Fonte imagética: União Africana

Nas últimas semanas, o Observatório de Regionalismo abordou como diferentes regiões vêm enfrentando a pandemia do novo coronavírus, com análises acerca da Europa e do nacionalismo, da diplomacia em saúde como ferramenta regional na Ásia, e das limitações da cooperação na América Latina diante de um desafio global. Nesta semana, apresentamos considerações sobre a resposta da União Africana (UA) ao COVID-19 e o papel das organizações regionais no enfrentamento coletivo. 

De acordo com o relatório da OMS, Situation Report 134, 108.121 casos e 2700 mortes foram reportados em 54 países africanos até o dia primeiro de junho de 2020. Antes mesmo da chegada da doença ao continente, o grau de calamidade imposto pelo coronavírus em outras localidades, que trouxe dificuldades até mesmo a países com grandes recursos, se mostrou como grande fonte de preocupação internacional para a chegada na África. A existência de uma significativa assimetria na distribuição e acesso à infraestrutura de saúde dentro do continente representava um fator adicional de consternação para o enfrentamento da pandemia. 

No entanto, segundo os resultados apresentados pela Organização Mundial da Saúde, o continente africano teria sido o menos afetado pela pandemia, em comparação com outras regiões. Preliminarmente, alguns motivos podem ser elencados como razões para uma resposta de aparente resistência. Segundo a BBC, o menor fluxo de viajantes internacionais, ou o fator demográfico associado às populações mais jovens poderiam ter influenciado o menor número de fatalidades. Ainda, a reação rápida antes da disseminação da doença e a experiência com epidemias poderiam também terem se constituído como elementos para o combate à pandemia, e, portanto, o presente texto ressalta como a existência e atuação de organizações regionais competentes no combate à COVID-19. 

Em 2017, a União Africana estabeleceu uma instituição técnica regional especializada em matéria de saúde pública e comorbidades, os chamados Centros para Controle e Prevenção de Doenças, África CDC. A decisão pela criação dos CDC se deu após o surto de Ebola que entre 2014-2016 infectou mais de 28 mil pessoas, das quais 11 mil faleceram no continente. Ainda ontem, a OMS declarou que um novo surto de Ebola está acontecendo na República Democrática do Congo em meio à pandemia do COVID-19 mas além dele, doenças como sarampo, malária e febre amarela também fazem parte dos contágios epidemiológicos no continente africano, para os quais são direcionados esforços a nível continental. De modo a proporcionar um acompanhamento mais próximo para o compartilhamento de boas práticas e conhecimento, os CDCs estão propositalmente distribuídos em cinco sedes sub-regionais, localizadas em países das regiões sul, norte, leste, oeste e central, além da sede continental do organismo, localizada na UA, em Addis Ababa. 

Através do CDC, a União Africana apresentou uma pronta resposta ao aparecimento do novo coronavírus, monitorando os episódios de contágio, e, antes mesmo da confirmação do primeiro caso africano, em fevereiro, a instituição estabeleceu uma Força Tarefa, a Africa Task Force for Novel Coronavirus (AFCOR), com o objetivo de “compartilhar informações e melhores práticas, desenvolver capacidade técnica, apoiar decisões políticas de alta qualidade e coordenar a detecção e o controle nas fronteiras“.  Os CDC são assessorados por um comitê de coordenação composto pelos Ministros de Saúde dos países membros, e vêm trabalhando diretamente com a UA e a OMS no controle da doença. Diariamente, são divulgados, no site e nas redes sociais, boletins de informação com as estatísticas atualizadas, além de diversos outros materiais-guia para cidadãos, políticos, socorristas e trabalhadores da linha de frente.  

Outro marco da atuação da União Africana e do CDC foi a divulgação de uma estratégia continental conjunta, a Africa Joint Continental Strategy for COVID-19 Outbreak, lançada em março, com o objetivo de coordenar ações e fortalecer as capacidades dos países membros. O documento estabelece medidas para os níveis nacional, sub-regional e continental, além de doadores e entidades privadas, se comprometendo também com ações para ajudar com a preparação dos sistemas de saúde, suprimentar laboratórios e testagens, engajamento social e distribuição de informação, dentre outras tarefas específicas.  

Além disso, um fundo conjunto para o combate à epidemia foi estabelecido, para captação e redistribuição de recursos, conforme a necessidade dos países. Na última semana, no dia 25 de maio, dia que é comemorado o Dia da África, em lembrança ao aniversário de fundação da Organização da Unidade Africana, antecessora da UA, por exemplo, a organização regional promoveu ainda uma live musical, transmitida pela internet e por diversos canais do continente, com artistas africanos, denominada “Stronger Together”. O objetivo do evento era a arrecadação de 1 milhão de dólares para o mencionado Fundo de Resposta ao COVID-19 da União Africana. A iniciativa africana tem atraído também doadores de diversas partes do mundo, como por exemplo a União Europeia, a OMS, a China, e o Reino Unido, que recentemente anunciou a doação de 20 milhões de libras para o Fundo de combate ao COVID-19 da União Africana. 

Uma das principais críticas ao combate ao coronavírus na África é a sub-testagem, que sugere que os dados acerca do índice de contaminação e mortes no continente possam ser maiores que os atualmente reportados. A UA e o CDC se mostram cientes da situação e, anunciaram no final de abril um projeto denominado “Partnership to Accelerate COVID-19 Testing (PACT): Trace, Test & Track (CDC-T3)“, centrado na necessidade de testagem e monitoramento da pandemia. A organização regional tem como objetivo distribuir um milhão de testes entre os países africanos ainda neste semestre.  

Longe de minimizar os desafios a serem enfrentados pela iniciativa africana, em termos de regionalismo podemos observar uma estratégia bastante interessante e inovadora, não apenas por seu caráter continental, mas pela diversidade e estruturação das abordagens que propõe ações coletivas e embasadas de enfrentamento. Outro aspecto que chama a atenção é a produção de conteúdo e informação para guiar as atuações dos países membros, com base em dados e nas necessidades do continente. Um exemplo interessante foi a proposta de um guia para o afrouxamento do lockdown, para orientar a retomada das atividades econômicas no continente, buscando evitar a geração de novos surtos da doença, dentre outros materiais. Além disso, o uso da plataforma regional-continental é inteligente pois potencializa a captação de recursos de doadores com maior capacidade e credibilidade, devido a seu caráter institucional e atratividade, o que favorece as iniciativas continentais em comparação às iniciativas solo dos Estados-membros. 

Escrito por

Clarissa Correa Neto Ribeiro

Doutora e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas - Unesp, Unicamp, PUC SP. Bolsista CAPES, foi pesquisadora visitante no German Institute of Global and Area Studies - GIGA Hamburg, pelo Programa Doutorado Sanduíche no Exterior (CAPES PDSE) e realizou pelo Programa de Escala de Pos Grado da AUGM mobilidade acadêmica de mestrado junto a Universidad de la Republica (Uruguai). Graduada em Ciências do Estado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foi bolsista de Iniciação Cientifica do CNPq. Membro da Rede de Pesquisa em Politica Externa e Regionalismo (REPRI) e do Observatório de Regionalismo (ODR). Interessada em pesquisas sobre regionalismo comparado, atualmente investiga as consequências da proliferação de instituições regionais na África e América do Sul.