Imagem- Fonte: El país – 

A política internacional no ano de 2016 foi marcada por episódios singulares ao redor do mundo. Iniciativas céticas quanto à política tradicional representaram desvios nas trajetórias dos países desenvolvidos, introduzindo um cenário de instabilidade, principalmente na Europa. Além de dois casos emblemáticos – o Brexit e a vitória de Donald Trump nas eleições nos Estados Unidos-, recentemente a Itália realizou uma importante consulta popular em relação a possíveis mudanças estruturais em sua constituição.

A iniciativa do Primeiro-Ministro italiano, Matteo Renzi, fiador máximo da proposta de referendo, defendia, dentre as principais medidas, a diminuição do número de senadores e das incumbências do Senado, a maior centralização do poder em Roma- o que significaria menores competências atribuídas às províncias, e uma maior agilidade no processo legislativo do país.

O ponto nevrálgico da reforma constitucional seria o fim do chamado “bicameralismo perfeito”, implantado após a traumática experiência fascista italiana na primeira metade do século XX. Nessa fórmula institucional do sistema parlamentarista, tanto o Senado como a Câmara de Deputados detêm poderes simétricos, legislando e manifestando confiança ou desconfiança em relação ao governo vigente. A reforma de Renzi propunha limitar os poderes legislativos do Senado a assuntos específicos, enquanto a Câmara legislaria de maneira autônoma sobre um espectro maior de temas, além de se tornar o único ente responsável pelo voto de confiança.

Após árdua campanha em torno do referendo (o “sim” aprovaria o pacote de reformas de Renzi e o “não” manteria a constituição atual) venceu o “não” com quase 60% dos votos válidos. Segundo dados do Instituto Cattaneo, além do ceticismo dos cidadãos em relação à política tradicional, o resultado do referendo apontou para questões sociais significantes, uma vez que o “não” obteve vitória principalmente entre as regiões mais pobres da península e, nestas, entre a população mais pobre e desempregada. Outro ponto relevante foi a rejeição da reforma em regiões com alta porcentagem de imigrantes, o que evidenciou o receio de que uma mudança no texto constitucional pudesse agravar a situação desses, ainda que a proposta não tratasse diretamente do tema.

Para o Professor de Política da Universidade LUISS em Roma, Giovanni Orsina, a trajetória do Primeiro-Ministro Italiano foi de uma jovem promissora transformação para o estigma de “político tradicional atrelado aos interesses econômicos e políticos de grupos de interesse poderosos. Renzi não conseguiu comunicar aos setores mais pobres da sociedade, e aos mais jovens, os possíveis benefícios de sua reforma, além de incorrer em outro erro grave durante a campanha pelo “sim”: declarou que deixaria o cargo caso a reforma fosse rejeitada nas urnas, desviando o foco da votação para uma avaliação de seu governo. Nesse sentido, qualquer proposta de Roma à população italiana implicava um descompasso entre tecnocracia/política tradicional e população.

Com a derrota, o Primeiro-Ministro renunciou, tornando o cenário político ainda mais incerto. Cabe agora ao presidente Sergio Matarella dissolver o parlamento, convocando novas eleições, ou nomear um governo técnico para administrar o país até as eleições de 2018. No tradicional discurso de final de ano, feito em 31 de dezembro último, Matarella indicou que pretende convocar eleições antecipadas, porém ressaltou que, para tanto, uma nova lei eleitoral precisa ser aprovada.

Diante deste quadro, está posto um novo capítulo no atual imbróglio político italiano: existem duas leis eleitorais vigentes, uma regendo as eleições para a Câmara (apelidada de “Italicum” e de autoria de Renzi) e outra para o Senado (“Consultellum”).  Ambas são proporcionais, mas com a diferença de que o “Italicum” permite a formação de maiorias absolutas, enquanto o “Consultellum” fragmenta os votos, impedindo a formação de maiorias. Segundo os adversários de Renzi, caso sua reforma fosse aprovada via referendo, a confluência da diminuição de poderes do Senado com as regras previstas pelo “Italicum”, que favorecem a Câmara, criaria um enorme desequilíbrio de forças entre os poderes. Ainda, se beneficiariam o Partido Democrático e o Movimento Cinco Estrelas (M5S, na sigla em italiano), dado que não precisariam governar via coalizões. Após a derrota da proposta de Renzi, a Corte Constitucional italiana anunciou que decidirá sobre a pertinência do “Italicum” no próximo dia 24 de janeiro de 2017.

Sob este prisma, a crise institucional implica consequências ao futuro do país na União Europeia, já que o quadro de instabilidade política se mostra favorável a movimentos nacionalistas “eurocéticos”, como o M5S e o Liga Norte. Aliás, o M5S já é o segundo maior partido da Itália, atrás apenas do Partido Democrático (PD) de Renzi, o que o coloca como possível sucessor do poder em Roma.

A inconsistência e incapacidade da política tradicional em solucionar os problemas domésticos dos países europeus são fatores que reforçam os partidos “eurocéticos” em todo o continente, visto que esses partidos culpabilizam a integração europeia por diminuir a capacidade de ação dos estados nacionais, sujeitando-os a regras e compromissos que nem sempre atendem às suas necessidades. Dessa forma, integração europeia, antes pensada como um processo irreversível por muitos teóricos como Haas e Lindberg, passa por transformações profundas que colocam em cheque as certezas do passado. Certamente, as inflexões no cenário doméstico italiano acarretarão efeitos que transbordarão para o bloco europeu.

PARA MAIS INFORMAÇÃO (REFERÊNCIAS)

Istituto Carlo Cattaneo

[The Guardian]

– Italy referendum defeat would complete Matteo Renzi’s rapid downfall

– ‘We are for what is logical’: how Italy’s M5S became a real contender

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Lindberg, L.N. (1963) The Political Dynamics of European Economic Integration, Standford, California, Stanford University Press.

Haas, E.B. (1968) The Uniting of Europe: Political, Social and Economic Forces 1950-1957, Stanford: Stanford University Press.

Escrito por

Marcel Artioli

Mestrando no Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP), integrante da Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (REPRI), bem como do Observatório de Regionalismo. Pesquisa economia política internacional, integração regional, política externa brasileira e política comercial. Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2012). Atualmente é analista de desenvolvimento agrário da Fundação Instituto de Terras do Estado de Sao Paulo. Tem experiência na área de Gestão Pública, com ênfase na mediação de conflitos fundiários.