âmbito do TCA. Tal atuação poderia não trazer dividendos políticos aos integrantes da assembleia amazônica, dada sua baixa possibilidade, dificultando a adesão e a participação de parlamentares. Ainda nesta esteira, tem-se a questão da definição da composição do Parlamento, que precisaria conjugar representatividade cultural, diversidade e inclusão, bem como proporcionalidade demográfica e territorial. Os membros do Parlamaz teriam de possuir elevado conhecimento acerca da Amazônia e de seus povos, para poder desenvolver uma atuação mais acurada.

No mais, haveria que se ter uma definição clara do âmbito de competência do Parlamaz. Para tanto, os países integrantes da OTCA teriam de ceder parcela de sua autonomia quanto à atuação dos estados nacionais nos territórios abrangidos pelo Tratado, em prol de uma cogestão.

Há que se ponderar, ainda, os olhares do mundo à Amazônia, sobretudo dos países do chamado norte global, visando fiscalizar e participar da gestão do bioma. Tal fato se nota, por exemplo, com a insistência da França, detentora do território da Guiana-Francesa, em participar da OTCA e do Parlamaz (MOREIRA, 2023).

No mais, os interesses regionais podem ficar reféns dos interesses circunstanciais – econômicos, sociais, políticos ou mesmo eleitorais – de cada país amazônico, gerando conflitos para uma coordenação de esforços. Exemplo disso é o debate em torno da exploração dos recursos hídricos, de petróleo e de gás natural na bacia amazônica. Por certo que a atuação de cada país em seu território pode gerar impactos a todo o bioma.

Por fim, podemos ainda trazer a questão orçamentária. Veja-se que a OTCA é mantida pelas contribuições financeiras dos estados-membros e tais valores podem ou não ser repassados, tendendo a variar de acordo com questões internas a cada país. Esta precariedade e imprevisibilidade orçamentária pode ser vista como empecilho ao desenvolvimento de projetos e iniciativas no âmbito da Organização.

Em que pese os obstáculos que se apresentam, parece necessário um arranjo mais específico e dotado de maiores prerrogativas, para o fortalecimento na cogestão da Amazônia. A iniciativa de institucionalização do Parlamaz visa também superar – ou, ao menos, mitigar – estas dificuldades.

Veja-se que há exemplos de organizações semelhantes na região, como o Parlasur, criado em 2005, que trata da legislação e fiscalização das ações no âmbito do Mercosul. A este respeito, nota-se “nas últimas décadas a ascensão de diversos grupos de influência no debate sobre política exterior”, “promovendo intensos debates sobre a política externa levada a cabo pelo Poder Executivo dos Estados” (NADDI, 2021).

A cogestão da Amazônia passa por uma coordenação na atividade legiferante acerca da região, dar voz aos povos amazônicos, bem como planejar, executar e fiscalizar as ações de forma coordenada, com prevalência aos interesses regionais. Nesse sentido o Parlamaz surge como importante instrumento para a cogestão e integração amazônica.

Quanto às pretensões internacionais de controle e decisão acerca da Amazônia, cabe tratar do tema de modo bifronte. Por um lado, de se notar a relevância do bioma em termos de biodiversidade, potência hídrica e energética, além de potencial estabilizador climático; isto traz à Amazônia uma importância global e o dever de uma visão ampla a seu respeito. De outra banda, nos parece necessária uma gestão do bioma pelos países por ele perpassados, como forma de garantir autonomia na tomada de decisões políticas, preservação das populações e do patrimônio cultural local.

Ademais, parece mais ajustado que os países que melhor conhecem a realidade do bioma e que vivenciam em maior monta as possíveis mazelas de sua não preservação, sigam com sua gestão; em lugar de imaginar que as potências centrocapitalistas, responsáveis, em maior medida, pela crise climática atual e pelas consequências pós-coloniais que subalternizam a América do Sul, seriam mais adequadas a administrar a região. Visando assegurar a autonomia regional frente aos interesses do capital, travestido, por vezes, de preocupação global, cabe aos estados-membros da OTCA buscarem pontos de convergência e políticas de longo prazo, deixando de lado interesses internos de circunstância.

Quanto ao financiamento para a viabilização do Parlamaz e das políticas públicas no âmbito da OTCA, há que se ter maior criatividade e acuidade. Ademais, dos aportes dos países-membros, o financiamento pode vir do Fundo Global para o Meio Ambiente (Global Environment Facility – GEF), do recém aprovado Fundo de Perdas e Danos do Clima (no âmbito Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas – COP) e de novos bancos de fomento, como o Banco dos BRICS.

Deve-se, ainda, pensar em alternativas mais substanciais, como o fim do repasse dos serviços de juros – ou menos de parcelas dos montantes principais – das dívidas externas dos países da OTCA, para investimento direto em políticas voltadas ao meio ambiente.

Os investimentos financeiros realizados na questão ambiental mostram-se fundamentais, inclusive, para que se mitiguem custos com cada vez mais frequentes tragédias climáticas como a que, lamentavelmente, atingiu o Estado do Rio Grande do Sul (Brasil), em 2024.

Inobstante, seguir aplicando a lógica reducionista economicista à questão ambiental, ponderando somente custo, lucro e fontes de financiamento em lugar de objetivos a serem alcançados, parece uma armadilha que levará ao rápido colapso ambiental e humano.

A questão da constituição do parlamento regional está de fato avançando. A IV Cúpula de Presidentes dos Estados-Partes no Tratado de Cooperação Amazônica, de 2023, aprovou declaração final na qual consta o objetivo de “estabelecer um Grupo de Trabalho, no âmbito da OTCA, para avançar no exame de um vínculo institucional entre o Parlamento Amazônico (Parlamaz) e a Organização” (OTCA, 2023).

Próximos passos

A formalização jurídico-política do Parlamaz e o investimento financeiro nas ações da OTCA mostra-se cada vez necessária em meio à premente necessidade de se alcançar a proteção do bioma amazônico; pensar em medidas de adaptação às mudanças climáticas; preservar a cultura local; atender às necessidades dos habitantes da região; garantir a soberania e a decolonização regional; e promover o desenvolvimento sustentável.

Não se cuida de cooperar em matérias afeitas às áreas do bioma, mas de promover uma verdadeira integração regional específica e aprofundada, que, assim, como a Amazônia, deve transpassar as fronteiras dos Estados.

Referências

AGÊNCIA SENADO, 2023. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/08/10/criacao-de-parlamento-amazonico-ganha-forca-com-declaracao-de-belem. Acesso 24 mai 2024.

AGÊNCIA SENADO, 2024. www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/04/17/parlamentares-retomam-trabalhos-de-articulacao-em-prol-da-amazonia. Acesso em 22 mai 2024.

MOREIRA, Assis, 2023. Valor Econômico. valor.globo.com/opiniao/assis-moreira/coluna/macron-acha-que-franca-faz-parte-da-amazonia-e-pede-adesao-a-octa.ghtml. Acesso em 03 jun 2024.

MRE, 2022. www.gov.br/mre/pt-br/assuntos/mecanismos-internacionais/mecanismos-de-integracao-regional/organizacao-do-tratado-de-cooperacao-amazonica-otca. Acesso em 21 mai 2024.

NADDI, Beatriz. A ascensão do Poder Legislativo na política externa e o impacto sobre os parlamentos regionais latino-americanos. Observatório de Regionalismo. Disponível em observatorio.repri.org/2021/04/27/a-ascensao-do-poder-legislativo-na-politica-externa-e-o-impacto-sobre-os-parlamentos-regionais-latino-americanos/. Acesso em 12 jun 2024.

OEA, 1992. www.oas.org/dsd/publications/unit/oea08b/begin.htm#Contents. Acesso em 01 jun 2024.

ORA, 2024. oraotca.org/pt/inicio/. Acesso em 22 mai 2024.

OTCA, 2023. otca.org/pt/wp-content/uploads/2023/10/Declaracao-de-Belem.pdf. Acesso em 23 mai 2024.

OTCA, 2024. otca.org/pt/parlamaz-retorna-ao-peru-para-debater-institucionalizacao-e-desafios-da-cooperacao-amazonica/. Acesso em 11 jun 2024.

Escrito por

Renan Melo

Graduado em Direito pela PUC/SP e pela Universidade do Porto | Pós-graduado em Direito Civil (PUC/SP) e Direito Internacional (Escola Paulista de Direito) | Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP | Advogado | Pesquisador | Escritor | Membro do Observatório de Regionalismo | Pesquisador do Lisbon Public Law Research Centre (LPL) da Universidade de Lisboa | Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP | Membro da Comissão de Direito Aeronáutico da OAB/SP