O momento atual traz inúmeras incertezas sobre o futuro da integração europeia, cenário agravado pela crise sanitária desencadeada pela pandemia e que impulsiona a proliferação de diversas narrativas políticas sobre a conjuntura, tanto no nível doméstico dos Estados membros quanto no nível regional. Assim, o presente artigo discutirá o entrelaçamento de dois discursos que têm crescido nos últimos anos no cenário político europeu, com repercussões em outras partes do mundo: o euroceticismo e o globalismo.

A oposição ao projeto regional europeu não é nova e acompanha o processo desde a sua formação com a criação da Comunidade Europeia do Carvão e Aço, em 1951. Os opositores sempre questionaram os benefícios deste para os Estados nacionais (daí o “ceticismo” incorporado em sua denominação), porém o uso do termo “euroceticismo” ocorreu pela primeira vez em uma reportagem do jornal britânico The Times de 1985 para designar membros do Partido Conservador que tinham opiniões pessimistas sobre a integração europeia. (ULTAN; ORNEK, 2015). O surgimento do termo na Inglaterra demonstra a importância da questão no país, que possui uma trajetória de discussões eurocéticas diferente do restante da Europa. No continente europeu, o debate ganhou relevância a partir da década de 1990 e especialmente após a assinatura do Tratado de Maastrich (1992), que criou a União Europeia (UE) e fortaleceu os temores de perda de soberania e identidade nacionais por parte de parcelas da opinião pública dos Estados membros. A partir daí, o termo se tornou parte dos debates nacionais sobre integração e foi incorporado por diferentes vieses políticos, sendo abarcado por ideologias à direita e à esquerda. 

No entanto, o euroceticismo, apesar do que seu sufixo indica, não é uma ideologia por si só e apenas indica a oposição à ideia de união dos Estados europeus (Leruth; Startin; Usherwood, 2018). O termo não consegue, isoladamente, explicar o que essa oposição significa e quais aspectos da integração são criticados, deixando a interpretação a cargo dos diversos movimentos que dele se apropriaram. Esse contexto se tornou ainda mais confuso com as crises enfrentadas pela União Europeia (UE): a crise da dívida pública europeia, que teve início em 2008 e efeitos na zona do Euro até 2014; a crise humanitária gerada pela chegada de milhares de refugiados e pelas discussões acerca da responsabilidade sobre essa população, em 2015; a crise do Brexit[1], em 2016; e, finalmente, a crise sanitária desencadeada pela pandemia de 2020 e que ainda está em curso. O uso do termo euroceticismo pela mídia e pelos partidos públicos cresceu conforme cada uma das crises listadas, sendo exaustivamente utilizado no debate público. Porém, como elucidam Flood e Soborski (2018), o euroceticismo continuou versátil e sendo evocado pelas ideologias políticas para designar desde reformistas do processo europeu até as opiniões radicais que o rejeitam totalmente, advogando pela saída dos Estados membros da União Europeia. Além de misturar-se e adaptar-se a cada ideologia, o termo ganhou contornos nacionais em cada país, o que torna seu estudo ainda mais complexo. Taggart e Szczerbiak (2002) foram dois dos primeiros acadêmicos a se interessarem pelo assunto e classificaram o euroceticismo como “hard” (forte), que defende o completo desmantelamento da União Europeia, e “soft” (suave), que critica políticas específicas do bloco e propõe reformas. A categoria “hard” está alinhada à direita, enquanto o euroceticismo de esquerda seria do tipo “soft”. A classificação dos autores é útil para a compreensão da ascensão do euroceticismo “hard” nas últimas décadas, viés que se imiscui com bandeiras populistas domésticas e que tornou a União Europeia um bode expiatório de questões que afligem os cidadãos, como a dívida dos países do sul ou o acolhimento dos refugiados. 

O segundo termo a ser tratado é o globalismo, conceito que possui mais de um significado em disputa. As suas origens podem ser traçadas desde a década de 1940 com a ascensão de uma ordem internacional regida por instituições internacionais liberais (ROSENBOIM, 2017). Tendo a Organização das Nações Unidas (ONU) como o maior símbolo dessa ordem, o globalismo pode ser entendido também, segundo Albrow (1996), como o conjunto de princípios supostamente universais que inspiraram a Carta da ONU (1945) e a Declaração Universal de Direitos Humanos (1948). O advento da Guerra Fria teria marginalizado esses princípios do debate público e só seriam retomados a partir das décadas de 1980 e 1990, quando o termo globalismo passou a ser utilizado por neoliberais para explicar a crescente liberalização e integração dos mercados em todo o mundo. 

A globalização, conceito que deriva de globalismo, caracteriza a intensificação das interconexões políticas, econômicas e culturais (NYE, 2004) e foi outro termo exaustivamente utilizado no pós-Guerra Fria, integrando e fortalecendo o discurso entre líderes políticos, jornalistas e empresários de que se tratava um fenômeno inevitável e benéfico para toda a humanidade. Ao longo da década de 1990, essa narrativa foi amplamente aceita; aos poucos, conforme as consequências negativas da globalização passaram a atingir as economias desenvolvidas, surgiram seus primeiros detratores nos Estados Unidos e na Europa. Vários movimentos ganharam força na primeira década de 2000 através de protestos contra organizações internacionais como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. 

Steger (2004) divide os movimentos antiglobalização do período entre os universalistas-protecionistas, alinhado às pautas progressistas e que buscavam relações econômicas mais equilibradas entre países do Norte e do Sul; e os particularistas-protecionistas, associado ao nacionalismo e que combatia não só os efeitos econômicos da globalização, mas também o aumento da migração, a “invasão” estrangeira em suas culturas e a perda da soberania nacional. Até o início dos anos 2000 os antiglobalistas universalistas conseguiram chamar mais a atenção para suas pautas, situação que se inverteu a partir da crise econômica de 2008, quando a extrema direita europeia passa a disputar a narrativa. Cabe notar que os particularistas-protecionistas possuíam um grande apoiador do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos: Patrick “Pat” Buchanan, jornalista e assessor de três ex-presidentes norte-americanos, atacava a ideologia globalista das elites transnacionais e das organizações internacionais que decidiam os rumos da economia dos Estados Unidos sem considerar os trabalhadores, cada vez mais empobrecidos em relação às décadas anteriores. 

Os artigos e livros de Buchanan desvirtuam o sentido original do termo globalismo, que passa a ser caracterizado como uma conspiração contra a prosperidade dos Estados Unidos e cujo remédio seria a retomada da postura isolacionista da década de 1940, resumida no slogan “America First”. Não é por acaso que um artigo recente[2] da revista The Week apontou Buchanan como o precursor do movimento que levou Donald Trump à presidência. 

Mas o que o euroceticismo possui em comum com o globalismo recente, adotado por movimentos de extrema direita que transformaram o conceito em uma ameaça conspiratória? É em relação à soberania e a consequente crítica às organizações internacionais que o globalismo e o euroceticismo se entrelaçam. Segundo Kałabunowska (2019), a União Europeia se tornou a personificação da globalização e da ideologia globalista para movimentos de extrema direita europeus, situação agravada pelo seu caráter supranacional, ou seja, os Estados membros cederam, voluntariamente, algum grau de soberania em determinados assuntos. A crise econômica de 2008 agravou a desconfiança em relação ao processo de integração europeu, alimentando discursos sobre como a centralização de poder na UE era prejudicial aos seus membros. Ainda de acordo com Kałabunowska (2019), a retórica do partido de extrema direita alemão “Alternative für Deutschland” (Alternativa para a Alemanha – AfD) exemplifica as principais críticas feitas à UE: a burocracia europeia sediada em Bruxelas limita as liberdades políticas e econômicas dos Estados membros, deixando-os à mercê do “grande capital” e as corporações internacionais, cujos objetivos não passam pelo crivo democrático. Estão, portanto, fora do controle do Estado-nação e contra os interesses destes. 

Apesar desses argumentos, as discussões a respeito da crise econômica que se arrastou até meados de 2014 pareciam distantes do cidadão comum europeu, incomodado com a suposta ingerência europeia nos assuntos nacionais, com a custosa e distante burocracia bruxelense e suas regras minuciosas. A crise migratória de 2015 tornou o incômodo palpável e próximo do cotidiano de parte da população, reacendendo a retórica antiglobalista da extrema direita baseada, principalmente, em questões de identidade. A maneira como a UE lidou com a questão, propondo cotas para o recebimento de refugiados e compartilhando o ônus entre os seus membros suscitou muitas críticas por parte desses grupos, reforçando a ideia de uma burocracia europeia insulada que desdenha da vontade popular. A UE, mais uma vez, personificou o inimigo comum e os reflexos da globalização indesejada. 

Ainda que o imbróglio do Brexit tenha diminuído os rompantes eurocéticos por toda a Europa e a pandemia tenha reacendido a discussão sobre a importância da cooperação, cabe observar a movimentação dos principais representantes dessa tendência nos próximos anos, assim como os novos contornos que as críticas ao globalismo podem ganhar nos Estados Unidos. Como vimos, ideias e conceitos são transformados e, muitas vezes, distorcidos pela política. Contraditoriamente, graças ao globalismo e à globalização em seus sentidos originais, as narrativas conspiratórias sobre instituições internacionais já atingiram outras regiões. Como notou Kałabunowska (2019), o paradoxo da nova extrema direita se encontra no fato de cooperarem transnacionalmente.

Podemos observar fragmentos dessas ideias na América Latina como parte do discurso dos denominados “novos patriotas latino-americanos”, conforme denominação criada por Burian (2020). O novo nacionalismo latino-americano, segundo o autor, replica com pouca originalidade os argumentos antiglobalização e os questionamentos em relação à ordem liberal internacional, na mesma linha de seus congêneres europeus e estadunidenses. A atual política externa brasileira oferece, na figura do chanceler Ernesto Araújo, vários exemplos de discursos em que o globalismo é descrito como “um esquema de dominação global que visa substituir as culturas tradicionais por uma moral secular, cosmopolita e esquerdista” (MAGALHÃES, 2019).  As organizações internacionais também passaram a fazer parte do ideário criado pelos novos patriotas e, naturalmente, o regionalismo latino-americano não escapou às críticas. Esses atores que prezam, sobretudo, a soberania, pois entendem a cooperação e os projetos de integração como formas de ingerência internacional em temas sensíveis como migrações, direitos humanos e meio ambiente. Ainda que os projetos de integração latino-americano estejam distantes da supranacionalidade europeia, tornaram-se alvos de arroubos nacionalistas.

Assim, compreender esses conceitos e suas evoluções desde perspectivas do sul torna-se cada vez mais urgente e necessário para que a cooperação e a integração sigam seus sentidos originais, voltados para a construção da paz e do bem-estar das sociedades. O debate sobre os efeitos negativos da globalização e os questionamentos em relação à integração regional são bem-vindos na medida em que não se tornem bodes expiatórios para problemas domésticos complexos ou a simples xenofobia disfarçada de interesses nacionais. 

Notas

[1] Acrônimo de “British Exit”.

[2]  MANN, W. How Pat Buchanan made President Trump possible. The Week, Londres, 26 de julho de 2019. Disponível em: https://theweek.com/articles/853163/how-pat-buchanan-made-president-trump-possible. Acesso em: 25 set. 2020.

Referências bibliográficas

ALBROW, M. The Global Age: State and Society beyond modernity. Cambridge: Polity Press, 1996. 

BURIAN, C. Pandemia, incertidumbres y posibles cambios globales. In: La Diaria, Uruguai, 18 de abril de 2020. Disponível em:https://ladiaria.com.uy/opinion/articulo/2020/4/pandemia-incertidumbres-y-posibles-cambios-globales/Acesso em: 25 set. 2020.

FLOOD, C.; SOBORSKI, R. Euroscepticism as ideology. In: In: The Routedge Handbook of Euroscepticism. New York: Routledge, 2018.

KAŁABUNOWSKA, A. On the role of anti-globalist and anti-european attitudes in extreme right ideology. In: Politeja, n. 63, pp. 125-138, 2019. 

LERUTH, B.; USHERWOOD, S.; STARTIN, N. Euroscepticism and European (dis)integration in the age of Brexit. In: The Routedge Handbook of Euroscepticism. New York: Routledge, 2018.

MAGALHÃES, D. Quem tem medo do Globalismo? Estadão, 2018. Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/quem-tem-medo-do-globalismo/. Acesso em: 25 set. 2020.

NYE, J. Globalism versus Globalization. In: The Globalist, 15 de abril de 2002. Disponível em: https://tinyurl.com/yy7rgjt5. Acesso em: 25 set. 2020.

ROSENBOIM, Or. The Emergence of Globalism Visions of World Order in Britain and the United States, 1939–1950. Princeton: Princeton University Press, 2017. 

STEGER, Manfred. Rethinking Globalism. Estados Unidos da América: Rowman & Littlefield Publishers, Inc. 2004.

TAGGART, P.; SZCZERBIAK, A. Opposing Europe? The comparative party politics of Euroscepticism. Oxford: Oxford University Press, 2018. 

ULTAN, M.; ORNEK, S. Euroscepticism in the European Union. In: International Journal of Social Sciences, vol. IV, n. 2, pp. 49-57, 2015.

 

Escrito por

Flavia Loss

Doutoranda pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP) e mestra pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Integração da América Latina (PROLAM-USP). É professora no curso de Relações Internacionais da Universidade Cruzeiro do Sul. Pesquisadora do Observatório de Regionalismo e do Grupo Rede de Investigação em Política Exterior e Regionalismo (REPRI). Integra o Grupo de Reflexión sobre Integración y Desarollo en América Latina y Europa (GRIDALE) e o centro de estudos CiGlo (Ciudades Globales). Possui experiência no desenvolvimento de projetos acadêmicos nas áreas de Política Internacional e Relações Internacionais, atuando principalmente com os temas de análise de política externa e integração regional.