Nesta semana, o ODR publica entrevista realizada com o professor Jaime Cesar Coelho, doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2002), mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (1993) e graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Santa Catarina (1990). Foi pesquisador visitante do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, professor colaborador no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, Visiting Scholar na University of California Santa Barbara (UCSB) e é professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

A entrevista foi concedida pelo Professor Jaime Cesar Coelho (J. C. C.) durante o VIII Simpósio de Relações Internacionais que ocorreu de 5 a 7 de Novembro de 2019 ao Observatório de Regionalismo, por Gabriela D. Ferreira da Costa.

ODR: O senhor tratou na palestra do SIMPORI 2019 sobre a questão da autonomia e sobre uma percepção de integração regional como um mecanismo para superar a condição de dependência dos países da periferia. Como os arranjos regionais da América Latina podem contribuir para a superação da condição de dependência dos países latino-americanos especialmente no aspecto econômico?

J. C. C.: Se olharmos os processos de integração no centro e na periferia e se formos comparar a integração europeia com a integração latino-americana, temos coisas comuns e coisas bastante diferentes. O que é comum: todo o processo de integração é um processo adaptativo a uma ordem maior, a uma ordem internacional, então é uma forma de estar presente nessa ordem, não é uma ruptura com a ordem. E não foi diferente tanto na Europa desde o fim da 2ª Guerra Mundial, as primeiras iniciativas europeias, por exemplo, foram uma tentativa de fazer coordenação cambial, que tinha sido um pavor no período entre guerras e tinha provocado desvalorizações competitivas e contribuído para o acirramento da competição interestatal naquela região. A América Latina tem também um sentido de procurar unir esforços, isso pensando historicamente desde os primeiros estudos da CEPAL e depois no âmbito da criação da UNCTAD. Eu diria o seguinte, a América Latina e o processo de integração se insere dentro do processo de construção do terceiro mundo, de construção de uma consciência autonomista de como se inserir nessa ordem capitalista internacional de uma maneira que não gere tantas perdas (como, por exemplo, perdas comerciais em função de termos de intercâmbio ruins). Agora, esses processos são longos, são processos que dependem das circunstâncias políticas. A América Latina dos anos 1950 mudou muito até hoje. Nós tivemos um processo de industrialização, por exemplo, no Brasil. O Brasil foi um país que teve um processo de industrialização de larga escala, foi o país que mais cresceu entre 1930 e 1980 no mundo. E quando chega os anos 1980 a gente entra na globalização num período em que ocorre uma transformação na divisão internacional do trabalho e a América Latina começa a ver um processo de reversão dos modelos de substituição de importações. Nesse período em diante, os esforços de integração que redundaram no Mercosul foram um mecanismo de criar um regionalismo aberto capaz de fazer frente à globalização, não mais que isso. Mas com méritos também, porque isso significava, do ponto de vista da dimensão política, aplacar diferenças importantes entre Brasil e Argentina por exemplo (muito alimentadas desde o Império). Agora o que estamos observando? Recentemente, no período em que a gente teve o chamado boom de commodities, que começa na virada do milênio, tivemos – como consequência de políticas neoliberais que tiveram impactos sociais muito ruins – a ascensão de forças políticas que chegam ao poder de uma maneira mais ou menos sincronizada e passam a ter uma oferta de capital maior em função do preço de commodities mais elevado. Isso foi uma janela de oportunidade que permitiu que vislumbrássemos um processos de integração mais substantivo, mais essencial. E aí eu divido em duas perspectivas que, no meu ponto de vista, não são excludentes. Uma perspectiva foi a de uma inserção externa soberana e altiva, porém menos assertiva do ponto de vista da confrontação retórica com os Estados Unidos, que foi capitaneada pela política externa brasileira (no período de Celso Amorim isso é muito claro) e em comum acordo, de uma forma muito convergente, com as políticas dos governos Kirchner. E a segunda perspectiva é uma perspectiva bolivariana, que é muito mais assertiva. Essas perspectivas foram factualmente complementares e demonstraram que temos uma possibilidade de criar um processo de integração que vá além de um processo puramente adaptativo ditados pelas forças produtivas da região, que têm um protagonismo maior do ponto de vista da representação da sociedade civil, ou seja, dos respectivos povos. Mas essa foi uma janela de oportunidade que se encerrou, ela foi breve. Então o que estamos vivendo agora? Uma regressão em todos os sentidos. Passamos a ter uma perspectiva de caráter individual. A política externa brasileira joga claramente no sentido de um Brasil que pertence a uma Pan-América comandada pelos Estados Unidos, ressuscitando a Doutrina Monroe. Então que processo de integração pode existir em uma perspectiva como essa? Nenhum. Essa é a lógica do indivíduo contra o coletivo, é a lógica do oportunismo. Aliás, que, no meu ponto de vista, não dará certo.

ODR: Nos últimos meses de 2019, com a eleição de Alberto Fernández para a presidência da Argentina numa conjuntura de crise econômica daquele país, houve a elevação de tensões por meio de declarações da presidência brasileira em relação ao novo governo argentino. Nesse sentido, gostaríamos de saber como as divergências políticas e ideológicas entre Brasil e Argentina podem se transformar em divergências na condução das políticas econômicas que possam interferir no Mercosul?

J. C. C.: Sempre que temos uma das unidades em crise significa uma dificuldade para um mercado comum, um processo que não está completo do ponto de vista da sua integração. Nós não temos uma união monetária por exemplo. Então toda vez que uma unidade relevante entra em crise a gente tem um problema que é o desalinhamento cambial. Então o que está acontecendo com a Argentina? A Argentina é um país que tem escassez de dólares, é um país que, portanto, tem o câmbio pressionado persistentemente. E o Brasil não vive, ainda, uma situação como essa. Qual é a tendência que a gente tem? A gente tem uma tendência de desvalorizações cambiais na Argentina que impactem as relações de comércio entre os dois países. E isso vai ter que ser resolvido. Se você tem convergência do ponto de vista do diálogo, se tem governos que dialogam e tem uma perspectiva de manutenção da integração, de aprofundamento do processo de integração é mais fácil de resolver. Porque os governos são representantes de suas respectivas sociedades. Dentro das sociedades estão os grupos de pressão. Os setores que passam a sofrer com esse desalinhamento cambial vão reclamar, vão bater à porta do governo. Então, isso vai gerando uma situação que, se os governos conversam e há convergência e são governos fortes com legitimidade popular, eles podem aplacar os interesses individuais de alguns setores que tendem a reclamar. Tem uma vasta área da integração que não entra nesse jogo, porque não é complementar. Por exemplo, boa parte da produção do agronegócio é voltada para fora da região, é competitiva. Agora, o contexto é de emergência de um governo na Argentina que tem, claramente, uma perspectiva diferente do governo brasileiro. E um governo brasileiro que, claramente, já demonstrou hostilidade em relação à eleição do Fernández. Qual vai ser a resultante disso a gente não sabe, mas a tendência é que em algum momento as classes produtoras, os setores que estão vinculados à produção da riqueza comecem a se manifestar em termos de política externas. A perspectiva do governo Bolsonaro não é a perspectiva da integração como está bem claro. É a perspectiva dessa coisa imaginária americana revisitada sob o signo Monroe. O que teremos pela frente, muito possivelmente, é uma zona de atrito, de conflito muito grande. É uma zona de incerteza em que o acirramento dos conflitos tende a se agravar.

ODR: O senhor comentou sobre a questão do desalinhamento cambial e no começo de 2019 surgiram alguns boatos, principalmente originados no Brasil, sobre uma possível união monetária entre Brasil e Argentina, criando uma moeda única supostamente denominada “peso-real”. Mesmo sabendo que no âmbito do Mercosul a união monetária não é um objetivo – o bloco se propõe a ser meramente um mercado comum – quais seriam as dificuldades de se estabelecer uma união monetária entre países-membros do Mercosul e quais seriam os eventuais benefícios de uma moeda comum?

J. C. C.: As dificuldades são imensas. Um das vantagens de se ter uma união monetária seria você colocar por terra a dispersão de câmbio, que é um fator de conflito permanente. Em economias instáveis, ainda mais numa situação em que você tem livre movimentação de capital, a gente tende a ter o câmbio sempre como fator desintegrador. Então a união monetária vem na perspectiva de tentar suplantar esse problema estrutural dos processos de integração. Só que ela implica a união fiscal de alguma maneira. Você tem que ter uma dimensão fiscal que amarre o nível de gasto dos diferentes países dentro de alguns parâmetros. Isso foi bastante difícil de ser colocado em prática na Europa, inclusive implicando em muitos aspectos perda de qualidade de bem-estar social dado o caráter mais austero das metas fiscais estabelecidas por Maastricht. Você imagina então em uma região que tem tanto problema do ponto de vista da sua inserção externa e mais ainda em um momento em que essa região se insere internacionalmente de uma forma regressiva. Ou seja, cada vez mais nós somos dependentes do preço das commodities. O nível de convergência política para se alcançar uma união monetária é muito alto também. Eu creio que é quase que ficcional pensar numa possibilidade como essa num momento como o que estamos vivendo. E, por fim, ainda trabalhando sobre a questão fiscal, você teria que ter um tipo de estruturação de governança política que fosse coerente com a união fiscal isso significa mexer em coleta de impostos, criar emprestador de última instância… Ou seja, todo um conjunto de institucionalidades que a gente já conhece através da história da União Europeia que significaria perda de autonomia de país e construção, numa equação bastante complicada, de um sistema de governança mais ou menos equilibrado entre parceiros tão desequilibrados. Não é algo fácil. Qual foi o problema da União Europeia com a crise de 2008? Além do fato da região estar ligada pelos fluxos da crise – os negócios que eram feitos em papéis podres nos Estados Unidos tinham migrados em pacotes de investimento, em títulos de investimento para o mercado de capitais, financeiro europeu –, a União Europeia nunca conseguiu se constituir como um sistema único de coleta e repartição de impostos. A União Europeia é a união de unidades nacionais que tem um relativo grau de autonomia, e esse relativo grau de autonomia tem a ver com a questão fiscal. É diferente dos Estados Unidos. Quando os Estados Unidos uniram suas colônias eles criaram uma tarifa externa comum, depois criaram uma moeda comum, mas criaram uma união fiscal. A Europa nunca conseguiu fazer isso. Então, quando acontece a crise, como a de 2008, esse problema vem à tona: você tem uma moeda comum, mas não tem união fiscal.

Escrito por

Gabriela D. Ferreira da Costa

Mestranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Graduada em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Foi bolsista de Iniciação Científica dos programas "Jovens Talentos para a Ciência" (CAPES), PIBIC (CNPq) e BIC (UFRGS). Tem experiência na área de Relações Internacionais, com interesse específico em Economia Política Internacional, Política Externa Brasileira e Regionalismos. Pesquisadora do Observatório de Regionalismo (ODR)